Rui Cardoso Martins

Aventura no Zoológico

Ilustração: João Vasco Correia

Desta vez houve testemunhas, guardas que o prenderam debaixo de terra, na estação de metro do Jardim Zoológico de Lisboa.

Ricardo parece muito novo na sua camisola de capuz, os ténis imaculados, o nariz fininho, um brinco que reluz, o cabelo curto, o esqueleto pequeno, os braços ágeis. Mas tem 27 anos e um comprido historial nos brandos costumes violentos à portuguesa. A juíza lia-lhe a acusação, os factos soltavam-se como farrapos de pano queimado levados pelo vento: “O arguido e Andreia viveram em comunhão de bens”; “em Outubro de 2017 terminaram relacionamento”; “desde o início que controlava a vida de Andreia, lia as mensagens do telemóvel dela”; “por várias vezes, sem motivo aparente, disse que lhe iria dar um tiro e lançar uma granada para dentro da residência dela, para lhe destruir a residência”.

Ricardo fazia também “deslocações diárias à casa onde vivia Andreia, tocando à campainha” e “até 2018 telefonava todos os dias insistentemente”. Chamava-lhe “puta, vaca, desgraçada” e ameaçava que “se não vivesse mais com ela que a matava, que a ia mandar para a residência do Céu”.

Um dia “cortou-lhe a electricidade”, deixando-a sem luz. Noutra vez ainda, Ricardo perseguiu-a desde casa, Andreia entrou no metro do Jardim Zoológico e “quando descia as escadas, disse-lhe: ‘puta, vaca, cabra, andas na prostituição, sou capaz de te dar um tiro’”. Andreia pediu ajuda e os vigilantes do metropolitano detiveram-no quando tentava sair do buraco.

Andreia tem um filho de uma anterior relação, foi mãe aos 15 anos, e Ricardo pegava nesse passado, que aparentemente lhe provocava enormes ciúmes, para exigir saber tudo da vida dela.

– Sobre os factos, quer falar?

– Não.

Andreia não apareceu no julgamento, mudou outra vez de casa. Ana Maria, operadora comercial do Metro, testemunhou:

– Eu estava de serviço na estação do Zoológico e aparece uma senhora a pedir ajuda, a dizer que o ex-namorado lhe queria bater. Pu-la dentro da cabine e chamei a polícia. E ele apareceu de novo e gritou para a cabine: “Sua puta, vou-te apanhar, vou-te matar”. Depois o rapaz pôs-se em fuga.

– Foi este senhor?

– Eu não o posso reconhecer. Foi só uns segundos. E tinha o capuz na cabeça.

– Mas, na altura, a senhora que estava dentro da cabine reconheceu a pessoa?

– Sim, disse que era o ex-namorado.

Olhei também eu para Ricardo e a funcionária do Metro tinha razão em chamar-lhe rapaz. De costas, um miudinho. Isso acentuava a desoladora certeza de que todos os estereótipos de violência conjugal, de domínio das mulheres pela força, de “se não és minha, não serás de ninguém”, continuam a reproduzir-se nos casais novos, e que mais banhos de sangue virão.

Mas era difícil imaginar o rapazinho no seu papel social de abusador, de ar tão frágil, magro, olhos abertos de primata ou marsupial, e então lembrei-me da estação do Jardim Zoológico, paragem diária na minha juventude, e do caso do lémure. Num dia de Novembro de 2005, às 7h30 da manhã, um lémure curioso fugiu do Jardim Zoológico por um buraco na rede e desceu ao metro.

Só conseguiram apanhá-lo quase na Rotunda do Marquês, fez quilómetros nos túneis, e a linha azul esteve parada uma hora no período de maior circulação. Mas, como disse o presidente do Metro, o lémure é um “animal dócil e curioso”, que “não é agressivo”. E também me lembrei da ida ao zoo de Tóquio, e do meu encontro com o primo do lémure, o aye-aye, um animal espantoso, nocturno e raríssimo, que tem uma mão-garra com dedos disformes – um do meio finíssimo, outro ao lado gigante – que servem para tirar as larvas do interior das árvores.

É tão feio na sua máscara peluda que em Madagáscar lhe chamam “primata demónio” e infelizmente matam-nos porque, acreditam muitos nativos, vê-los anuncia a morte (e os aye-aye não se importam de aparecer em público). Olhei-o na penumbra e acho que me apontou (até ao momento em que vos escrevo, eu estava cá…). Segundo os dicionários, lémure vem do latim “lemures”- espíritos dos mortos. Esperemos, Ricardo, que fiques quieto depois desta lição, já há desgraças que cheguem.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)