Texto de Sara Gerivaz | Fotos: Filipa Bernardo/Global Imagens
“Eram horas infinitas a jogar à bola.” O menino que fintava a geométrica Praça do Marquês de Pombal, em Vila Real de Santo António, com uma bola nos pés e uma equipa das que nasce na rua, é hoje líder, em Bruxelas, de uma outra equipa, formada pelos ministros das Finanças da União Europeia. A bola mudou, mas o menino continua a ser o mesmo. Pelo menos quando o tema é o Algarve.
Mário Centeno nasceu em Olhão, mas sublinha que é algarvio. Isto porque Olhão foi mesmo um acaso. Foi na cidade raiana que criou memórias e construiu o futuro. O cruzar de vivências e culturas do sotavento projetaram o neto de Joaquim Gomes para o Mundo.
Numa região que vive de ciclos, Mário Centeno cresceu a ver as ruas cheias e os turistas a ocuparem os sítios que habitava todo o ano. Pela proximidade, mais depressa ia ao médico a Huelva ou a Sevilha do que a Lisboa. E rapidamente adquiriu o idioma de “nuestros hermanos” porque a televisão espanhola era “mais atrativa para as crianças” do que a portuguesa.
Viver no meio de um corrupio cheio de gentes abriu-lhe horizontes largos e fê-lo plantar a semente da descoberta. “Não vou dizer que foi isso que fez de mim economista, mas o desafio, a proximidade com um ambiente muito aberto ao exterior faz de nós um pouco daquilo que vamos construindo para nós próprios.” Mário Centeno folheia o livro da sua infância na biblioteca do Ministério das Finanças, em Lisboa, por baixo do gabinete que ocupa desde novembro de 2015.
Dos quatro irmãos, foi o único a nascer em Olhão, a 9 de dezembro de 1966, apenas por uma “questão de organização da rede hospitalar”. Outros dois nasceram em Vila Real de Santo António e uma quarta irmã em Tavira. “O sentimento é: nascemos no Algarve. É essa a expressão que nos caracteriza durante a juventude.”
Apesar da relação efémera com a cidade que lhe iniciou a biografia, Mário Centeno recorda o mercado e a marina como os locais “onde tudo se passava”, com o peixe e o mar a tornarem ainda hoje a memória viva. Durante os 15 anos que viveu no Algarve, de Faro a Vila Real de Santo António, conheceu e trocou experiências estudantis, desportivas e culturais. Cresceu.
Dias cheios de desporto
De sorriso fácil no rosto, o ministro das Finanças viaja à boleia das fotografias de outros tempos. Espelham os lugares – os seus lugares – e a infância vivida na cidade algarvia mais a leste. Desenhada à imagem da baixa pombalina de Lisboa, pelo mesmo Sebastião José de Carvalho e Melo, a Praça do Marquês de Pombal ativa memórias do passado. De fato e gravata, não esquece o grupo de jovens futebolistas criado “de forma espontânea” que ocupava todos os fins de tarde um quarto da imponente praça.
Na altura, com 10 ou 12 anos, Mário Centeno desconhecia a pressão do tempo. Hoje, com a agenda dividida entre Lisboa e Bruxelas, o presidente do Eurogrupo salienta a “calma inspiradora” da vila onde cresceu. “A organização que se vê em torno da Praça do Marquês de Pombal é um sinal de alguma calma e tranquilidade, de tão linear que é a cidade”, relembra, ao olhar para a imagem de 1990.
É numa das ruas adjacentes à praça, numa casa térrea pintada de branco, que assenta um dos locais mais especiais da vida do ministro. O restaurante Joaquim Gomes, do avô materno com o mesmo nome, foi durante anos local de convívio entre tios e primos. “A vida familiar fazia-se, muitas vezes, ao ritmo e à velocidade do restaurante. Os almoços de família eram tarde e às vezes não era possível concretizar os jantares com todos à mesa”, partilha, nostálgico.
O espaço “muito, muito grande”, que hoje já não pertence à família, era passagem obrigatória para provar os chocos da Ria Formosa – um dos pratos de eleição do ministro. A azáfama surgia sobretudo aos fins de semana, com a visita de espanhóis. “Come-se muito melhor em Portugal do que em Espanha e eles sabiam disso.” Mais do que um local de comércio, o restaurante era o coração da união da família. E, para Mário Centeno, marcava a rotina depois de um dia cheio, passado entre a escola e o pavilhão municipal.
“Era sempre o primeiro a sair da sala e a ir para o recreio jogar à bola”
Como todas as crianças dessa idade, o ministro das Finanças ia a pé para a escola e para todo o lado. A paixão pelo desporto começou com o futebol – não tinha “nem muito nem pouco jeito” -, mas também praticou ginástica federada e andebol. “Era sempre o primeiro a sair da sala e a ir para o recreio jogar à bola”, solta, entre risos. “Fazia sempre questão de ser o primeiro.” O pavilhão, a dois minutos da escola, tinha excelentes condições para a época e, por isso, a atividade pós-escolar era muito ativa em Vila Real de Santo António. “Tínhamos um ambiente muito bom para crescer.”
Mais tarde, já depois de trocar a desafogada vila algarvia pela capital, apaixonou-se pelo râguebi, modalidade que lhe trouxe ensinamentos ainda hoje utilizados nas atuais funções de homem-forte das Finanças. Aliás, não foi por acaso que, há alguns meses, quando uma jornalista estrangeira o desafiou a escolher um objeto que se assemelhasse ao Euro, escolheu a bola de râguebi: “Tem características muito próximas daquilo que é liderar o Eurogrupo e liderar uma moeda como o Euro. Tal como no râguebi, a economia precisa que todos colaboremos. O espírito de equipa é fundamental”.
A serenidade do Guadiana
Voltemos ao Algarve de outros tempos. Em Vila Real de Santo António, os dias “muito preenchidos” de atividades desportivas acalmavam quando o calor chegava em força. “Tínhamos três meses de praia e de sol absolutamente únicos que faziam inveja a toda a gente”, salienta, bem-disposto. A brisa quente e o areal a perder de vista são motivos mais do que suficientes para se perceber como é “tão fácil gostar de viver ali”.
Uma praia? Não. “A” praia. Monte Gordo. “Se ninguém dos outros sítios do Algarve me estiver a ler, eu acho que é o melhor areal do Algarve”, confidencia. Um areal que, dada a dimensão, rapidamente se transformava num emocionante campo de futebol. “O desporto, sempre o desporto.”
Depois, havia as ilhas, “como a da Fuzeta ou a de Tavira”, com pedaços de praia “absolutamente extraordinários”, mas mais difíceis de chegar. Já o trajeto desde Vila Real de Santo António até Monte Gordo era “absolutamente imbatível”, feito a pé ou a correr por uma estrada pelo meio da Mata Nacional das Dunas Litorais, preenchida de pinheiros bravos. “A reta servia até de antecâmara de entrada na água.”
O mar, tranquilo, só mudava de forma com as marés vivas do fim de agosto ou com o levante vindo de Gibraltar – “com o mar tem de se ter algum respeito”. A praia sempre foi o melhor das férias de verão. De vez em quando, Mário Centeno trocava o cosmopolitismo de Vila Real de Santo António pela tranquilidade das margens do Guadiana. As raízes paternas, plantadas na aldeia de Giões, trazem-lhe de volta o cheiro a alfarroba e a amêndoas. A História distingue o bisavô de Centeno como o primeiro presidente de Câmara republicano de Alcoutim.
Do interior, recorda sobretudo o “vale lindíssimo”, com Espanha do outro lado, e a calma espelhada nas águas do rio. Mas nem sempre era assim. “Quando havia cheias, não tínhamos albufeiras ou barragens para controlar a força do rio. Tenho na memória dias muito complicados, em que o Guadiana transbordava desde Mértola até Vila Real e arrastava tudo o que encontrava.”
No Terreiro do Paço, viaja até ao Algarve e não tem dúvidas – sente que nasceu no sítio certo. Do rio até ao mar, Mário Centeno teve o privilégio de experienciar o melhor daquele cantinho do país. A zona envolvente do estuário do Guadiana, por exemplo, guarda um dos maiores tesouros algarvios: a Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António.
Homem de números e contas, que viajou até aos Estados Unidos da América para tirar um doutoramento na prestigiada Universidade de Harvard, sabe de cor a região onde nasceu. De Castro Marim, Mário Centeno não esquece a igreja onde foi batizado, o trabalho do pai e a rivalidade histórica com Vila Real de Santo António. E dá-nos uma aula. “Castro Marim é uma zona histórica por excelência, com o castelo e o forte. Era o ponto de defesa do Algarve. Quando Vila Real de Santo António é fundada pelo Marquês de Pombal e ganha uma certa relevância, Castro Marim perde ascendência”, explica o ministro.
Para uma “terra pequenina”, Vila Real de Santo António – geograficamente dividida por Castro Marim – reunia um conjunto de serviços e indústrias pouco comum no Algarve. Além das conserveiras e fábricas de tipografia e de papel, Mário Centeno recua até aos quarteirões cheios de lojas e serviços. A rua Eça de Queiroz, que alojava a estação de correios onde a mãe trabalhou, era exemplo disso.
Miguel Torga, os chocos e o bife de atum
Ao longo da conversa com a “Notícias Magazine”, todos os caminhos vão dar à cidade fronteiriça onde cresceu. Uma vila aberta para o Mundo que despertou em Mário José a curiosidade por novos mundos. “Somos sempre o produto daquilo que nos rodeia. O que mais me possa ter moldado de Vila Real de Santo António foi essa abertura, o facto de recebermos muitas visitas e muita gente de fora que vinha aos restaurantes, às praias”, reconhece.
É também aí que sempre regressa, entre as inúmeras responsabilidades no país e na Europa, com a mulher e os filhos. Às vezes, opta por locais mais reservados, mas nunca deixa de voltar às origens, onde é abordado pelos conterrâneos, que já se habituaram a ver o menino da terra nos ecrãs dos televisores. “As pessoas são muito curiosas, mas sempre com enorme simpatia.”
Quarenta anos depois dos jogos de futebol na Praça do Marquês de Pombal, pouco ou nada mudou. O Algarve continua a reunir o melhor do campo, da serra e do mar. O desenvolvimento urbano da fronteira portuguesa é mais contido do que em Espanha e ajuda a preservar a identidade. “A forma como esta parte do Algarve cresceu tem conseguido manter traços característicos durante anos.”
Na biblioteca do Ministério das Finanças, Mário Centeno volta a olhar para as fotografias do seu “cantinho extraordinário”. Cita Miguel Torga para projetar o Algarve dos próximo 40 anos. “O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria”, escreveu o autor transmontano. Com toda a razão. Há tempo para respirar e para aproveitar a brisa quente. A serenidade das ruas e das casas caiadas, do rio até ao mar. “Conseguimos encontrar no Algarve outros sentidos e outros mundos, mas este é o meu mundo no Algarve. Acredito que vai continuar assim.”
Enquanto o futuro não chega e o Algarve continua longe, é na cozinha que Mário Centeno mata saudades. Sempre que a agenda permite uma refeição em família, o ministro veste o avental e aventura-se nuns chocos ou num bife de atum. O Algarve tem sabor. Muito sabor.