Texto de Pedro Emanuel Santos | Fotos de Gonçalo Delgado/GI
O ritual é não ter rituais. Cada atuação uma experiência nova, cada cidade uma possível surpresa, cada palco um desafio solitário. Um homem diante de plateias repletas, sozinho contra o Mundo naquela quase hora e meia. Têm sido assim os dias de Salvador Martinha desde que iniciou a digressão nacional do atual espetáculo de stand-up comedy. “Diante do público, sinto a morte, mas não posso morrer. Essa proximidade com a morte mantém-me vivo”, define, quase dramático, a revelar verdade nunca antes confessada.
“Cabeça Ausente”, assim foi batizado o show, em que Salvador, 35 anos – completa 36 a 6 de abril -, relata as divagações sobre o que lhe passa pelas ideias quando se alheia de tudo. “Quase sempre, portanto”, admite este lisboeta alto, barba preta bem aparada que já é imagem de marca, de olhar incisivo captador dos mais delicados pormenores daquilo que o rodeia. Como se lançasse permanentemente para o cérebro flashes de uma ironia assertiva, aquela mesma que corta e deixa finas cicatrizes que obrigam a lembrar que a realidade deve ser olhada em tons oficiais de liberdade mordaz.
Salvador é assim, um arguto observador permanente. “Aproveito-me muito disso para os meus espetáculos, em particular para este ‘Cabeça Ausente’”, diz, enquanto o relógio vai acelerando em contagem decrescente para nova entrada em cena. Desta vez em Braga, no imponente Theatro Circo (assim mesmo, com H, edifício do início do século XX com interior de inspiração italiana, 897 lugares em quatro pisos que remetem para passados operáticos de pompa, espécie de viagem ao passado em sala considerada das mais sofisticadas e eficazes da Europa, tanto assim que faz parte de restrita rede continental de teatros históricos).
Foi no Theatro Circo que a “Notícias Magazine” o encontrou, sozinho no meio do palco – como sempre está, aliás. O relógio batia as 18 horas, luzes e som em derradeiros testes de afinação e primeiras sensações a retirar de um Theatro Circo que, mesmo vazio, parecia lotação esgotada de imponência, ainda em fase de processamento. “Isto é muito bonito, não é?”, pergunta-nos Salvador Martinha, abismado com o cenário onde logo mais encontrará quase mil pessoas sentadas naquelas filas de cadeiras vermelhas.
“Cada público é diferente, isso ainda é verdade. Mas cada vez mais as referências são as mesmas independentemente do local da atuação. Todos têm acesso ao mesmo tipo de conteúdos através da internet, é tudo muito global”, entende.
“Fazer com que as pessoas sintam que estou em casa”
O guião de cada espetáculo é sempre o mesmo, apenas alguns acrescentos adaptados cirurgicamente. “Se estiver em Braga, falo de umas coisas de Braga com que todos se identifiquem; no Porto a mesma coisa; se for a um cidade do Alentejo também, e por aí fora.” O objetivo é simples: “Fazer com que as pessoas sintam que também eu estou em casa, como elas”. Uma relação de proximidade que aproxima o guião de sempre com o cenário que é de Salvador apenas durante uma noite, mas que é o dos outros todos os dias.
“Querem ver o camarim?” Fomos, claro. Até o alcançar, vindos do palco, são cinco andares subidos de elevador que vão dar a uma porta escura ilustrada apenas com o nome do artista que daí a horas será a estrela da noite. Poucos metros quadrados – “estavam à espera de uma coisa enorme, estilo Estados Unidos, confessem lá!”, brinca Salvador – que “dão perfeitamente” para a função. Um espelho com lâmpadas, uma mesa, duas cadeiras, uma pequena televisão LED, ao lado um espaço para duche e casa de banho – “mas sem toalhas”.
Espalhadas na mesa, as únicas exigências de Salvador Martinha, obrigatórias em cada espetáculo seja qual for a paragem: vodka, latas de Red Bull, água e frutos secos. Nada mais, a não ser paz, sossego e excertos do texto cravados no vidro do espelho, para ir recordando aqui e ali. E que haja música q.b. nos minutos que antecederão a chegada ao palco.
Salvador olha para o relógio. “O melhor é ir jantar.” O destino é um restaurante bem no centro de Braga, não muito longe do Theatro Circo. Mesmo assim, porque a chuva é tão inclemente que não dá tréguas nem a um artista com nome nacional, o melhor foi ir de carro.
“Como diz Herman José, se vamos para palco com fome parecemos uns caçadores a quererem devorar tudo, se formos empanturrados de comida iremos sentir-nos pesados e as coisas não sairão bem. O melhor é o meio-termo.” Por isso, o horário da última refeição antes da entrada em cena é sagrado: na hora e meia anterior, pelo menos. Nada que impeça um bem constituído Bacalhau à Braga, regado com um pouco mais do que um copo de vinho tinto.
Depois da sobremesa, a contagem decrescente para o início do espetáculo no Theatro Circo. Nervos? “Alguns, claro. No dia em que os deixar de sentir vai tudo correr mal.” Uns dez minutos antes da hora e o retiro habitual, espaço de solidão. Salvador Martinha com Salvador Martinha, ele apenas e só. No camarim como será daí uns tempos quando entrar em cena.
“Sou uma pessoa igual às outras. Nunca me sinto o maior, só quando subo ao palco. As pessoas não pagam bilhete para ver um espetáculo de quem seja igual a elas, querem sempre alguém melhor. Se não, ficavam em casa”, desabafa.
Rótulos e injustiças
Salvador Martinha foi dos primeiros nomes a despontar na stand-up comedy nacional, registo que chegou a Portugal já depois de ultrapassada a entrada no século XXI, muitos anos depois de se ter tornado quase instituição em países como os Estados Unidos, e teve forte impulso com a sagrada transmissão na SIC, todas as segundas-feiras à noite entre 2003 e 2006, do programa “Levanta-te e Ri”, apresentado por Marco Horácio, por onde passaram e ganharam projeção figuras como Ricardo Araújo Pereira (ainda antes da explosão dos “Gato Fedorento”), Bruno Nogueira, Aldo Lima, Francisco Menezes ou Fernando Rocha.
E dezenas de outros comediantes, como Salvador, claro – ainda há vídeos disso mesmo no YouTube, oportunidade rara para o poder ver sem barba, aliás. “Não tinha técnica nenhuma”, chegou a admitir em entrevista ao podcast “Maluco Beleza”, de Rui Unas.
O rótulo de humorista – “essa espécie de doença, constante distorção da realidade de quem olha sempre o mundo através de uma lente cómica” – não o ofende, bem pelo contrário. Orgulha-se disso, apenas lamenta que a classe, a sua classe, seja, por vezes, definida com desdém por quem ainda teima rotular os comediantes como seres menores da representação. “Porque parece fácil e tudo o que parece fácil não pede um aplauso de pé. É injusto”, lamenta.
Seguiu-se mais televisão, como em “Sal”, na SIC, em 2014, ou em aparições noutras séries e programas dessa e de outras estações, houve espaço para escrita humorística em jornais (no desportivo “Record”, por exemplo), para pequenas participações em cinema e em programas de rádio, até para um podcast no Itunes em que é protagonista, “Ar Livre”, e um canal de YouTube, com “Sou Menino Para Ir”. Fez, até, história ao tornar-se, em outubro de 2016, no primeiro português a estrear um espetáculo na Netflix, “Na Ponta da Língua”. Quinze anos num parágrafo só de muita vida, portanto. Com uma filha, pelo meio. Sportinguista, sempre.
Depois, há as atuações a solo país fora, sala a sala, público a público, gargalhada a gargalhada. “Vida pessoal é melhor esquecer durante os meses de digressão. São espetáculos, espetáculos e mais espetáculos, não há tempo para mais nada”, descreve Salvador Martinha. Têm sido assim os meses e dias desde 2010, quando estreou “Salvador Está Numa Relação a Solo”.
Depois, em 2012, com “Salvador ao Vivo”; 2014, com “Cábula”; “Na Ponta da Língua”, em 2015; “Salvador Anti-Herói”, no ano seguinte; “Centro das Atenções”, em 2017. A saga repete-se agora com “Cabeça Ausente”, que começou a 16 de outubro de 2018, com quatro datas no Porto, e foi passando por Alenquer, Almeirim, Fafe, Lisboa, Portalegre, Guimarães, Maia, Viseu, Seia, outra vez Lisboa, Alcobaça, Estoril, de novo Lisboa, Leiria, Aveiro, Rio Maior, Braga, Funchal, terceira vez Lisboa, Chaves, Caldas da Rainha, Coimbra, Faro, Beja, o repetido Porto, Guarda… Uma autêntica estrada nacional com quilómetros contados em formato stand-up comedy.
“Correu bem, não correu?”
Salvador Martinha entra confiante na sala do Theatro Circo, ouve os primeiros aplausos, dispara as primeiras deixas, sente a reação da audiência, interage, sente o pulso ao Theatro Circo. O relógio avança, meia hora, 45 minutos, galga até à hora e meia. Sempre sozinho. Contra o Mundo. Quase a correr, dinâmica em alta, sem um só segundo de paragem que deixe a plateia em suspenso.
“Tenho mais jeito para lidar com mil pessoas do que no um para um. No palco estou completamente confortável”, garante. Um desafio solitário que encara com a normalidade de quem conversa à mesa com amigos. Apenas com o tal fio de responsabilidade que o envolve e o mantém em permanente alerta, a cabeça no cepo como não se cansa de dizer, essa proximidade com o desastre.
O pano correu e Salvador Martinha surge-nos ofegante, como se tivesse deixado o palco mas ainda sentisse aquelas cadeiras a aplaudi-lo, a rir com ele, a deixar-se enredar em partilhas satíricas e cómicas de uma realidade por ele transformada em texto de comédia.
“Feito! Correu bem, não correu?” O espetáculo terminara há menos de cinco minutos, a adrenalina ainda bomba, disparada. Amanhã há mais. Até lá, Salvador Martinha vai continuar alheado de todos, a captar os tais solitários e inteligentes flashes que um dia serão deixas perfeitas noutro espetáculo qualquer. No do Porto, por exemplo, onde vai estar quarta-feira, dia 27, na Casa da Música; ou na Guarda, segunda-feira 4 de março, no Teatro Municipal. De “Cabeça Ausente” mas de olhos atentos ao Mundo.
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Salvador Martinha: “Ser humorista é uma espécie de doença”