Arnaldo Trindade: o burguês que deu voz à liberdade

Fundou a editora Orfeu, casa mãe de desafio ao regime salazarista através da força da palavra cantada por nomes como Zeca Afonso ou Adriano Correia de Oliveira. O cerco da ditadura jamais o atemorizou. O sonho de um Portugal de igualdades manteve viva uma aposta corajosa. Aos 84 anos, os olhos azuis de Arnaldo Trindade continuam a não renegar a utopia.

Há uma sala arredondada a que a arquitetura deu uma janela ampla de luz numa moradia onde entra amiúde um leve cheiro a mar. Há um aparador antigo pejado de papéis, livros, fotografias, numa anarquia aparente que apenas esconde pedaços raros de privilégio documental.

Há prateleiras de livros que parecem tocar o teto, preenchidas com uma biblioteca que a habita ora ordenada por autores, ora sem aparente nexo de organização. Há uma pequena moldura com uma fotografia de Eugénio de Andrade, o poeta em pose. Há um original jogo de peças de xadrez, prenda de casamento oferecida pelo poeta e encenador António Pedro. Há estantes com mais papéis avulsos. Há discos espalhados. Há uma poltrona funda. E há um homem de vivíssimos olhos azuis que nela se senta e desenha história no discurso.

Esse homem é Arnaldo Trindade, 84 anos, portuense, marido, pai, avô e bisavô, empresário, fundador da editora Orfeu, a casa e abrigo de poetas nunca antes gravados e de músicos de intervenção que, através da força da palavra cantada, desafiaram o poder do Estado Novo e encontraram respaldo para mensagens que outros temeram tornar eternas em disco. “Sempre fui burguês liberal mas nunca um ingénuo. Queria um país melhor, diferente do mofo a que então cheirava”, resume à “Notícias Magazine”.

“Sempre fui burguês liberal mas nunca um ingénuo. Queria um país melhor, diferente do mofo a que então cheirava”

A Arnaldo Trindade nunca faltou coragem, ele que nasceu em berço privilegiado e a quem o pai, representante por cá da americana Philco, “obrigou a frequentar a escola pública”. Em criança distribuía o lanche trazido de casa para, no recreio, preencher os estômagos vazios “dos colegas a quem se via a fome na cara”. Na adolescência, à boleia do trabalho do pai, conheceu os Estados Unidos e reuniu matéria para relatar aos companheiros de amizade histórias daquele admirável mundo novo, tão distante do Portugal da década de 1940.

No Liceu Alexandre Herculano, no Porto, professores houve que influenciaram o que viria a ser o futuro adulto Arnaldo Trindade. “Como António Cobeira, que fora colega de Fernando Pessoa na revista Orpheu, em 1915, e que, em vez de obrigar os alunos a dividir orações, lhes dava a conhecer os poetas portugueses. Aliás, a Orpheu acabou por servir de inspiração para batizar a futura Orfeu”, recorda com gratidão.

A vida encaminhou depois Arnaldo para o primeiro curso superior de Economia lançado no Porto, sete alunos apenas e ele um deles. Mas desviou-o do que seria a rota normal dos estudos quando o pai adoeceu subitamente e lhe entregou a responsabilidade de assumir a tarefa profissional que tinha em mãos. Pouco mais de 20 anos de idade e mesmo defronte do Café Majestic, na Rua de Santa Catarina, um aparente infortúnio seria o princípio de tudo.

Quis a oportunidade que fosse nessa altura, ano de 1956, que a microgravação estivesse a arrancar. Com a poesia – “que sempre adorei ler” – a arte e o engenho a fervilharem rubros dentro dele, lançou-se na empreitada da editora Orfeu, o tal nome de homenagem à revista a quem bastaram dois números para soldar para a posteridade nomes como Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Pessoa ou Raul Leal.

Mais de seis décadas depois, Arnaldo Trindade descreve como se tivesse sido anteontem o dia em que avançou no que haveria de se tornar referência. “O calcanhar de Aquiles dos génios é a posteridade. E eu joguei com isso com o Torga. Fui bater-lhe à porta da casa de férias, em Miramar, propus-lhe a ideia e ele, espantosamente, aceitou sem hesitar. Gravámos nos estúdios de Santa Catarina e só podíamos fazê-lo quando os elétricos deixavam de circular e havia silêncio total.”

Enquanto lia a “Ode à Poesia” – “Por isso a vós, Poetas, eu levanto a taça fraternal deste meu canto e bebo em vossa honra o doce vinho da amizade e da paz. Vinho que não é meu, mas sim do mosto que a beleza traz” -, Torga, o médico/poeta emocionou-se de tal forma que o corpo ofereceu-lhe uma síncope poderosa que o atirou ao chão. Valeu Andrée Crabbé, a mulher do escritor, que, afoita e prevenida, lhe induziu medicação que o devolveu à vida.

Desafio ao poder

O autor de “Os Bichos” foi o primeiro de uma vaga da Orfeu, entretanto tornada entidade cultural de referência no Porto e no país. Subversiva, porque subversivo era tudo o que tinha o condão de provocar os limitados padrões do que o regime desejava impor. “Desafiámos o poder, claro. Sempre de uma forma plenamente consciente”, confessa, com o sorriso atrevido dos jovens sonhadores que ambicionam derrubar os muros da moral vigente.

“Claro que sabia que não éramos bem vistos pelo regime. Tinha plena consciência disso, mas não me importava nada. Não queria aquele país. Sonhava diferente, desejava liberdade e dignidade para as pessoas.”

“Claro que sabia que não éramos bem vistos pelo regime. Tinha plena consciência disso, mas não me importava nada. Não queria aquele país. Sonhava diferente, desejava liberdade e dignidade para as pessoas. Uma sociedade igualitária, no fundo”, define, e define-se, Arnaldo Trindade.

Seguiram-se Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Agustina Bessa-Luís, “o tão injustamente esquecido Daniel Filipe”, Egito Gonçalves ou Ferreira de Castro. Os poetas não chegavam para a Orfeu dar voz à liberdade da arte, ao poder da palavra, à ousadia de fazer diferente em país cinzento de tão igual.

Vieram, então, os cantores. Na maioria jovens, na totalidade descomprometidos com o medo. Apenas uma condição: “Não queria panfletários. De resto, nunca perguntei a cor política de quem quer que fosse, todos os artistas tinham liberdade absoluta”.

Adriano Correia de Oliveira foi dos primeiros – “um talento que não tinha outro meio de sobrevivência que não a música, por isso lhe ofereci contrato com a obrigação de gravar um disco por ano” – e trouxe com ele, pouco depois, alguém a quem a Orfeu acabou por conceder a imortalidade: José Afonso. E sublinhe-se o nome próprio, José, “porque detestava que lhe chamassem Zeca”, isso estava apenas reservado a familiares e amigos próximos. Assim como “recusava dar autógrafos, achava que era uma cedência ao establishment”.

O azul dos olhos vivos de Arnaldo Trindade brilha quando recorda essa relação de trabalho que “se transformou numa amizade fraternal”, o convívio “com um génio que procurava a utopia”, a noção de ter dado à História alguém que “pertencia ao mundo do belo.”

“Não sabia ler música. Contudo, sabia tudo dela. Tanto assim é que, há uns anos, uma universidade estudou-lhe as canções e percebeu que batia tudo certo, nem uma nota ao lado. Perfeição pura”, elogia-o. “Era de uma exigência profunda consigo próprio. Nunca foi filiado em partido algum, nem sequer no PCP, como muitos dizem por aí. Porque, lá está, a religião dele, a busca dele, o motor dele era a tal busca pela utopia, não era nada de político.”

“Fomos vigiados e apertados pela PIDE. A censura todos os sábados de manhã batia à porta da Orfeu. Nada me demoveu. Nada!”

Já certeza no abalo a um regime que apodrecia mas mantinha distâncias violentas em relação a espasmos de liberdade, a Orfeu acabou por acolher outros cantores de protesto e intervenção. Sobretudo jovens que aí viriam a encontrar espaço para o que seria caminho de intervenção e posterior consagração. Como Fausto, como Sérgio Godinho, como Vitorino, como Francisco Fanhais, como Samuel, como José Jorge Letria, como Luís Cília.

“Fomos vigiados e apertados pela PIDE. A censura todos os sábados de manhã batia à porta da Orfeu. Nada me demoveu. Nada!”, garante. “Grava-se e depois vê-se”, foi sempre o lema seguido.

A editora, porém, alargou horizontes. Foi a outros corações da música e produziu artistas que viriam a ganhar festivais RTP da canção, como Carlos Mendes e Paulo de Carvalho. Trouxe estrelas internacionais a Portugal, como Françoise Hardy. Estávamos na década de 1960, a guerra colonial a lavrar, Salazar a cair da cadeira e Marcelo Caetano a prometer primaveras que nunca passaram de outonos. Apesar das restrições, a Orfeu nunca parou de gravar. “Porque o medo cria medo e a Orfeu não tinha medo.”

Princípio do fim

Por essa altura, Quim Barreiros, esse mesmo, foi descoberto por José Afonso e por ele trazido para acordeonista. E Arnaldo Trindade solidificava amizade forte com um então jovem advogado do Porto, deputado liberal à conservadora Assembleia Nacional. “O Francisco Sá Carneiro e eu partilhávamos muitas ideias políticas comuns. Era de esquerda. Por isso, viria a ter tantos problemas no PPD/PSD que ajudou a criar”, define.

Anos mais tarde, já a democracia era certeza, quando a AD juntou PSD, CDS e PPM numa coligação de direita que ganhou as eleições intercalares legislativas com maioria absoluta, em 1979, Sá Carneiro fez inusitado convite. “Pediu-me para ser ministro da Cultura. Recusei, delicadamente, porque tinha mais de 500 empregados – nunca despedi um só – e tempo nenhum para dedicar à política.”

Com o 25 de Abril, a Orfeu não abrandou o ritmo, a criatividade é que se transformou em armadilha que a livre expressão trouxe com ela debaixo do braço. “Deixaram de se dizer as coisas nas entrelinhas, o que acabou por se refletir num outro caminho das canções, menos criativo”, considera Arnaldo Trindade.

Em 1983 – “cansado, admito” -, o empresário vendeu a Orfeu à Movieplay. Manteve proximidade com muitos dos que ajudou a lançar, como José Afonso, dedicou-se à poesia (lançou dois livros e tem outros na forja), continuou a sonhar. “Nunca deixei de acreditar na utopia. E jamais deixarei”, despede-se Arnaldo Trindade. Tantas vidas dentro de uma só.

Não perca o vídeo da entrevista