Maria chamou-o. “Estou a fazer a tese e preciso de entrevistar reclusos com historial como o seu.” José Manuel aceitou. O longo cadastro tornava-o elegível. Aos 25 anos, já tinha passado dez na prisão por roubo e tráfico de droga. Sedutor até mais não. Ela, 23 ou 24 anos, deixa-se levar na cantiga do bandido. “Era a minha sinceridade, a minha maneira de ser, a minha boa disposição.” Não passou muito tempo até estarem na sala aos beijos. Mãos pelo corpo, não mais do que isso. “Juro.” E ninguém a não serem eles há de saber. “A sério que não. Não que não apetecesse, mas aqui não. Porque eu não quis.”
Um ano nisto e as entrevistas aos outros reclusos a serem negligenciadas. As consultas de psicologia quase diárias. Maria cega. Afogueada. Apaixonada. “Ó José eu gosto de ti.” E só a amiga, que também andava enrolada com um recluso, a compreendia. Um dia, entre apertos, ele pressente a operação. Avisa-a, acha que algo está para acontecer. Separam-se, sentam-se com distância. Os guardas entram no gabinete de rompante. “Está tudo bem?”.
Foi por um triz. A adrenalina despertou-lhe a consciência. “É melhor pararmos por aqui, isto está a ficar mau.” Um problema. “Mas ó José eu gosto de ti.” E chorava. “E eu também chorei um bocadinho, mas era melhor assim. Eu recluso, ela ali a estagiar. Ia-lhe estragar a vida e ela as minhas precárias. Dei-lhe um ‘open eyes’ [abri-lhe os olhos].” Insistiu na solução. “Fazemos assim, ficamos amigos. Tu acabas a tese e se entretanto eu sair, e ainda estiveres interessada, a gente fala. Não te quero complicar a vida. Estas coisas têm sempre maior risco para quem é de fora.”
“Deixei mesmo de lhe falar. Gostava dela e não a queria magoar. Até lhe disse que era gira e que não precisava andar atrás de bandidos, mas ela não aceitava. Foi a forma de resolver”
Ela não aceitava. Ligava, chorava, escrevia, continuava a chamá-lo para as consultas. “Não vou, às dela não vou.” E, apesar de “entusiasmado com os encontros”, manteve-se firme na decisão. “Deixei mesmo de lhe falar. Gostava dela e não a queria magoar. Até lhe disse que era gira e que não precisava andar atrás de bandidos, mas ela não aceitava. Foi a forma de resolver.”
Passados oito meses, Maria terminou a tese. “Liguei-lhe a dar os parabéns. Ela queria fazer o cartão para me visitar e eu disse que não. Já não havia problema, mas não a queria nestes caminhos. Nunca mais nos encontramos e ela seguiu a vida dela.” Depois desta, chegou a ter outra história com uma auxiliar do Hospital de Caxias. Só beijinhos. “Juro.” Durou meia dúzia de dias.
A mulher com quem está hoje sabe de tudo. Consente que fale. “Foram coisas que te aconteceram antes de me conheceres.” José Manuel, que está novamente preso por conduzir alcoolizado e sem carta, há de voltar para ela e para os dois filhos, depois de cumprir a pena que está prestes a terminar. Conheceu-a quando estava em liberdade. “Só aqui vem à procura quem não tem ninguém lá fora”, diz num ímpeto que logo reprime. “Bom, mas o coração não escolhe.”
José Luís soube que a frase não era um cliché assim que viu Ana pela primeira vez. É sincero. “A gente aprecia mulheres pela beleza, pelos atributos e pela forma de ser e de estar. Principalmente aqui dentro, onde estamos privados de liberdade. Mas nunca, nunca, nunca, me passou pela cabeça que tal me acontecesse.” Foi mesmo à primeira vista. “Mexeu logo comigo.” Durante um tempo tentou recompor-se. Manter-se forte perante o abalo. Ser realista. “Será como as outras: entra, faz o percurso dela, lida comigo e depois vai à vida dela.”
No contexto em que estava inserido havia proximidade entre eles. José começou a achar que a atração era recíproca. Vi-a espelhada nos olhares, nos gestos e na forma como falavam. Na solidão dos pensamentos, eram frequentes as avalanches de dúvidas. “O que será que ela vê em mim? Porquê eu?”
Apesar de habituado à solidão, sabia-se carente. E preso. À cadeia e à mulher por quem se apaixonara. Nova vaga de questões. “Isto será errado? Como é que alguém como ela, bonita, com uma carreira e uma mente brilhante, ainda para mais na área da saúde mental, se interessa por mim?” Até que repassa os longos anos dentro da prisão. Tudo o que aprendeu. Tudo o que ultrapassou a nível pessoal. “Era a confirmação daquilo em que me tornei. Realmente, eu tinha valores e qualidades e havia alguém que os via”, apesar das grades. Ao aceitar que podia ser amado, sentiu-se bem, “claro”.
“Isto será errado? Como é que alguém como ela, bonita, com uma carreira e uma mente brilhante, ainda para mais da área da saúde mental, se interessa por mim?”
À época, José estava responsável pela unidade em que se encontrava. “Embora isto tivesse acontecido sem que eu planeasse, a verdade é que tinham depositado confiança em mim.” E ele não queria desilusões. Foram discutindo a relação, avaliando riscos e benefícios. “Eu estava tão perto da liberdade e ela ainda ia ser avaliada por uma pessoa cá de dentro. Optámos por fazer as coisas corretamente, até porque não se tinha passado nada. E não quisemos arriscar o nosso futuro.” Acabou por acontecer durante a precária. Encontraram-se e confirmaram “que era mesmo amor.”
Para alegria de José Luís, que “andava nas nuvens”, sempre era verdade que havia “um testo para cada panela”. Com Ana a mostrar-lhe o caminho. A furar o preconceito, a partir pedra por um caminho a dois, deixou de ter dúvidas. “Ela podia ter continuado a trabalhar aqui, mas recusou por nós. E passou a visitar-me, o que representou uma motivação e um orgulho para mim.” Mas ambos faziam malabarismos. “Tentei trocar os horários das visitas para não coincidir com quem nos conhecia.” Até que um guarda, atento, lhe pergunta diretamente sobre Ana.
“Acabei por abrir o jogo e comunicar ao meu responsável. Foi um dilema durante algum tempo, porque ele também geriu o estágio dela. Havia receio.” Mas, pior era o incómodo que o segredo lhe estava a causar. Tudo se resolveu e finalmente José saiu em liberdade. Antes, confessa, ainda passou um mau bocado. “A ansiedade dela e minha foi o mais complicado de gerir. O tempo que passávamos nas precárias era bom, mas depois tinha de regressar e esperar.” Aguentaram oito meses, até José Luís sair.
Acolhido pela família de Ana, tinha a vida pela qual tanto tinha ansiado. E estavam prestes a comprar casa quando José foi novamente preso. Indiciado pela prática de assalto. “Vim acusado sem provas. Estava há seis meses em liberdade. Tive azar. E ela está em choque.” Abalada, Ana mantém a confiança em José. “Agora, independentemente de ser ou não condenado, justa ou injustamente, ninguém tem de estar preso comigo. Não acho bem que uma pessoa esteja aqui dentro e que a outra esteja à espera lá fora, para recomeçar a vida. Outra vez. É desgastante. E custa-me.” Por isso, já a pôs à vontade. “Eu não me estou a ver preso muitos anos e a outra pessoa a sofrer. Claro que tenho de respeitar a decisão da outra parte, se ela quiser estar ao meu lado, sofrer comigo e acompanhar-me.…Temos vindo a falar e eu vou preparando-a para o pior cenário, mas vejo por ela que não está para quebrar, que ela está de pedra e cal.”
Não há números ou relatórios que ilustrem a realidade da paixão dentro das cadeias. “São casos residuais. Há anos em que há um, dois; há anos em que não há nenhum”, garante José Júlio, diretor do Estabelecimento Prisional do Porto. O que há, com toda a certeza, são procedimentos a tomar quando se desconfia que as relações entre reclusos e trabalhadores da prisão pisam o risco da ética e ameaçam a segurança.
“A partir do momento em que temos conhecimento ou se desconfia que algo foge às regras – e por norma é com alguém que é exterior ao EP, como funcionárias das empresas de alimentação, professoras, psicólogas, estagiárias, voluntárias (no caso de uma cadeia masculina) – o normal é: primeiro, fazermos uma advertência e esclarecermos ambas as partes. Se depois de avisados não houver, principalmente por parte da interessada, qualquer mudança de comportamento, então, depois, é necessário atuar de outra forma.”
Por exemplo, se se tratar de uma estagiária, o estabelecimento de ensino é informado e o estágio cessa imediatamente. Como aconteceu nesta prisão ainda em maio, quando se descobriu que uma jovem psicóloga mantinha relações sexuais com um recluso no gabinete de atendimento e se deixava fotografar nua e em atos íntimos com o detido. Ou num outro, ocorrido em agosto, que levou a guarda prisional de Setúbal, já desconfiada de que as visitas de uma solicitadora a um recluso não tinham objetivos exclusivamente profissionais, a surpreendê-los em pleno ato sexual.
No caso de ser uma professora, dependendo da época do ano e do vínculo com a escola, para não prejudicar os demais alunos, até ao fim do ano letivo opta-se por transferir o recluso para outra cadeia. Mas a escola também é informada e a docente será depois recolocada noutro lugar. “As pessoas têm de ter noção que enquanto profissionais há uma barreira que é preciso estar sempre colocada na questão do relacionamento com os reclusos.
Sejam elas quem forem. E isso é algo que alertamos sempre para quem cá vem trabalhar.” Quando casos destes acontecem, não há obrigatoriedade de reportar à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. Tão pouco implicam sanções disciplinares. São questões de âmbito interno e a resolução cabe unicamente ao diretor do estabelecimento prisional. A não ser que se coloque em causa a alteração da ordem ou da segurança de toda a cadeia. Na verdade, a segurança é o único problema do amor na cadeia.
“É o amor e o amor é uma coisa bonita e ainda bem que existe. E nós não podemos proibir o amor. É muito íntimo. Não se evita. Nem se vai evitar. A única diferença daqui para o exterior são as grades”
“Porque as relações podem provocar fragilidade na pessoa, no caso em concreto na senhora. Pode dar-se o caso de o recluso pedir determinado tipo de coisas que são ilegais e que ela possa ser veículo, devido à fragilidade emocional. Como têm o hábito de entrar aqui e sabem as rotinas, podem iludir a segurança da cadeia para introduzir telemóveis, droga, etc. E há outra questão – o recluso pode ter na mão a pessoa e a partir daí é muito complicado.
A pessoa pode ser chantageada. Para prevenir essas situações, temos de lhes pôr cobro. Não proibimos a relação, porque não temos o direito de o fazer, nem eticamente seria correto. Só temos de acautelar a questão da segurança”, explica o diretor.
Só que as paixões nem sempre se evitam. “Nós sabemos isso, acontecem fora da prisão.… E não são evitáveis porque alguém nos diz que aquela pessoa não interessa. Lá está, é o amor e o amor é uma coisa bonita e ainda bem que existe. E nós não podemos proibir o amor. É muito íntimo. Não se evita. Nem se vai evitar. A única diferença daqui para o exterior são as grades.” Facilmente derrubadas pelo “contacto diário”. Em que se cria empatia. A estrada por onde os sentimentos evoluem.
“Temos o exemplo de alguém que casou com um recluso, quando ele ainda estava preso. Iniciaram uma relação, ela enquanto estagiária. Depois, casou com ele ainda recluído e com uma pena muito grande, de 25 anos, por cumprir. Hoje, têm filhos e vivem juntos.”
Há histórias de todos os tipos, diz Sofia Canário, psicóloga e adjunta para o tratamento penitenciário de Custóias. Mulheres frágeis que se iludem com reclusos sedutores e manipuladores. Mulheres com fascínio por bandidos. Mulheres mais velhas que se sentem protetoras de homens mais novos e que veem neles a possibilidade da recuperação, acreditando que podem fazer a diferença na vida deles. “E até pode ser. Há situações de ex-funcionárias que deixaram de trabalhar aqui por se envolverem com reclusos e estão à espera que eles saiam.” Um caso marcante: “Uma ex-professora que está à espera e nem o vem visitar, mas já disse à reinserção social que o recebe em casa.”
Contudo, no essencial, frisa, “não nos podemos esquecer que são homens e mulheres como quaisquer outros”. Às vezes, “até podem ter relacionamentos e nós podemos nem nos aperceber, porque se relacionam nas precárias”. E aí, “nem sequer é um problema nosso, nem temos de intervir em nada”. O único problema que se impõe é em termos de segurança. “O resto, se deu certo, ainda bem.”
Foi o caso de José Miguel e Marta, cuja história “nunca foi contada a ninguém”, garantem. Conhecem-se em 2014. Ele já estava preso há dois anos. Culpa de um longo passado dedicado às drogas. “Era a morgue ou a prisão. Felizmente foi a prisão. A única maneira de parar.” E a forma de conhecer Marta. Uma amiga tinha-lhe falado do voluntariado que fazia na prisão. Interessou-se e passou a ir com o grupo.
Às quartas-feiras, faziam rápidas visitas à Unidade Livre de Drogas ou à Enfermaria. Aos sábados, havia missa de manhã e depois um tempo mais prolongado na ULD, onde ficavam à conversa com os reclusos, até perto da hora de almoço. José achava-a “um bocadinho lenta”. Sempre muito irónico e brincalhão, fazia piadas que Marta só entendia quando a conversa já estava noutro assunto.
Curiosamente, o clique deu-se quando foi a vez de ela ser engraçada. Contou, para toda a gente ouvir, uma piada sobre o ator Robin Williams, que no filme “Para além do horizonte” tem de fazer toda a travessia do paraíso até ao inferno, para resgatar a mulher que se suicidou. José foi o único que percebeu e se riu. “Se calhar, não é assim tão oca.”
Quando sai na precária, adiciona-a no Facebook. Era janeiro de 2015 e começaram a conversar de vez em quando, por lá, “mas nada de especial”. Depois, aproveitando as precárias, tomaram três cafés, dois em junho e outro em setembro. “Não se passou nada. Levámos tudo com muita calma. Até porque era proibido e ela podia ser impedida de entrar na cadeia.”
Entretanto, o voluntariado acabou e ficaram muito tempo sem se verem. “Então, trocávamos cartas e bilhetes. Foi giro. O que deu um certo mistério à coisa”, conta José, que terminou de cumprir pena em novembro. Nessa altura, ela já sabia que nada seria igual. “Quando saí, mandei-lhe uma mensagem, a perguntar se ela queria namorar comigo. Mas só no fim do dia é que ela disse que sim.”
“Ah que lindo, um ex-recluso, que desafio”
Foi o culminar de uma batalha que começaram meses antes. “Eu tive de avaliar se o que sentia era por estar carente ou se era algo real. Não é muito fácil gerir e meter numa balança, principalmente quando estamos presos no ‘castelo’. Conversámos muito, se tínhamos a certeza. Mas nestas coisas não há certezas.” O real teste aconteceu em liberdade. Mais pela parte dela. E envolveu amigos, família e até o grupo de voluntariado onde Marta estava inserida. “É muito mais fácil para os que nos são próximos ter uma posição neutra ou negativa do que dar apoio. Eu sentia-me muito hostilizada nessa fase por toda a gente. Menos por uma amiga, que nos apoiou muito.”
Diziam-lhe que estava maluca, que a relação não ia durar. Questionaram-na se estava com ele pelo fascínio da dificuldade. “Ah que lindo, um ex-recluso, que desafio, e depois não vai dar em nada, não te preocupes.” O irmão mostrou-se mais preocupado com a idade de José (15 anos mais velho), do que propriamente por ser ex-recluso. Além de tudo, ainda havia uma mãe para combater. “Eu também tive a bela ideia, como vinha todo motivado da ULD, de chegar à beira da mãe dela e fazer o que achava melhor, ser sincero. Muito bruto, muito frio: existe risco de recaída.
E ela aceitou. Bom, aquele aceitar de tudo muito bem, desde que não seja na minha família.” Ainda assim, foi dormindo na casa da namorada. Até que uma abelha o picou. “Eu sou alérgico a abelhas e a mãe da Marta, como é enfermeira teve de me socorrer. Eu tremia, com as tensões muito altas, e ela ainda brincou: estás assim pela abelha ou por estarmos aqui os dois? Eu da abelha já não sentia muito”, ri.
“Tive de avaliar se o que sentia era por estar carente ou se era algo real. Não é muito fácil gerir e meter numa balança, principalmente quando estamos presos no ‘castelo’. Mas nestas coisas não há certezas”
Vivem juntos há mais de um ano. José foi apresentado a toda a família, que o aceita sem preconceito. Por isso, hoje, as lutas são outras. “As banais, do dinheiro.” Quanto à relação, “tem altos e baixos como todas as outras”. “Tesinhos, mas felizes.” Só quando lhes perguntam como se conheceram é que se engasgam. “Ah…mmm…por aí”, reproduz Marta. “Não é fácil dizer. Tens de escolher onde deixas a informação. Porque o preconceito é real. São anos e anos de ideias inseridas nas cabeças das pessoas”, justifica ele.
E conta um episódio. “Passado uns tempos de sair da cadeia, arranjei trabalho nos armazéns de uma empresa de transportes. Às tantas, pediram-me o registo criminal. Mal o entreguei, mandaram-me à minha vida. Agora, estou num setor diferente. E para já está a correr bem. A equipa é porreira, conhece bem a minha realidade, o que ajuda.”
Voltando a Custóias, a porta da sala de controlo da cadeia possui um lema que todos sabem de cor. “A segurança não conhece categoria nem postos. Mas todas as categorias e postos devem reconhecer a necessidade da segurança.” Talvez o mesmo se aplique ao amor.