Braima Dabó: um coração de ouro, uma lição de vida

Foto: Ivo Pereira/Global Imagens

Ajudou um adversário a chegar à meta nos Mundiais de atletismo no Catar. Segurou-o pelo braço, pela cintura, o estádio levantou-se para aplaudir o gesto. Levou um cartão amarelo. É teimoso e persistente. Gosta de poesia, reggae e kizomba. E faz um belo bacalhau à Brás sem batatas de pacote. Em dezembro, oito anos depois de ter saído, volta à Guiné-Bissau. Agora, acaba de ser galardoado com o Prémio Fair Play, pela Federação Internacional de Atletismo.

Braima acompanha atentamente a escrita do seu nome, letra a letra no início de uma folha em branco, num caderno sem linhas. O i não leva acento agudo, não tem aquele traço esticado para a direita, é só uma pinta em cima do i. Uma bolinha? Sim, uma bolinha, responde educadamente. Arredonda-se o traço, corrige-se a pronúncia, não se carrega no i, dilatam-se as sílabas, abre-se o nome e a conversa começa pela parte mais óbvia, aquele gesto que comoveu o Mundo.

Como é que aconteceu? Braima Dabó, 26 anos, atleta guineense, repete o que disse tantas vezes. “Aconteceu o que aconteceu. Uma coisa normal. Para mim, é perfeitamente normal, qualquer um que estivesse naquela posição iria ajudá-lo.” Na prova dos 5 000 metros nos Mundiais de atletismo em Doha, Catar, a 27 de setembro, a cerca de 250 metros da meta, Braima ajudou Jonathan Busby, atleta de Aruba, que estava a sentir-se mal por causa do calor.

Percebeu pela postura e pelo andar de lado que o adversário não estava bem. Segurou-o pelo braço, pela cintura, aguentou o peso do corpo. Abrandou o passo, abrandou a corrida, pisaram juntos a meta. Busby foi desclassificado, Braima ficou em último e recebeu cartão amarelo, advertência disciplinar por ter dado assistência a outro atleta. As bancadas aplaudiram de pé o fair-play, a atitude de camaradagem que tinha acontecido ali, diante dos seus olhos.

Braima insiste que foi um gesto normal, tão normal como, compara, apanhar uma garrafa de plástico do chão. Ainda hoje não entende tanta agitação à volta do que fez. Se calhar, o Mundo não estava preparado para o gesto que levantou o estádio, comentado em direto como uma prova de amizade entre nações.

“Aconteceu o que aconteceu. Uma coisa normal. Para mim, é perfeitamente normal, qualquer um que estivesse naquela posição iria ajudá-lo.”

Braima participou como atleta convidado em representação do seu país, Guiné-Bissau, não havia medalhas em jogo, era o início de uma série de três, haveria sempre a possibilidade de melhorar o seu recorde pessoal, oficialmente em cerca de 17 minutos, e passar à final. “Mas isso não ia mudar nada”, garante. Fez um amigo para a vida. “É uma amizade que vai perdurar.”

Braima tem o tempo contado, um bilhete comprado, uma viagem de autocarro, mais braços à sua espera. Dois dias depois de aterrar no aeroporto do Porto, e dezenas de entrevistas nas últimas semanas – CNN incluída, com sofás na pista de Doha, um para a jornalista, outro para si -, dá uma ajuda à sua família de cá, ao pai Baião e à mãe Su, e a outros pais e mães voluntários da Organização Não Governamental Na Rota dos Povos que distribuem material num armazém, em Vila Nova de Gaia, que há de seguir em contentores para a Guiné.

A imagem que correu mundo, pintada num prato, foi oferecida a Braima Dabó quando o guineense chegou ao aeroporto do Porto. (Foto: Ivo Pereira/Global Imagens)

“A Educação é o único caminho para o desenvolvimento” é a máxima da Na Rota dos Povos que surgiu em 2011 e que já equipou mais de 40 escolas na região de Tombali, criou cinco bibliotecas, tem a casa Mamé Ussai feita de raiz para receber crianças órfãs, colabora com o hospital de Catió e está a construir a Tabanca dos Pequenitos, uma pré-escola.

Braima dá uma ajuda nesse sábado de manhã, interrompida pela conversa, até que chega o aviso de que está na hora. Pede licença, despede-se da família portuguesa com abraços intensos e demorados. Está na hora, Braima. Ele vai sem saber que na segunda-feira será surpreendido com gestos de carinho na Escola Agrícola de Carvalhais, em Mirandela, onde fez o 12.º ano, e pouco depois com um voto de louvor do Instituto Politécnico de Bragança, aprovado por unanimidade pelo “ato abnegado de solidariedade, desportivismo e fair-play”.

Nem tão-pouco lhe passará pela cabeça que dali a poucos dias seria um dos quatro nomeados para o prémio fair-play da Associação Internacional das Federações de Atletismo. O vencedor será anunciado numa gala que terá lugar a 23 de novembro, no Mónaco. Tornou-se entretanto embaixador de Aruba. Tanta coisa em tão pouco tempo. “Estou orgulhoso por este reconhecimento”, dizia na última terça-feira, ao telefone, enquanto passeava com os amigos por Bragança.

Os viadutos, as pontes, as praias

Braima é todo um sorriso. Educado, genuíno, desprendido de bens materiais. Teimoso. Não gosta de falhar, não gosta que os outros falhem. Não desiste. “Quando não dá à primeira, temos de tentar.” Persistente. “Um atleta que quer atingir os seus objetivos tem de persistir. Tenho essa persistência.”

O voto de louvor do Instituto Politécnico de Bragança, aprovado por unanimidade, que surpreendeu o atleta no regresso às aulas. (Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens)

Adora chocolate, a comida da Guiné enche-lhe as medidas, por cá gosta de sopas e de francesinhas. E tem mão para a cozinha. O seu bacalhau à Brás é famoso. “Cozinho normal”, diz, com modéstia. O segredo? “O segredo é ter paciência. Em vez de comprar as batatas de pacote, compro batatas, corto-as e faço ao meu gosto.”

Braima, nascido e criado em Catió, região de Tombali, a mais de seis horas de Bissau, estrada de terra batida até Buba, alcatrão daí para a frente, chegou a Portugal por via de uma parceria da Na Rota dos Povos e da Escola Agrícola de Carvalhais, Mirandela, para trazer os melhores alunos da região de Tombali. Eram todos rapazes, reformulou-se o pedido em nome da equidade de género, seis rapazes, seis raparigas. Acabaram por vir mais três, 15 alunos ao todo.

Braima tem a data na cabeça: 26 de setembro de 2011. A primeira vez que andou de avião, Bissau, escala em Lisboa, Porto, e uma nova família à espera em Portugal. “Fomos para uma quinta para almoçar e à tarde para Mirandela.” Todo um novo Mundo. “Não tinha nada a ver com a realidade a que estava habituado.” Ficou pasmado com os viadutos, as pontes gigantes, as praias. Veio para Portugal para continuar a estudar, terminar o liceu.

“Um atleta que quer atingir os seus objetivos tem de persistir. Tenho essa persistência.”

Lá em casa, em Catió, não havia outra hipótese. O pai, inspetor da educação, agora reformado, sempre quis que os filhos estudassem, nem que tivessem de ir para longe, como aconteceu com Braima e alguns dos seus nove irmãos. Em Catió, além da escola, ajudava nas lides da casa, no campo, dava uma mãozinha numa oficina de motorizadas.

“Temos uma quinta e queria estudar agricultura para um dia saber lidar com algumas coisas.” Depois do 12.º ano, pensou num curso que não existe (Gestão da Agricultura), seguiu para Gestão no Instituto Politécnico de Bragança. A conclusão do curso está pendente por três cadeiras. Falta pouco. Em dezembro, voltará a Catió, oito anos depois de ter deixado a terra natal. Ainda não sabe o que fará. Se ficará, se voltará.

“Vai depender de arranjar trabalho. Quero trabalhar e conciliar com o meu treino. Optei por vir para cá, para estudar, para lutar pelos meus sonhos. Espero um dia poder competir com os atletas mundiais, lutar pelos pódios”, revela. Os mínimos já estão na sua cabeça.

É muito certinho, muito ciente das suas responsabilidades. Na altura das praxes, pedia aos colegas veteranos que o deixassem ir para casa porque tinha de estudar e levantar-se cedo para ir treinar. “Tinha de ir dormir, às onze tinha de estar na cama.” Uma insistência aqui, outra ali, e os alunos mais velhos percebiam e lá deixavam o estudante-atleta ir para a residência universitária. “Eles compreendiam a minha situação.”

Os treinos são levados a sério. Acorda por volta das 6.30/7 horas, uma corrida por Bragança, banho, pequeno-almoço, aulas, almoço, mais aulas, treino ao final da tarde, banho, jantar na cantina, residência. Terças e quartas, treinos mais específicos. Sexta-feira apanha o autocarro para o Porto, para a casa da família, às vezes treina. Sábado mais treinos, trata do almoço e do jantar, domingo o almoço também está por sua conta, à tarde apanha o autocarro para Bragança. Assim eram as rotinas na época de aulas, agora tem mais tempo livre com três disciplinas por fazer, os cadeirões do curso.

“Correr faz-me sentir livre”

Braima já foi e os voluntários da Na Rota dos Povos orientam o trabalho. Susana Antunes, a mãe Su, lembra-se do dia em que Braima, nas férias do 12.º ano, lhe disse que tinha vontade de correr a sério, que queria participar na Meia-Maratona do Porto. Lá em casa, ninguém percebia nada de corridas. Susana foi falar com a vizinha de cima. Havia um grupo no Parque da Cidade do Porto que corria aos sábados de manhã.

Braima e alguns dos voluntários da Rota dos Povos preparam, em Gaia, um contentor com diverso material que seguirá para a Guiné. (Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

“No sábado seguinte, fez o primeiro treino com a equipa do Parque de Cidade. Deu umas quantas voltas de avanço e eu a pensar não pode ser, ele corre muito”, recorda. Chegou ao pé de si com um sorriso de orelha a orelha. Não passou despercebido. O grupo percebeu que o novo corredor precisava de sapatilhas como deve ser, juntou dinheiro para a compra. Braima não faltava aos treinos, aos sábados de manhã, às quartas-feiras. “Gosto de correr, faz-me sentir livre, aliviado, e junto o útil ao agradável”, confessa.

É atleta do Maia Atlético Clube, José Regalo é o seu treinador há dois anos. Assistiu à prova pela televisão, ligou-lhe pouco depois a partilhar todo o seu orgulho, a responder-lhe a um “não fiz nada de especial” que “não é normal ter aquele tipo de atitude”. “O gesto não me surpreende porque o Braima é muito genuíno, dá tudo pelos outros. Podia bater o recorde pessoal e abdicou dos objetivos para ajudar um adversário”, salienta José Regalo. Atleta disciplinado, humilde, focado nos objetivos, com margem de progressão. “Muito educado, é fácil gostar dele, embora não seja muito expansivo.”

No último treino antes de ir para Doha, primeiro na Maia, depois no Parque da Cidade, Braima encontrou dez euros no chão. Foi entregar a nota ao treinador, pedindo-lhe que encontrasse quem teria perdido o dinheiro. José Regalo explicou-lhe que era quase impossível num lugar por onde passam milhares de pessoas. “Insisti para que ficasse com os dez euros, que se alguém aparecesse eu entregaria uma nota e depois o Braima dava-me o dinheiro.” Não foi fácil convencê-lo. “É um exemplo para o meu grupo do que tento passar de respeito pelos outros”, sublinha.

Susana Antunes, gestora, a mãe portuguesa de Braima e de outros jovens guineenses que estão cá a estudar, mostra o vídeo que já viu vezes sem conta, e que correu mundo, em silêncio. As imagens emocionam. A família portuguesa sabe que Braima é mesmo assim. O pai Tito Baião, economista, professor, que decidiu fundar a Na Rota dos Povos depois de ter viajado por mais de 90 países como motard, conta que Braima lhe disse que fez o que tinha de ser feito. Tito Baião ficou arrepiado, pele de galinha, quando viu na televisão o que estava a acontecer a milhares de quilómetros, num outro continente. “Um gesto destes devia ser banal”, comenta. Encheu o coração de orgulho e pensou que, afinal, há esperança na humanidade.

Susana Antunes recorda o post colocado na página do Facebook da Na Rota dos Povos, às 21.14 horas de 23 de setembro, na noite anterior a Braima partir para Doha. “E aí está ele, o ‘nosso’ filho Braima, exemplo de integridade, solidariedade, lealdade, alegria de viver e capacidade de superação, a representar a Guiné-Bissau e o seu povo, a mostrar ao Mundo que estão ali, precisam de todos nós para poderem evoluir, sim, mas têm nas suas gentes muitos ‘Braimas’ que lutam pelos seus sonhos e não desistem! Força, Braima, não queremos medalhas, queremos que levantes bem alto a tua bandeira, seremos muito a torcer por ti! Mereces cada um desses minutos!”.

“Está aqui tudo”, diz Susana Antunes. E depois de tudo, um novo post de parabéns, de orgulho, pelo coração de ouro, por “tamanha mostra de solidariedade e amor no desporto”. “Obrigado por esta lição de vida.”