Vidas felizes de bebés abandonados

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Maria, 58 anos, já tinha uma filha quando adotou dois gémeos prematuros, com problemas graves de saúde, que tinham sido deixados na maternidade. Hoje, é mãe a tempo inteiro. Na saúde e na doença. Pedro foi abandonado pelos pais, alcoólicos, com ano e meio. Esteve institucionalizado quase 20 anos. Hoje, tem trabalho, mulher e filha. E faz questão que nunca lhes falte o amor que nunca teve. Histórias em que o afeto faz gato-sapato da rejeição. Mesmo que ela deixe traumas para a vida.

Era 2007, maio de 2007. Maria, esteticista então com 46 anos, estava a trabalhar quando o telefone tocou, determinado a mudar-lhe a vida. Do outro lado, o marido, engenheiro hospitalar na Maternidade Júlio Dinis (Porto). “Há aqui um bebé que vai ser dado para adoção. O que achas de sermos nós a adotá-lo?” Maria nem hesitou. A decisão estava tomada desde adolescente, quando as amigas começaram a falar de bebés e ela insistia que haveria de adotar. “Achava que havia tantos bebés no mundo que precisavam de nós. Porque é que não havíamos de ajudar?” Entretanto teve uma filha. Mas nunca deixou que o sonho de adotar se esfumasse. Por isso, quando aquela pergunta, desejada e desarmante, lhe irrompeu pela vida adentro, a resposta saiu-lhe segura, direta do coração. “Tu sabes que quero. Agora tu é que tens de ver.”

Maria haveria de gizar os contornos da história horas mais tarde, quando o marido chegou a casa. Andava ele a visitar a maternidade com a administradora do hospital quando, ao passarem por uma enfermaria, a responsável se acercou de um bebé e o desafiou: “Se quiser, este bebé pode ser seu.” Era o universo a conspirar. “Ela nem sequer sabia que eu queria adotar.” Mesmo o marido nunca tinha alimentado a ideia. Mas isso era antes. Antes de sucumbir à doçura daquele bebé de olhos azuis que estava na enfermaria da Júlio Dinis. “Ficou logo encantado.” Restava falar com a filha (na altura com 23 anos), que também abençoou a ideia.

Mas a boa-nova com que Maria andava a delirar desde que se lembrava de ser gente não ficou por ali. “O meu marido acabou por perceber que o menino tinha um irmão gémeo, que estava internado na Neonatologia e veio falar comigo muito preocupado, para ver o que fazíamos.” Para Maria, nem era questão. “Então, ficamos com os dois. Era mais complicado se fossem três!” E nem quando viu várias pediatras e uma assistente social a pintar um “quadro negro” pensou em desistir. Por terem nascido às 31 semanas, os gémeos sofriam de retinopatia da prematuridade (não tinham a retina completamente formada) e corriam riscos sérios de terem problemas de saúde para o resto da vida. “Disseram-nos que podiam não ver, podiam não andar, podiam não tudo. Traçaram o pior cenário possível.” Maria emociona-se. São “lágrimas de alegria” as que lhe vidram os olhos, esclarece. “É impossível não me comover ao pensar naqueles momentos.”

“Eu não me sinto mãe coragem, sinto-me mãe. os meus filhos trouxeram-me a vida. a minha vida tem agora um sentido mais profundo. é assim um amor completamente recíproco, que tem feito tudo valer a pena”
Maria, 58 anos

Quando a alertaram para a saúde débil dos gémeos, ainda não os tinha visto. Mas não vacilou. Nem o marido. “Em nenhum momento pusemos em causa a adoção.” E assim começava uma longa maratona burocrática. É que apesar de a mãe biológica ter logo dado os meninos para adoção, por falta de condições, ninguém sabia do pai. E o caso lá ficou, em banho-maria no tribunal.

Com o processo ainda longe de chegar a meio, Maria e o marido iam-se fazendo pais por inteiro. “Comecei a ir à maternidade todas as tardes. Passava umas horas com um e outras com outro.” Um dos gémeos tinha tido uma necrose no intestino, que o tinha obrigado a ser submetido a uma colostomia, e estava internado na Neonatolagia. O outro permanecia na enfermaria. As corridas diárias de Maria para o hospital prolongaram-se por uns meses. Meses em que aqueles bebés, ainda tão fragilizados, se fizeram sentimento forrado a resiliência.

Por isso, quando por fim os gémeos tiveram alta, Maria e o marido escancararam as portas de casa para os acolher. Mesmo que o processo de adoção ainda andasse longe de estar finalizado. Só dois anos depois, em junho de 2009, com a conclusão formal do processo, acabaram os fantasmas. Os fantasmas de quem mergulha num amor maior e sente o pavor da perda a moer em surdina. “Claro que tive sempre medo de ficar sem eles. Mas tinha muita confiança que isso não ia acontecer.”

O bebé encontrado por um sem-abrigo em Lisboa fez regressar às notícias um tema dramático

Não aconteceu. Maria e o marido ganharam uma “bênção”, como chama aos gémeos. Mas o caminho não se tem feito sem agruras. Em função da colostomia que sofreu quase à nascença, um dos gémeos ficou com problemas intestinais que só agora, com 12 anos, começam a estar resolvidos. De resto, apesar da retinopatia da prematuridade, recuperou a visão. O irmão não teve tanta sorte. “Ele só tem alguns resíduos no olho esquerdo. Vê umas sombras. Mas equivalem a menos de 10% de visão. Clinicamente é cego.” A juntar a isso, aos cinco anos, foi-lhe diagnosticado autismo. E ambos sofrem de hiperatividade.

A tudo Maria responde com uma determinação inquebrantável. Seja proporcionando-lhes os tratamentos mais inovadores, seja com a procura das escolas e atividades mais adequadas – frequentam ambos um conservatório de música -, seja, pois, com um afeto tão poderoso que vence até os golpes mais excruciantes da vida. Como a morte do marido, há quatro anos.

Com três filhos a cargo, um deles com problemas de saúde que requerem acompanhamento quase constante, sem o apoio e o ombro do marido (entretanto, há dois anos, a filha mais velha emigrou para Londres), Maria podia ter quebrado. Não quebrou. “Na altura, tive uma amiga que me disse: ‘Ele deixou-te muito bem entregue.’ E tinha razão. Ao tentar menorizar a dor deles, acabei por menorizar a minha. Acho que se não os tivesse não tinha conseguido ultrapassar.” O sorriso resiste mesmo quando desfia memórias dolorosas. É como se das entranhas viesse uma torrente inesgotável de gratidão. A devoção de Maria, que entretanto deixou de de trabalhar para ser mãe a tempo inteiro, o amor inesgotável que os gémeos sorvem dia após dia, mostram que o abandono, ainda que traumático, não tem que ser definidor.

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Gastar um salário numa ida ao supermercado

O assunto voltou à ordem do dia a propósito do bebé que foi encontrado por um sem-abrigo, no interior de um ecoponto de Lisboa. Foi lá deixado pela mãe horas depois do parto, ocorrido em plena rua, sem qualquer tipo de ajuda. Nu, sem agasalhos, em hipotermia, com dificuldades respiratórias e ainda com vestígios de sangue e de cordão umbilical, o bebé foi transportado para a unidade de cuidados intensivos do Hospital D. Estefânia (Lisboa). Entretanto, foi considerado livre de perigo e acabou transferido para a Maternidade Alfredo da Costa, também em Lisboa. A mãe, soube-se depois, era uma sem-abrigo que vivia em tendas ali perto e que ficou em prisão preventiva, por suspeita de homicídio qualificado na forma tentada.

O episódio está longe de ser caso único. Desde bebés deixados propositadamente nas casas de banho públicas ou em entradas de prédios, aos casos em que os recém-nascidos são deixados no próprio hospital (o cenário mais comum), são vários os episódios deste género que, anualmente, chegam ao radar da comunicação social. Segundo dados das comissões de proteção de crianças e jovens, só em 2018 foram abandonadas, em Portugal, 254 crianças, dez delas à nascença. Se alargarmos o leque ao número de casos de crianças institucionalizadas depois de retiradas à família, por diversos motivos, o número sobe para 819. Daí que o registo de adoções no nosso país, no ano passado – 182, segundo dados do Conselho Nacional de Educação -, continue a parecer manifestamente baixo.

Ainda assim, alerta o juiz António Fialho, do Tribunal de Família e Menores do Barreiro, há várias situações a ter em conta antes de um tribunal decidir que uma criança deve ser entregue para adoção. “Se aparece um tio ou um familiar que demonstra interesse em ficar com ela, efetivamente o tribunal tem de explorar essa situação. Se os pais não estiverem em condições e não se encontrar ninguém na família alargada que possa ficar com o menor, aí sim, o tribunal pode decidir que uma criança está disponível para adoção.”

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Para muitos, acaba por não restar outra via que não a da institucionalização. Durante anos a fio. Pedro (chamemos-lhe assim para proteção da identidade), hoje com 31 anos, é um caso paradigmático disso mesmo. Filho de pais alcoólicos, que viviam da mendicidade e habitavam numa garagem, num estado quase permanente de ebriedade, foi entregue a uma instituição do centro do país com ano e meio e por lá ficou durante quase 20 anos, parte deles na companhia do irmão mais novo, que acabaria por dar entrada na mesma instituição. No “mundo de lá”, como diz, Pedro garante ter crescido feliz, pelos laços que criou e os amigos que fez. “Tinha as suas partes más, mas tinha uma parte muito boa, que éramos nós. Ainda hoje tenho ligação a alguns dos amigos que fiz lá”, orgulha-se.

Mas, depois, havia o resto. A falta de afeto com que eram tratados na instituição, o facto de ver os colegas a irem passar férias com familiares e ele, durante anos a fio, a ficar confinado a quatro paredes. “Até aos 13, 14 anos, não tinha sequer noção que tinha uma família. Só nessa altura é que me apareceu lá na instituição uma irmã. Cheguei a passar umas férias da Páscoa com o meu avô, mas como ele também era uma pessoa com muitos problemas acabei por não manter ligação.” Os pais, entretanto, também já tinham morrido. E tudo isto ia gerando uma amálgama de sentimentos negativos difícil de gerir. “Até aos 15 anos, era um rapaz muito revoltado.”

O volte-face, garante, surge com a chegada à instituição de um novo professor. Docente de Biologia e Geologia, João Pedro Gaspar chegou a dar aulas no ensino regular, até que, em 1999, se dedicou a trabalhar no acolhimento, enquanto professor de apoio. Mas era mais do que isso. Além de dar apoio escolar, João Pedro assumia um papel de tutoria e mentoria junto dos jovens institucionalizados. “Preocupava-me sobretudo em dar-lhes explicações para a vida.” O que, junto de quem nunca tinha tido experiência do mundo lá fora, era uma missão e tanto.

Pedro recorda, por exemplo, o que fez com o primeiro salário que recebeu quando, com 16, 17 anos, arranjou um part-time. “Fui ao supermercado e comprei tudo o que havia para comer, para experimentarmos coisas que na instituição nunca tínhamos experimentado.” À medida que conta o episódio, Pedro, hoje com 31 anos e aparentemente bem resolvido com o passado, não evita uma gargalhada. “Não sabia nada da vida. O professor é que conseguiu que tivéssemos uma vista maior.” Nos anos que se seguiram trabalhou nuns quantos sítios. Numa pastelaria, numa loja de roupa, num café. Pelo meio, fez um curso profissional de cozinha. Aos 21 anos, quando teve de deixar a instituição, rumou ao Algarve, para trabalhar numa unidade hoteleira. Mas a adaptação à vida real foi uma missão ora agridoce, ora penosa. “Uma pessoa quando está na instituição não tem noção nenhuma do que é viver deste lado. Viver sozinho foi muito difícil. Até mexer com dinheiro era complicado. Quando cresces sem ter nada, depois quando tens não percebes o valor das coisas, a necessidade de poupar. No início, eu ganhava e gastava tudo.” A inadaptação à vida fora da instituição ia além disso. Numa primeira fase, até a noção dos bens essenciais de uma casa era um conceito complexo. Mesmo em algo simples como a consciência de que era preciso comprar lençóis para ter na cama. “Dormi muitas vezes em cima do colchão.”

Foto: Rui Miguel Pedrosa/Global Imagens

Dar o amor que não recebeu

O tempo e a experiência que vem com ele haveriam de fazer maravilhas. Hoje, Pedro é chefe de cozinha num bom restaurante, tem uma companheira, que conheceu nos tempos da instituição, e uma filha pequena, a quem jura dar todo o amor que não teve. “Quando chego a casa e ela vem a correr dar-me um abraço é uma sensação fantástica”, regozija-se. Constituir a família que nunca teve há muito era um objetivo, mas admite que a dor que fica por nunca ter conhecido os pais não passa, não cura, é uma chaga indelével para a vida. “Ainda hoje sinto a falta dos meus pais. Senti sempre. Toda a gente devia ter um pai e uma mãe. E eu nem sequer me lembro deles.”

Conforta-o o orgulho de, contra todas as privações e maus augúrios, ter dado a volta por cima. De ser hoje um homem trabalhador, honrado, feliz, que valoriza o afeto e o que de importante há na vida. Mas admite que, se não tivesse encontrado as pessoas certas, facilmente resvalaria para os disparates. E para uma vida bem diferente. “Não seria o que me teria acontecido. Não seria com certeza a pessoa que sou hoje.” E volta ao “professor”, para jurar que se fez o pai que nunca teve.

João Pedro Gaspar, 47 anos, devolve o carinho, frisando o orgulho no jovem que viu crescer, “com muitos altos e baixos”. Entretanto, ao fim de um punhado de anos a apoiar jovens institucionalizados – um dos primeiros, com quem ainda mantém contacto frequente, foi Éder, o herói do título europeu de futebol conquistado pela seleção nacional de 2016 -, o professor deu, há três anos, um passo decisivo no trabalho que tem vindo a desenvolver. Sendo investigador no Instituto de Psicologia Cognitiva, com um doutoramento feito em “desinstitucionalização” (no fundo, o processo de adaptação destes jovens ao mundo real), decidiu reunir uma equipa multidisciplinar, onde se incluem médicos, enfermeiros, professores, psicólogos e até uma procuradora, e criar a PAJE – Plataforma de Apoio a Jovens (Ex-)acolhidos. “Apoiamos jovens depois de saírem das instituições, mas, porque não poderíamos começar o trabalho a meio, intervimos diretamente nas casas de acolhimento. Tentamos ser impactantes.”

“Ainda hoje sinto a falta dos meus pais. senti sempre. toda a gente devia ter um pai e uma mãe. e eu nem sequer me lembro deles”
Pedro, 31 ANOS

Em três anos, e graças aos protocolos que têm com 13 instituições, já acompanharam 163 casos. “Acredito que 80 a 90% estão, atualmente, em situações melhores do que estavam no acolhimento.” Mas o trabalho, percebe-se, é tudo menos simples. “Também temos alguns em prisões. Vou frequentemente visitar um destes miúdos à prisão.” Admite que a falta de apoio na retaguarda dos jovens e de competências para a autonomia são problemas consideráveis na hora de deixarem as instituições. “Eu numa tarde consigo ensinar um jovem a fazer a cama e a descascar batatas. Mas num mês não lhe consigo ensinar a importância de fazer isso. Muitos destes jovens nunca tiveram que decidir nada na vida.”

Ao longo de 20 anos de um trabalho de proximidade com a área do acolhimento, João Pedro Gaspar conhece a realidade do abandono como poucos. Ao ponto de conseguir apontar mudanças nas motivações dos progenitores que abrem mão dos filhos, de forma mais ou menos forçada. “Há 20 anos, era mais por dificuldades financeiras, hoje acho que tem mais a ver com o facto de não estarem preparados para ser pais. Por falta de competências parentais.” Já o impacto do abandono nestes jovens tem resistido ao tempo. “Notamos claramente que cria situações em que as questões relacionais não estão bem resolvidas. Há uma tendência para desistir com facilidade de uma relação, seja ela laboral ou emocional.”

José Carlos Rocha, diretor do Centro de Psicologia do Trauma e do Luto, também destaca as marcas deixadas por este tipo de situações. “Há estudos que provam que o que acontece na infância, o que se chamam as experiências adversas na infância, é o maior preditor de problemas de saúde. Desde cancro a doenças infetocontagiosas, problemas digestivos ou mesmo suicídio ou doença mental.” O psicólogo clínico alerta ainda para o impacto que “situações de elevadíssimo stress” podem ter na formação da personalidade. “A característica mais frequente é a impulsividade. Depois a impulsividade traz uma série de possíveis consequências. A incapacidade de cumprir regras, dificuldade em manter relações, gravidezes precoces ou até possíveis problemas com a Justiça.”

Igualmente importante é travar o “efeito cascata”. Isto é, o processo em que uma situação traumática como um abandono desencadeia uma série de más decisões que trazem problemas mais gravosos. Também aqui o acompanhamento é fundamental. Sempre que possível, fora de um contexto de institucionalização, como defende Dulce Rocha, presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC). “A principal preocupação do IAC, no caso do abandono institucional, é arranjar uma família de acolhimento. Porque muitas vezes, para um jovem de 14 anos com um histórico de rebeldia, já é difícil ser adotado. Agora, no caso de um abandono com rejeição, ainda mais nos primeiros dias ou meses de vida, não tenho dúvidas que a melhor solução é a adoção, é entregar a criança a um casal que esteja disponível para a amar.”

Na casa onde Maria vive com os filhos, nos arredores do Porto, o relógio avança veloz para as sete da tarde. Os gémeos já chegaram e ela vai-lhes aguçando o apetite com a promessa de umas costeletas para o jantar. Eles enchem-na de carinhos a cada instante. Ela sorri, toda ternura. Explica-nos que acedeu a receber a equipa da “Notícias Magazine” porque se houver um casal que fique sensibilizado e decida adotar, “já valeu a pena”. Mãe coragem é que não lhe chamem. “Eu não me sinto mãe coragem, sinto-me mãe.” E lembra tudo o que os gémeos lhe têm dado. “Trouxeram-me vida. A minha vida tem agora um sentido mais profundo. É assim um amor completamente recíproco, que tem feito tudo valer a pena.”