Poses sensuais, sorrisos de orelha a orelha, gestos vitoriosos e até encenadas caras de espanto face a placas com o sinal de radioatividade. Nas últimas semanas, Chernobyl, cidade ucraniana onde decorreu o maior desastre nuclear da história da humanidade, tornou-se palco para um sem fim de fotos de gosto no mínimo duvidoso.
As imagens, publicadas e partilhadas descomplexada e abundantemente nas redes sociais, têm suscitado críticas à escala global, fazendo eco em meios de comunicação social. A reprovação adensa-se face às conhecidas consequências do desastre de 1986: 31 mortes por causa direta, uns quantos milhares a longo prazo (as estimativas oscilam entre os quatro mil e os 90 mil óbitos).
Uma brutalidade que dificilmente deixa espaço para fotografias levianas, nalguns casos até sinistras, como as que se têm espalhado pela Internet. Estaremos perante uma demonstração suprema de insensibilidade? A luta pelos gostos nas redes sociais justifica todos os meios? Será esta uma forma sui generis de lidar com um ambiente pesado? Ou há entre os autores destas fotos, invariavelmente jovens, um desconhecimento histórico tal que lhes rouba a perceção dos factos e dos gestos?
No auge da discussão em torno da moda das selfies mórbidas, estas e outras questões têm vindo à tona. E o mais provável é que na resposta caibam todas estas possibilidades.
João Teixeira Lopes, sociólogo com trabalho feito na área da cultura, educação e juventude, avança com várias explicações possíveis, a primeira das quais relacionada com a aceleração da contemporaneidade.
“Vivemos cada vez mais rápido, há um espécie de culto do instantâneo. Isso faz com que o sentido de continuidade e a narrativa histórica se vão perdendo. As pessoas estão mais preocupadas com o aqui e o agora.” Junte-se a isso o culto da imagem (“quem não aparece nas redes sociais não existe”) e o culto da experiência turística. E eis que a ditadura das selfies começa a ganhar forma.
O professor universitário invoca ainda uma certa “banalização do horror e do mal”, com todos os perigos que isso acarreta. “É como se fizessem parte de uma realidade virtual, quase como nos videojogos, o que pode significar uma maior tolerância à violência. Quem banaliza e acha que é tudo uma experiência turística, sem pensar no sofrimento que isso causa, é alguém que convive bem com a violência e os seus efeitos. Há uma anestesia social e simbólica face à violência e ao horror, em favor desse culto da imagem, da aceleração, da experiência, do culto turístico.”
Este culto da imagem, associado ao culto turístico, bate agora à porta de Chernobyl, muito graças à minissérie televisiva homónima exibida pela HBO – canal de televisão americano por assinatura, com serviço de streaming em Portugal -, que retrata os eventos em torno do acidente nuclear.
O impacto da série tem sido tal que uma agência de turismo de Chernobyl relatou recentemente à Reuters um aumento da procura turística na ordem dos 40%. À boleia do incremento das visitas vem, claro, o boom das selfies, morbidez incluída. Tanto que o escritor e produtor da série, Craig Mazin, apelou aos fãs que se comportem com respeito “para com todos os que sofreram e se sacrificaram”.
Mas a “moda” nem é nova. A polémica tinha sido já levantada em Auschwitz, com a publicação de retratos jocosos no campo de concentração. Ainda em março deste ano, o Museu de Auschwitz recordou que a história do local e a memória das vítimas devem ser respeitadas.
O alerta, feito via Twitter, era acompanhado por várias fotos em que se podiam ver turistas a caminhar sobre os carris, com um ar divertido. “Há lugares melhores para aprender a andar num trilho com equilíbrio do que o local que simboliza a deportação de centenas de milhares para a morte”, podia ler-se no tweet.
Falta de memória coletiva? Manuela Teixeira, professora de História no Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, não acha. “Pela minha experiência pessoal, há um enorme respeito dos alunos em relação ao que aconteceu em Auschwitz. Mais do que isso, há um grande interesse, há uma grande vontade de procurar e de evitar que volte a acontecer. Tenho a certeza que estão sensibilizados para o que aconteceu ali.”
Referindo-se ao programa adotado pela disciplina em Portugal, admite que, no caso do acidente nuclear de Chernobyl, “a abordagem não é tão pormenorizada”, o que pode eventualmente explicar alguma leviandade, mas deixa um alerta: “Tem-se feito um grande alarde destas situações, mas são poucos os jovens que o fazem. São claramente uma minoria”.
Catarse e “turismo negro”
E se as selfies aparentemente levianas forem uma forma de lidar com o ambiente pesado? Rosa Amaral, psicóloga clínica, admite que foi uma das possibilidades que colocou quando começou a ver as notícias de Chernobyl.
“Tenho casos de pessoas que enfrentaram cancros, por exemplo, e que depois disso têm comportamentos bizarros, quase como se voltassem a ficar infantis. O que me passou pela cabeça [quando viu as imagens] é que as pessoas, exatamente por terem consciência de que naquele local aconteceram grandes atrocidades, possam ter tido necessidade de contrariar esse ambiente pelo outro extremo, da boa disposição e até da sensualidade. Uma vontade completamente desadequada face ao olhar de quem respeita o local, mas que para aquelas pessoas foi um momento de libertação, quase como uma reação pós-traumática.”
Reconhecendo tratarem-se de “deambulações teóricas”, Rosa Amaral considera ainda uma outra possibilidade, bem mais simples, bem mais redutora. “Pode simplesmente haver uma insensibilidade egoísta, uma distância emocional, como no caso das pessoas que quando veem um acidente se põem a filmar em vez de chamar o 112.”
As selfies mórbidas invocam necessariamente um outro tópico que, ainda assim, tem traços bem distintos. Falamos do “turismo negro”, associado a viagens para locais que foram palcos de grandes tragédias. O termo surgiu na década de 1990, numa altura em que vários estudiosos tentavam perceber porque é que o local onde foi assassinado o presidente americano John F. Kennedy, em 1963, se tinha tornado um íman para turistas.
Todavia, o conceito existe, pelo menos, desde o início do século XVIII, quando Pompeia, a cidade romana destruída por um vulcão no ano 79, começou a ser amplamente visitada.
Philip Stone, diretor executivo do Institute for Dark Tourism Research, da University of Central Lancashire (Inglaterra), sublinha à “Notícias Magazine” a relação estreita entre o turismo e a fotografia, admitindo que o propósito das imagens tem vindo a mudar.
“Hoje, o foco da fotografia turística é mais capturar as relações sociais e permitir acesso imediato através das redes sociais. Essas relações sociais ocorrem entre o turista, o destino e quem está em casa. As selfies passam não só a mensagem ‘eu estive aqui’, mas também ‘eu estou aqui, agora mesmo, a ter esta experiência em tempo real e aqui está a prova’.”
Ressalvando que o dilema moral de tirar este tipo de selfies tem sido cada vez mais abordado pelos media, o que “não quer necessariamente dizer que haja uma tendência crescente”, o investigador defende ainda que as fotos tiradas em locais onde ocorreram grandes tragédias funcionam como um espelho do nosso tempo e como uma espécie de substituto para a observação dos acontecimentos na primeira pessoa.
E deixa uma dúvida: “O que falta perceber é se as selfies do turismo negro comunicam emoção e consciência da envolvência ou se simplesmente facilitam conversas online, com os turistas completamente alheados da realidade”.
Dom Joly, comediante, jornalista e escritor de viagens inglês, é apaixonado pelo turismo “negro”. Irão, Coreia do Norte, Sarajevo, Chernobyl, Beirute e Síria, Camboja e Congo são alguns dos destinos já visitados pelo autor do livro “Dark Tourist”. O seu fascínio com este tipo de turismo tem a ver com o facto de poder tocar a história.
“Sou obcecado com a história e a política e, para mim, a oportunidade de caminhar em locais que tiveram esta importância é um vício”, justifica à NM. Já as selfies que têm corrido o Mundo são outra coisa, bem diferente. Dom Joly é corrosivo: “A ‘selfie negra’ é um produto das redes sociais e em muitos casos é compreensível. É uma foto de férias interessante. Mas quando as pessoas se começam a despir em Chernobyl, ou a tirar selfies malucas nos carris de Auschwitz, são só uns perfeitos idiotas. E não deviam ser autorizadas a viajar.”