
Texto de Pedro Emanuel Santos
José Pinto não fala, é uma rima constante em movimento agitado. Camisa e calças pretas, olhos vivos em 1,65 m de gente, 74 anos que o rosto em permanente sorriso não denuncia, mais de meio século de ofício de barbeiro no corpo. Cada dizer seu é um ensaio de quadra popular. Dá as boas-vindas a um homem de meia-idade que entra na Barbearia Invicta, senta-o numa das cadeiras cinzentas que fazem pendant com o chão brilhante da mesma cor, pergunta-lhe ao que vem e dispara um improviso: “Com licença, tenho um prazer imenso em estar em sua presença”.
Assim são os dias na Invicta, aberta desde 1968 num primeiro andar da Praça Carlos Alberto, coração de um Porto onde sobram turistas e vai faltando gente que o habite. Um clássico que vai resistindo ao boom das novas barbearias, as barber shops da moda e do momento, menos formais no aspeto e mais alargadas no conceito, mais modernas de alternativas e menos antigas na média etária dos clientes. Algumas com pequenos bares e mesas de bilhar que atenuam horários de espera, outras com música ambiente à escolha do freguês, muitas com tudo isso e outros pequenos aperitivos que fazem esquecer o que se convencionou sobre o que deve ser uma barbearia, como toalhas quentes e frias para fazer a barba, cremes e afins.
“Cada coisa no seu lugar. Quem é cliente fixo não vai a mais lado nenhum. Nós não perdemos clientes por causa deles, continuamos a ter marcações a toda a hora, conforme pode ver”, garante José Pinto, enquanto mostra a tabela com as reservas para o dia, preenchida e quase sem margem para espaços em branco.
Na estreita estante que se apresenta debaixo do enorme espelho frente à cadeira, José Pinto tem tudo o que é necessário à sua arte. Tesouras, pentes, até as velhas navalhas que escanhoam barbas teimosas e aparam cabelos em desalinho. “Trabalho com a navalha, o cabelo fica certinho sem qualquer falha”, atira. Em quase verso, como quase sempre. “Tenho jeito, sai-me do peito”, justifica-se sem deixar que a prosa se intrometa no discurso rimado.
Ministro com sapatos trocados
E as conversas de barbeiro ainda são como dantes? A resposta de José Pinto chega em rima, claro está, sempre pronta, improvisada no momento, saída como flecha rápida de palavras: “A cadeira do barbeiro é um centro cultural, fala-se do mundo inteiro, fala-se do bem e do mal”.
E fala-se, também, com personalidades de estatuto, que fogem ao anonimato comum. Como Rui Rio, esse mesmo, agora mais fugidio, antes assíduo embora nada pontual.

“Desde que foi para líder do PSD que é raro cá vir. Como passa mais tempo em Lisboa, é natural que corte lá o cabelo”, perdoa-o José Pinto. Alturas houve em que a visita de Rui Rio era mais do que frequente. Às vezes, até fora de horas, quando o salão já fechara portas. “Quando ele era presidente da Câmara do Porto, muitas vezes ligava-nos a pedir para que o atendêssemos já depois do horário de encerramento. Nunca recusámos, abrimos-lhe sempre a porta. Como ele tinha muitas coisas para tratar na Câmara, era-lhe complicado vir antes.”
Conservador, Rio jamais ousou alterar o figurino capilar. Corte tradicional, aparo normal, sobriedade que não denunciasse mudanças drásticas de visual. “Às vezes, quando aparecia com o cabelo mais comprido, até parecia que ganhava um rabinho de cavalo. Era sempre para cortar.”
Na Barbearia Invicta até um engraxador chegou a fazer parte da mobília humana. O mesmo engraxador que um dia se desmanchou a rir quando se apercebeu da confusão que ia na indumentária de um ex-ministro dos tempos de Cavaco Silva primeiro-ministro (1985-1995). “O senhor telefonou propositadamente de Lisboa a fazer marcação. Veio nesse mesmo dia e, quando chegou aqui à barbearia, foi primeiro tratar dos sapatos. Só então deu conta que tinha calçados um de cada cor.” Como barbeiro é quase confessionário, José Pinto recusa revelar o antigo governante. “Peço desculpa mas não o vou identificar, ele poderia não gostar”, justifica-se.
Desculpas aceites e siga para bingo que há muito para contar. Agora noutras paragens, também no centro do Porto, no lado direito descendente da íngreme Rua 31 de Janeiro, quase a desembocar na Estação de São Bento, onde se encaixa a pequena Barbearia Santo António. Num corredor apertado onde mal se conseguem cruzar duas pessoas, apresenta-se António Cardoso. Não é um barbeiro qualquer, é história nele mesmo, o mais antigo em atividade na cidade e, muito provavelmente, em Portugal inteiro. São 89 anos de idade, mais de 70 de profissão. E uma angústia: “O senhorio quer tirar-me daqui para fora até ao fim do mês. Mas eu vou resistir, não desisto”, promete. E, se tiver mesmo que sair, como será? “Corto cabelos em casa, não há problema. Parar é que nem pensar”, afiança.
Os novos salões, e há alguns a olho nu mesmo pela vizinhança da Santo António, não assustam António Cardoso. “Tenho clientes fixos e esses não fogem. Os mais novos preferem ir a outros lados. Não é de agora. Antes eles preferiam as cabeleireiras, agora vão aos barbeiros modernos. São modas, que hei de fazer?”, desabafa.

Desistir é verbo que também não entra na Barbearia Norton, casa emprestada de artistas lisboetas de passagem pelo portuense Teatro Nacional de São João, mesmo ali a meia dúzia de passos. José Pedro Gomes e Vítor de Sousa, por exemplo, escolheram-na várias vezes durante estadias de trabalho na cidade.
Manuel Paiva e José Augusto Carvalho, 71 e 76 anos respetivamente, aguentam as portas abertas desde há mais de quatro décadas. Continuaram uma casa que já vinha de há muito antes, recusaram sempre baixar os braços, mesmo que o negócio não seja como antigamente.
“Éramos seis aqui a trabalhar e restamos dois, só isso explica muita coisa. Mais de metade das pessoas que cá vinham voaram”, descontenta-se Manuel Paiva junto a cadeira vazia que aguarda ocupante. “Esta é uma área muito incerta. Há uns anos, mesmo que colocássemos um anúncio no jornal, não aparecia ninguém para trabalhar. Hoje, há esses estabelecimentos novos por todo o lado. E nós aqui continuamos, não nos podemos queixar, cada época tem os seus problemas”, complementa José Augusto Carvalho.
Do velho se faz novo
O declínio das barbearias tradicionais não é de agora. “Remonta, pelo menos, às décadas de 1980 e 1990”, assinala Cristina Bento, assessora da Direção da Associação Portuguesa de Barbearias, Cabeleireiros e Institutos de Beleza (APBCIB). No entanto, nos últimos anos a tendência tem sido cada vez mais acentuada, sobretudo devido a um cocktail de fatores com efeitos diretos na quebra.
“É inquestionável que tem havido mais encerramentos de estabelecimentos clássicos e isso não se deve apenas ao surgimento das barber shops. A razão principal é que a nova lei de arrendamento levou a que muitos espaços fechassem porque os inquilinos não conseguiram acompanhar a subida das rendas. Além disso, os barbeiros mais antigos foram envelhecendo e abandonando a atividade”, detalha Cristina Bento.

A drástica redução do número de associados da APBCIB ajuda a explicar a realidade. Há dez anos eram sete mil os sócios registados, os dados mais recentes apontam para apenas 2 600. Menos de metade, portanto. “Havia um sentimento de classe que já não existe. Isso tem reflexos, também, no culto do associativismo que vai faltando às novas gerações”, lamenta Cristina Bento.
Neste universo específico das barbearias, há quem tente revolucionar sem fazer esmorecer a tradição. Pode parecer confuso, mas o conceito da Barbearia Porto ajuda a explicar melhor. Uma das mais antigas da Invicta, tem localização privilegiada numa esquina da Praça da Liberdade. Em 2015, fechou portas e parecia condenada à morte. Ressuscitou-a Nuno Silva, jovem de 33 anos que, juntamente com o irmão Carlos, lhe deu renovado fulgor e ofereceu ares de modernidade, transformando-a em local de referência. Uma barber shop que recusou matar o passado clássico.
“É uma loja histórica e assim ambicionámos que continuasse. Renovámos as cadeiras originais, mantivemos as batas brancas, quisemos manter uma atitude diferenciadora, respeitando o que aqui existia antes de nós”, descreve Nuno Silva, enquanto vai trabalhando o cabelo de um adolescente.
Nas paredes há um pouco de tudo, de matrículas de automóveis a imagens emolduradas de Elvis Presley e Marilyn Monroe, de uma capa do jornal “A Bola” do dia seguinte à conquista do F. C. Porto da Taça dos Campeões Europeus, em 1987, a uma guitarra. E pelos corredores anda solto o Rocky, um cão de raça buldogue francês que faz da barbearia hotel e já se tornou atração para quem lá vai.
Enquanto aguardam vez clientes que vão enganando o tempo com uma cerveja ou um uísque, blues são escuta em música de fundo. “A grande diferença entre os barbeiros de hoje e os mais antigos é que eles cortam cabelos como se estivessem a virar frangos, nós servimos comida maturada”, compara Nuno Silva.
Pela Barbearia Porto passam regularmente futebolistas, atores e toda uma plêiade de figuras públicas de destaque. “O José Sá, guarda-redes que agora joga no Olympiacos, o André Silva, do E. Frankfurt, o Maniche, que jogou no F. C. Porto, entre outros. São gente normal, chegam aqui e uma pessoa até se esquece que são futebolistas. Não têm vedetismo algum, não pedem para serem atendidos à frente dos outros, nada disso”, descreve o dono. Que também já atendeu outros notáveis, como o ator Rogério Samora, o cantor Mundo Segundo ou Jorge Romão, baixista dos GNR. “Mas a quem gostava mesmo de cortar o cabelo era ao Rui Moreira”, confessa Nuno Silva.
Depois de sair da Barbearia Porto não é preciso caminhar muito até alcançar outra das barbearias históricas da Invicta, a Garrett. Acácio Branco, o proprietário que cortava o cabelo a José Maria Pedroto, já vai nos 83 anos e prepara a passagem de testemunho para o neto André, 22 anos, ex-futebolista com passagem pelas camadas jovens do F. C. Porto e agora rendido à arte de bem barbear. E não só.
“Adoro isto. Desde miúdo que sempre me habituei a vir para aqui e quero dar continuidade ao que o meu avô aqui construiu ao longo de uma vida. Um lutador, ele”, revela o jovem. Uma coisa é certa, quando André assumir os comandos da Garrett, até pode mudar alguma coisa, mas jamais mudará tudo.

“Vai ficar uma barbearia nova, mas com o aspeto vintage”, jura. Ou seja, será respeitado o legado de Acácio e mantido um espaço que provavelmente teria como destino certo o encerramento se nele ninguém pegasse.
O sonho é que as cinco cadeiras da barbearia voltem a ser preenchidas de gente, que o bulício volte a ser diário, que o mar de clientes seja revolto de tão bravo. “Se tudo correr bem isso vai acontecer. Há espaço para todos e com muito trabalho consegue-se tudo”, assevera André Branco. Em honra do avô Acácio.
Tradição fiel
Nas salas de espera das barbearias tradicionais não há cervejas, música só se ouve a que sai da rádio, leem-se jornais do dia e revistas antigas. Vão-se encontrando manicuras, mas são espécie quase em vias de extinção, massagens não entram nas contas, as vestes pouco diferem de batas sem apontamentos estilísticos que as façam ganhar o estatuto de fashion. E não abunda praticamente decoração fora do comum, apenas sobriedade q.b., um ou outro galhardete de clubes, calendários, fotos antigas e outras dedicatórias.
Em Lisboa, também não há quem se amedronte com o fulgor das novas barbearias. Os profissionais mais antigos encaram a situação com a naturalidade de quem já viu passar tempestades sem fazer soar buzinas de alarme.
“Não roubam nenhuma clientela. Pelo contrário, há malta que vai lá e depois volta aos mais antigos, como eu.” A garantia é de António Gato, 70 anos, homem forte da Barbearia Gato, casa que junta gente comum, políticos e artistas à volta do corte perfeito, ali pela Rua do Poço dos Negros, ao Bairro Alto.
Pelas mãos de António Gato passam e passaram durante anos nomes famosos, como o ator Nicolau Breyner (1940-2016). “Quando ele tinha um papel que exigia que ficasse careca, vinha cá e era eu que lhe rapava o cabelo à navalha”, recorda com saudade. “Falávamos sempre do Benfica, era o tema de conversa favorito”, lembra. O político do PSD Rui Machete, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros (de Pedro Passos Coelho), e da Defesa e da Justiça, além de vice-primeiro-ministro (de Mário Soares, no Governo do Bloco Central, entre 1983 e 1985) é outro cliente assíduo. Assim como muitos deputados, da esquerda à direita, “que aproveitam o facto de o Parlamento não ser muito longe e vêm cá regularmente.”
Uma coisa é certa, dentro do estabelecimento não há margem para conversas que espantem clientela. “Não se fala de política, por exemplo. Aqui todos são tratados da mesma forma, sejam ou não sejam conhecidos. Desde que se portem bem, isto é uma casa do povo”, garante o proprietário, velho resistente de uma classe que parece ameaçada de abandono e quase desdém.
Barbeiros veteranos como António Gato continuam por aí e não baixam a guarda. Tesoura nos dedos, navalha afiada sempre pronta a entrar em ação. Sem barber shops que os melindrem ou modernidade que os desmoralize.