Texto de Paulo Lourenço | Fotos de Orlando Almeida/Global Imagens
“Quando éramos novas, já estávamos todas casadas, mas brincávamos muito. Todo o bairro era uma família. Púnhamos a TV – uma raridade na altura – cá fora e era bailarico e saltar fogueiras. Convivíamos todos.” As recordações são de Maria Pereira, 82 anos e uma boa disposição que contagia, à porta de casa, no Bairro do Loureiro, uma das três urbanizações que recebeu os habitantes do Casal Ventoso, quando, há precisamente 20 anos, o camartelo avançou e demoliu as casas onde viviam cerca de 250 famílias.
Não era fácil sobreviver no Portugal de miséria da primeira metade do século XX, mas era “tão simples” ser feliz para esta gente, que encontrava na união e no espírito de comunidade o ânimo para lutar por tudo o que lhe faltava a nível material. “Ai, tenho tantas saudades da minha casinha, de ir às minhas vizinhas buscar um ramo de salsa ou de açúcar, da mercearia com a lista de fiados”, suspira Clementina Valente, do alto dos seus 94 anos, bem vividos e repletos de experiências.
Viviam em pátios e casas unifamiliares, muitas vezes em condições precárias, sem água, eletricidade ou esgotos. Não tinham quase nada. Mas eram essa “grande família” onde o pouco que cada um tinha sobrava sempre para repartir com aqueles a quem um imprevisto batesse à porta.
Até aos anos 1980, era a pobreza que marcava a rotina do Casal Ventoso, um bairro onde a maioria dos homens trabalhava na estiva e as mulheres em fábricas ou nas limpezas. Depois, veio a droga. O consumo e o tráfico. O cenário naquela encosta do Vale de Alcântara, à entrada sul de Lisboa, transformou-se. Para muito pior. A insegurança e o vaivém constante de toxicodependentes foram a pedra de toque para a necessidade absoluta de demolir o casario ilegal e de abrir caminho ao realojamento em três bairros contíguos à Avenida de Ceuta, um processo que começou em 1999, há precisamente 20 anos.
Duas décadas depois, quem ali viveu diz que ainda não fez o luto. “Deram-nos as casas, mas cortaram-nos a corrente da solidariedade que nos unia”, confessam as idosas com quem a “Notícias Magazine” passou uma das últimas tardes à conversa sobre as memórias de tempos árduos, mas que não esquecem e dos quais até assumem “ter saudades”. Continuam a amar um bairro que já não existe fisicamente, mas que é o único que sentem verdadeiramente como seu.
“Ia a pé para guardar dinheiro para o pão”
Odete Castanheira, 76 anos, comeu “o pão que o diabo amassou” para criar os cinco filhos. “O meu marido era tipógrafo e eu trabalhava na Praça do Chile [seis quilómetros de distância, uma hora e 15 minutos de caminho, cada percurso]. Ia e vinha a pé para poupar o dinheiro do autocarro e para comprar pão para casa”, conta, sem esconder, apesar de tudo, a saudade que tem desses tempos.
“Porque éramos mesmo uma grande família”, atira, ao lado, Rosalina Tavares, 80 anos. E explica que foi no Casal Ventoso que nasceu, cresceu, casou, enviuvou. E onde foi também “muito feliz”. “Olhe, tinha o meu pátio mesmo ao pé da linha do comboio, com o meu quintal, os meus legumes, as minhas árvores e a minha fruta. Hoje, não tenho nada, nem elevador para subir ao quarto andar”, lamenta.
À porta das casas na Quinta do Loureiro, que com a Quinta do Cabrinha e a Ceuta Sul acolheram cerca de um milhar de ex-residentes do Casal Ventoso, as mulheres desfiam memórias. Dos tempos da miséria, mas de uma vivência cheia de cumplicidades e de solidariedade. “Eu não tinha água. Remediava-me com a do chafariz que havia no pátio”, descreve Arménia Isabel, que, com os seus 69 anos, é das mais jovens do grupo. “E vivíamos com as portas de casa sempre abertas, ninguém roubava nada.”
Mas não era só bons momentos. Pelo contrário. Odete Castanheira lembra o apoio que recebeu quando teve um problema de saúde que chegou a atirá-la para uma cadeira de rodas. “As vizinhas andaram a pedir pelo bairro para eu pagar os meus tratamentos. E, quando eu não podia cozinhar, levavam sopa aos meninos”, lembra. Era assim a vida naquele bairro mal-afamado, mas “cheio de gente boa”, como repetem as antigas moradoras.
Quando morria alguém, se a família não tinha dinheiro para o funeral, havia peditório. “Íamos porta a porta, arranjávamos dinheiro para pagar o enterro, para as flores, e ainda sobrava algum para ajudar a viúva ou o viúvo”, destaca José Carlos, 72 anos, hoje um dos responsáveis pela Comissão de Moradores da Quinta do Cabrinha.
Aos 86 anos, Marcelina Alves não se conforma com a perda da vizinhança. “Meteram-me num prédio em que praticamente não conheço ninguém. Lá, tínhamos muitos vizinhos no pátio, vivíamos como irmãos. Aqui, posso passar pelas pessoas e ninguém pára para me perguntar como estou. Aliás, se me der uma coisa e cair em casa, acho que nem vão dar por isso”, desabafa.
“Tudo feito às três pancadas”
É esse sentimento de desapego que explica a saudade. Goreti Rodrigues, 58 anos, um dos elementos da Comissão de Moradores da Quinta do Loureiro, vai direta ao assunto quando resume o estado de espírito da população: “Deram-nos casas novas, mas limitaram-se a despejar-nos para aqui. Não se preocuparam minimamente em acompanhar as pessoas, foi tudo feito às três pancadas”.
A mulher, que confessa sentir todos os dias “um friozinho” quando olha a paisagem da sua janela e vê a vegetação a cobrir o local onde se erguia a casa concebida pelo pai, explica que “as pessoas estavam habituadas a morar lado a lado e que agora vivem umas por cima das outras”. “Quebrou-se aquela corrente”, critica.
Filipe Santos, presidente do Projeto Alkantara – iniciativa social de integração dos antigos moradores nos novos bairros municipais -, estabelece uma comparação com a realidade alentejana, a propósito da construção da barragem de Alqueva. “Ao contrário do que aconteceu na Aldeia da Luz, que teve uma equipa multidisciplinar a acompanhar as pessoas, e que tornou possível criar uma aldeia igual, mas fora da zona que ficou submersa, estes moradores tiveram um espaço completamente novo, sem esse tal acompanhamento”, refere, em jeito de explicação para o luto que ainda não foi feito duas décadas volvidas após o início da demolição.
No Loureiro, no Cabrinha e no Ceuta Sul, os ex-residentes viriam a ocupar casas com outras condições, onde não falta água canalizada, eletricidade ou saneamento. Aliás, apesar das saudades que não se cansam de confessar, as mulheres contam que, há 20 anos, a notícia de que iriam receber casas novas foi acolhida com “uma emoção muito grande”. Odete Castanheira lembra-se que desatou a chorar. Delmira revela que até foi parar ao hospital. “Tudo por causa dos nervos”, justifica-se.
Para estas pessoas, “perderem-se umas às outras”, com a distribuição sem critério por edifícios de vários andares, “foi o mais duro”. Mas, com os anos e a idade a aumentar, haveria de chegar outro pesadelo: a falta de elevadores operacionais. José Carlos conta que no seu bairro, a Quinta do Cabrinha, “há gente que não sai de casa há anos” porque não consegue subir as escadas. Ele e Goreti Rodrigues reconhecem que, em alguns casos, o vandalismo pode ser uma razão, mas dizem que “isso não justifica tudo” e pedem “uma manutenção mais eficiente”.
A verdade é que a maioria dos prédios tem os elevadores avariados. Para uma população envelhecida, com muita gente acima dos 80 anos, é um esforço adicional a juntar à rotina. “Temos que subir e descer, que remédio”, atira Quitéria Oliveira, de 91 anos.
No entanto, a droga viria a marcar para sempre o Casal Ventoso. Chegou nos anos 1980. “A maioria era gente de fora”, dizem os ex-moradores, em uníssono. Mas, ainda assim, Goreti Rodrigues reconhece que “não há ninguém que não tenha tido um familiar, um vizinho ou um amigo que tenha caído nessa desgraça”.
Que o diga Quitéria Oliveira, que foi mãe de nove filhos, mas guarda o aperto no coração de ter visto um deles morrer aos 25 anos como consequência do consumo de drogas duras. “Também me mataram um neto”, admite, com um encolher de ombros, sinal de tristeza e repugnância por aquilo em que o bairro se transformou nos últimos anos que por lá viveu. Como Arménia Isabel, que perdeu um sobrinho, da Costa da Caparica. “Foi de lá que trouxe o vício. E roubou muitas coisas aos pais, coitadinhos”, recorda, amargurada.
A toxicodependência rapidamente tomou conta das vivências. Dizem os números da época que havia um vaivém diário de cinco mil toxicodependentes que ali se iam abastecer, sobretudo de heroína. Uma seringa dava para seis, sete, as vezes que fossem precisas. Muitos viriam a morrer de SIDA. A encosta transformou-se num cenário quase apocalíptico, de gente errante, a dormir em tendas improvisadas, sem esperança. O Casal Ventoso ficou então imortalizado como o “hipermercado da droga”.
José Carlos salienta que sempre se sentiu à vontade para andar na rua, mesmo nesses tempos, mas que as rotinas mudaram. “A partir daí, a tranquilidade de deixar as portas de casa abertas acabou”, frisa, apesar de insistir que o Cabrinha, onde atualmente reside, “é cem vezes pior”.
“Foi o boxe que me salvou”
Mais novo do que os restantes, Paulo Seco, 47 anos, também viveu no Casal Ventoso. Agora, na Quinta do Loureiro, possui um ginásio de boxe onde, a par de praticantes de fora, dá formação a miúdos do bairro. É entre os sacos e o pequeno ringue que conta como a prática da modalidade foi decisiva na sua vida. “Foi o boxe que me salvou”, confessa o homem que começou a praticar a modalidade aos oito anos e que hoje a ensina aos mais novos. “Eu era padeiro. Trabalhava de noite, dormia de dia e, ao final da tarde, ia treinar. Não me sobrava tempo nem vontade para outras coisas”, sublinha.
Ainda assim, conta que viu muitos dos condiscípulos serem “engolidos” pela toxicodependência. “Tive amigos que morreram, outros que foram presos e outros que se perderam pura e simplesmente por aí. Vi muita desgraça. E de todo o tipo. Vinha para aí gente de bem, filhos de figuras públicas, nós é que não sabíamos quem eram.”
É também por isso que hoje se esforça por passar aos jovens a mensagem de que vale a pena apostar no desporto. Contudo, num ambiente que, só por si, poderá ser propício à violência, não será o ensino do boxe um contrassenso? Paulo Seco explica: “O boxe ajuda a controlar a agressividade. Os miúdos saem daqui com a determinação de não irem agredir ninguém porque sabem o mal que podem fazer aos outros”.
A deliciosa “sopinha do Barroso”
Vinte anos depois, desce-se a velha encosta, outrora repleta de barracas improvisadas, que albergavam escravos do vício, e só a vegetação cresce por ali. Das velhas casas, não sobra praticamente nada. Apenas as memórias e as vivências de quem as habitou. E bem vivas. Apesar de tudo, há quem receie que o flagelo das drogas possa voltar.
“Nos primeiros tempos, vimo-nos livres disso, mas de há sete ou oito anos para cá já se vê muita coisa por aí às claras, aqui no Loureiro e no Cabrinha, a 50 metros da esquadra da PSP. Oxalá isto não venha a tornar-se um segundo Casal Ventoso”, vaticina Goreti Rodrigues.
No entanto, não há receio que apague as vivências do velhinho Casal Ventoso. Hoje, as mesas até podem ser mais fartas, mas, na verdade, as mulheres ainda recordam a velha “sopinha do Barroso”. “Comemos muita, por isso é que ainda parecemos umas jovens”, brincam, divertidas.
O Barroso era um morador que fazia uma “sopa deliciosa, com feijão, verduras ou o que houvesse” e que a distribuía pelos mais necessitados. “Lá vai a marcha do Casal Ventoso/Panela às costas vai p’ra sopa do Barroso”, cantou-se, ainda há poucos anos, no Santo António. Em memória de uma tradição que os anos não apagam e as máquinas jamais conseguirão demolir.