Rui Cardoso Martins

Carteira de carteiristas

Algumas das figuras mais interessantes nos tribunais não estão do lado que se espera, no banco dos réus. Acontece aparecer um juiz (ou juíza) bruto ou, pelo contrário, doce como a mãe que sussurra, à criança assustada pela noite, uma canção de embalar. Já vi arguidos e testemunhas, que tentavam dar um contexto aos factos, a serem cortados asperamente:

– Já lhe disse que passe à frente, viu ou não viu?!

Mas também assisti a juízas explicando a velhotas:

– Minha querida, precisa de água, quer contar desde o início?

De maneira que, por violência verbal ou doçura, o protagonismo do caso fica às vezes fora do seu eixo, por assim dizer. Depois temos os advogados que tropeçam na inexperiência ou, pelo contrário, jovens calmos que largam bombas:

– Senhora juíza, estou a usar modos civilizados. Não estou habituado a ser tratado com maneiras mais próprias de uma conversa de bêbedos numa taberna…

Isto foi dito a uma juíza impaciente e de boca aberta. Ameaçou o advogado com processo mas, finalmente, acalmou a voz.

Este caso é diferente: nunca tinha visto em acção um advogado com clientes carteiristas. Um carteirista, talvez concordem, talvez não, é aquele tipo de criminoso que, a não ser que nos roube a nossa carteira, tem qualquer coisa de cómico. Andam em eléctricos, autocarros, metros atulhados de turistas, de ar ausente, em grupos organizados (este desequilibra-se, o outro agarra e limpa a vítima). Bandos de mãozinhas marotas, de palito nos dentes, o dedo indicador e o médio esticados (um bom carteirista tem dedos do mesmo comprimento, usa-os como pinça de carteiras). Qualquer filme de ladrões simpáticos inclui um artista que, já tudo parece perdido, tira de bolso alheio o papel salvador.

No banco do tribunal estava um homem de ar ausente. Acusado, por assim dizer, de carteirismo. A meio da sessão entrou outro, com barba cinzenta e triste. Fizeram de conta que não se conheciam, tentando provar não fazerem parte da agremiação descrita no processo como “bando de carteiristas”. O caso deu-se em 2012, quando a explosão turística em Lisboa e Porto estava a começar. Desapareceu a carteira de um espanhol que subia para um eléctrico de Lisboa. Acusaram um “homem de chapéu” e os seus ajudantes de quadrilha. Mas a carteira reapareceu e a polícia não os apanhou em flagrante. Foi só na esquadra que a polícia disse que tinham sido eles, porque já os conhecia. O advogado, grisalho de cabeça, negro de roupa, tentava reverter a condenação. Dava os seus argumentos:

-Até que ponto o “diz-que-diz” da polícia serve para condenar arguidos? Dantes era assim: havia um Código Penal que dizia que aquilo que a polícia diz é força de verdade! Ou a defesa tinha umas provas espectaculares, ou a condenação estava feita. E ao longo dos anos tenho visto uma pose do Ministério Público que é a de colagem às teses da polícia! Passados sete anos, um carteirista continua sem ter cadastro? Um carteirista conhecido?! Os tempos mudaram, a polícia já não tem a credibilidade que tinha há 30 ou 40 anos. Há uma esquadra inteira a ser investigada, a de Alfragide. Noutro caso, polícias deram um tareão a um desgraçado dentro da sala do tribunal! Os tempos mudaram, como disse o outro…

O outro deverá ser Bob Dylan. Sobre os acontecimentos no eléctrico de uma colina de Lisboa:

– Não é por terem dito “é aquele, eu conheci-o”. Eu não vejo lá o Paulo R. Vejo só uma pessoa com chapéu que a polícia diz que é o Paulo R.!

Seria necessária a prova de reconhecimento pericial da face, como noutros países. E então poder-se-ia dizer, cientificamente, “há 80 por cento de hipóteses de ser ele”.

– Isso são contas doutro rosário. Mas o senhor polícia diz: “Este homem é culpado”. Mas isto é prova de quê?!

Quanto ao presumível carteirista, só interveio no fim da sessão.

-Não desejo dizer mais nada.

A juíza via na agenda a próxima data. E o advogado, de cabeça à banda como galo a medir o adversário, sorriu:

– Nesse dia temos julgamento com outros dois presumíveis inocentes que estão presos!

Sem querer aderir às teses da polícia, é possível praticar advocacia com carteira de carteiristas.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)