Assédio moral. Quando o trabalho se torna um pesadelo

Texto Sofia Teixeira | Fotografia Shutterstock

Jorge [nome fictício], 57 anos, ex­‑vendedor da delegação norte de uma multinacional, gostaria de dizer o seu nome, o da empresa e do chefe que lhe fez a vida num inferno durante três anos. Se não o faz é porque não pode. Levou o processo de assédio moral a tribunal e tinha provas mais do que suficientes para ganhar, por isso, a empresa quis chegar a acordo.

Pagou­‑lhe todas as compensações devidas pelos 23 anos de casa, uma indemnização por danos morais, passou a carta para ele receber subsídio de desemprego, mas, em troca, exigiu­‑lhe a assinatura de um documento comprometendo­‑se a não denegrir o nome da empresa.

Comprou o seu silêncio, portanto. «Se fosse hoje, tinha avançado com o processo porque não há dinheiro que pague aquilo que me fizeram e os danos que me causaram. Tiveram de pagar, o que me serviu para montar um pequeno negócio próprio, mas conseguiram o que queriam: pôr­‑me na rua.» Dez anos depois, a voz ainda lhe treme ao contar a injustiça.

Já estava há mais de 15 anos na empresa quando resolveu sindicalizar­‑se, já que era uma forma de se poder aconselhar com um advogado, numa fase em que estava em processo de divórcio. Alguns colegas trataram logo de o avisar: «Atenção, a empresa não gosta de sindicalistas nem de sindicalizados. Não faças muitas ondas.»

A reunião terminou com o diretor­‑geral da empresa a atirar­‑lhe para cima da mesa os documentos pedidos ao mesmo tempo que fazia uma promessa: «De hoje em diante, quem trata de ti sou eu.»

E Jorge não as fez, mas, tempos depois, esqueceu­‑se disso e foi ao departamento de pessoal pedir informações sobre o seu contrato de trabalho, nomeadamente a categoria. O funcionário avisou o chefe do departamento de pessoal que por sua vez avisou o diretor de recursos humanos, que por sua vez advertiu o diretor­‑geral.

No dia seguinte estava sentado sozinho de um dos lados de uma mesa gigante, com quatro pessoas do outro lado a fazerem­‑lhe perguntas. «Na altura nem tinha noção, mas eles tinham medo dos sindicatos porque havia uma série de incumprimentos a nível de gestão e de recursos humanos», conta Jorge.

A reunião terminou com o diretor­‑geral da empresa a atirar­‑lhe para cima da mesa os documentos pedidos ao mesmo tempo que fazia uma promessa: «De hoje em diante, quem trata de ti sou eu.»

Jorge nunca pensou que a ameaça fosse tão séria, até porque era uma referência dentro da empresa. Entre 500 vendedores estava sempre entre os dez melhores. Mas isso não lhe valeu de muito, passou de bestial a besta logo no dia seguinte.

Por indicação das chefias, os colegas e clientes deixaram de lhe atender o telefone e de falar com ele, foi­‑lhe colocado um sistema de GPS no carro para o vigiar, davam­‑lhe dez clientes num dia e tiravam­‑lhos no dia seguinte.

Aguentou uns meses, não muitos. Acabou em casa de baixa com uma depressão e desenvolveu transtorno obsessivo­‑compulsivo (TOC). Deu cabo da vida profissional, do sono, da saúde, da estabilidade, do segundo casamento.

Depois passaram aos verdadeiros requintes de malvadez. «Esperavam que estivesse a chegar a um cliente, a 50 quilómetros da sede, e ligavam a pedir para eu voltar atrás. Eu chegava ao escritório, meia hora depois, perguntava o que se passava e a resposta era esta: “É para levar esta esferográfica mais grossa para preencher o relatório de visita, a sua é muito fina e o chefe não percebe a letra. Agora pode ir outra vez.” Aconteceu várias vezes.»

Aguentou uns meses, não muitos. Acabou em casa de baixa com uma depressão e desenvolveu transtorno obsessivo­‑compulsivo (TOC). Deu cabo da vida profissional, do sono, da saúde, da estabilidade, do segundo casamento.

Foi usado como exemplo para transmitir esta mensagem: quem faz perguntas e quem se sindicaliza não é a favor do diretor. Se não é a favor é contra, e, se é contra, vai ter a vida transformada num inferno. «Anos depois de eu ter saído, se alguém questionava alguma coisa ou reclamava direitos, ele dizia: “Lembrem­‑se do Jorge.” Não é à toa que uma empresa de quase mil pessoas não tinha comissão de trabalhadores. As pessoas tinham medo.»

«As principais razões para não reagir são ter medo de ser despedido/a. Pouco mais de 5 por cento procura a CITE, a Autoridade para as Condições de Trabalho, sindicatos ou outros organismos de defesa dos direitos.»

Medo é a palavra certa. Só isso explica as diferenças entre os casos estimados e as denúncias. O estudo Assédio sexual e moral no local de trabalho em Portugal, do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG), publicado em 2016, mostra que 16,5 por cento da população ativa portuguesa já viveu alguma vez uma situação de assédio moral.

Contas feitas, falaremos de um número superior a 850 mil pessoas. Apesar disso, entre 2010 e 2016, a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) recebeu apenas 26 queixas neste âmbito. «A acusação significa denunciar a entidade empregadora.

É fundamental compreender a conjuntura e o risco que o desemprego representa para as pessoas», defende Dália Costa, cocoordenadora do CIEG e uma das autoras do estudo. E é isso que explica, maioritariamente, as atitudes das pessoas face ao problema: esperam que a situação não se repita, falam com colegas ou não fazem nada.

«As principais razões para estas reações são ter medo de ser despedido/a e de sofrer consequências profissionais. Pouco mais de 5 por cento procura a CITE, a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT), sindicatos ou outros organismos de defesa dos direitos.» A investigadora explica que, por um lado, os direitos dos trabalhadores a este nível estavam pouco protegidos, por outro, na sociedade portuguesa não existe uma prática de denúncia muito frequente.

A Lei nº 73/2017, de 16 de agosto, que entrou em vigor em outubro de 2017, veio reforçar o quadro legislativo existente, com o intuito de prevenir e combater o assédio no local de trabalho.

«É ainda fundamental perceber que se mantém na sociedade uma cultura de culpabilização da vítima e as pessoas sabem­‑no. Assim, receiam o que os outros possam ajuizar sobre si, sobre o seu comportamento; querem evitar comentários sobre a sua personalidade ou maneira de estar nas relações de trabalho.»

Para quem decide fazer queixa hoje, as coisas são diferentes do que foram para Jorge, há quase dez anos. A Lei nº 73/2017, de 16 de agosto, que entrou em vigor em outubro de 2017, veio reforçar o quadro legislativo existente, com o intuito de prevenir e combater o assédio no local de trabalho.

Das alterações introduzidas, a advogada Carolina Amante, autora do livro A Prova no Assédio Moral (Nova Causa, 2017), destaca a «obrigação de a entidade empregadora punir o trabalhador assediante» ­– embora expresse dúvidas acerca da aplicabilidade prática desta medida ­–, o facto de «as testemunhas no processo passarem a ser obrigatoriamente notificadas pelo tribunal» e ainda ter passado a existir «uma presunção de que qualquer sanção, incluindo o despedimento, aplicada a trabalhador que tenha feito queixa por assédio moral é abusiva».

Além disso, lembra, do ponto de vista da prevenção, as empresas com sete ou mais trabalhadores são agora obrigadas à adoção de códigos de boa conduta para a prevenção e combate ao assédio no trabalho. Uma das críticas à nova lei tem sido o assédio continuar a ser contemplado como uma contraordenação, não como um crime.

Mas a advogada acha que esse não é um problema central, já que, não existindo uma criminalização específica do assédio moral, isso não significa que não seja possível sancionar a conduta através de outros crimes previstos no Código Penal, nomeadamente o crime de perseguição (artigo 154º­‑A), ofensa à integridade física simples (artigo 143º), ofensa à integridade física grave (artigo 144º) e ofensa à integridade física qualificada (artigo 145º).

«Se o tribunal considerar que o trabalhador não tinha justa causa para se despedir, não só não recebe o dinheiro da compensação como tem de devolver o que recebeu à Segurança Social.» Está em causa muito tempo, muito desgaste, muito dinheiro e muita incerteza.

Houve melhorias, mas isto não significa que um trabalhador que queira mover uma ação por assédio moral não continue a enfrentar muitos problemas. Desde logo o económico. A única forma de o trabalhador se despedir e ter direito à compensação e ao fundo de desemprego é invocando o assédio moral como justa causa para o despedimento, tendo para isso de interpor uma ação.

«Durante o período em que a ação corre na 1ª instância – no mínimo um ano e meio até ter a sentença – mais o tempo dos recursos ­– que poderão ser outros dois anos ­– o trabalhador recebe o fundo de desemprego, que corresponde a 65 por cento do seu vencimento. Logo aí o impacto económico é enorme», defende a advogada.

Depois, porque a prova não é fácil, há o risco de perder. «Se o tribunal considerar que o trabalhador não tinha justa causa para se despedir, não só não recebe o dinheiro da compensação como tem de devolver o que recebeu à Segurança Social.» Está em causa muito tempo, muito desgaste, muito dinheiro e muita incerteza.

Precisamente o problema que Gabriela [nome fictício], de 53 anos, enfrenta. É a segunda vaga de assédio moral que sofre no mesmo sítio, com superiores hierárquicos diferentes. São quase 12 anos a ser maltratada.

«Gritava comigo a propósito de tudo, humilhava­‑me dizendo que não percebia como é que eu tinha conseguido fazer uma licenciatura.» A cartilha habitual do assédio foi sendo seguida à risca e passou das palavras aos atos.

Licenciada em Gestão Empresarial, com uma pós­‑graduação e um mestrado na mesma área, trabalha na empresa desde 2003 e notou, logo em 2006, que uma das administradoras a tomou de ponta. Começou «apenas» por implicar com ela e com o seu trabalho, desconsiderando as propostas que apresentava. Mas a violência foi escalando.

«Gritava comigo a propósito de tudo, humilhava­‑me dizendo que não percebia como é que eu tinha conseguido fazer uma licenciatura.» A cartilha habitual do assédio foi sendo seguida à risca e passou das palavras aos atos: a descida de categoria profissional, a alteração do local de trabalho, o esvaziamento de funções. Cedeu à pressão e teve uma depressão, ficando meio ano de baixa psiquiátrica. Voltou e deram­‑lhe o mesmo tratamento. Voltou para casa com nova baixa durante 10 meses.

Quando voltou ao trabalho, o administrador tinha mudado, mas a queixa que ela tinha feito na ACT ­– que foi arquivada ­–manteve­‑a na mira do recém-chefe empossado. Esteve durante quase dois anos noutras instalações da empresa, sozinha, sem telefone nem internet e com pouco ou nada que fazer.

«Neste momento voltei às instalações principais, mas sou uma espécie de administrativa de 5ª categoria. Não tenho autonomia nem para enviar um e­‑mail sozinha, tenho primeiro de enviar para o meu superior para ele ler e fazer correções.»

Ganha pouco mais de 900 euros, o mesmo que ganhava há 12 anos, antes de ser despromovida, o que a deixa sem grandes recursos. «Não tenho dinheiro para contratar um advogado nem para ter acompanhamento psicológico. A depressão debilita­‑me até cognitivamente: já cheguei a ir à médica de família a achar que podia estar com Alzheimer», conta.

«Já estive à beira de suicídio, tal é a forma como isto me afeta. Vou quase todos os dias para o emprego com as lágrimas a correr cara a baixo.»

Não vê grandes alternativas. «Tenho 53 anos. Se me despeço, vou trabalhar para onde? Vivo como, com o meu marido reformado antecipadamente e a receber pouco?» São oito horas de inferno, cinco dias por semana, há muitos anos. Não vê luz ao fundo do túnel.

«Já estive à beira de suicídio, tal é a forma como isto me afeta. Vou quase todos os dias para o emprego com as lágrimas a correr cara a baixo. Já nem me pinto. Tento pensar que são oito horas de sacrifício e depois tenho 16 horas para viver a minha vida.»

Mas quase nunca consegue desligar verdadeiramente. O assédio moral tem um custo para a saúde, bem­‑estar, vida profissional e emocional, mas denunciar tem um custo financeiro que ainda nem toda a gente pode pagar.

Assédio moral: o que é?

O assédio moral define­‑se como um conjunto de comportamentos indesejados, percecionados como abusivos, e praticados de forma reiterada, podendo consistir
num ataque verbal com conteúdo ofensivo ou humilhante ou em atos subtis, que podem incluir violência psicológica ou física. Tem como objetivo diminuir a autoestima e pôr em causa a ligação do trabalhador com o local de trabalho.

A prova no assédio moral

É a questão mais difícil nos processos de assédio moral. «Era urgente a inversão do ónus da prova, e não a simples repartição, como existe», defende Carolina Amante, autora do livro A Prova no Assédio Moral (Nova Causa, 2017). «As únicas pessoas que presenciam os comportamentos do assediante são normalmente outros trabalhadores, pelo que do ponto de vista da prova testemunhal esta será sempre condicionada pela dependência económica destes.

Já a prova documental nem sempre existe, ou o trabalhador deixa de lhe ter acesso, por exemplo, quando lhe são retirados instrumentos de trabalho como o computador pessoal.» Por essa razão garante que importante é que as ações nesta área sejam bem estudadas e preparadas. «Implica tempo e, consequentemente, que o trabalhador tenha força suficiente para suportar os comportamentos assediantes enquanto se reúnem os elementos probatórios necessários.»