Algarve: a história de um sucesso anunciado

Por Ana Tulha

Aquele 11 de julho de 1965 amanheceu em Faro com pompa e circunstância. O caso não era para menos. Américo Thomaz, presidente da República, tinha-se deslocado até ao (então) remoto distrito de Faro para inaugurar o aeroporto. A efusividade era tal que em São Brás de Alportel, onde o chefe de Estado ficou hospedado, a população algarvia o brindou com papelinhos às cores e pétalas. Havia colchas nas janelas. Nem a banda faltou, para entoar o hino nacional.

Na chegada ao aeroporto, no “automóvel presidencial aberto”, centenas de pessoas aguardavam Américo Thomaz. Entre os muitos relatos desse dia, há uma história que se foi eternizando no boca-a-boca algarvio. A de uma senhora que, apanhada de surpresa pelo aparato, exclamou: “Olha, o homem dos gelados vai ali no meio da polícia”. O homem dos gelados era, pois, o presidente da República, que envergava a farda branca de almirante, os “polícias” os generais que o acompanhavam.

A história retrata um momento fulcral na história do Algarve: aquele em que uma região durante décadas habituada a estar esquecida no mapa – e completamente desabituada de visitas pomposas dos homens do Estado – rasgou horizontes e se abriu em definitivo ao turismo internacional.

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Em bom rigor, salienta Sérgio Palma Brito, antigo diretor-geral da Confederação do Turismo Português que, em 2009, lançou o livro “Território e Turismo no Algarve”, o verdadeiro momento de viragem acontece três anos antes, quando António de Oliveira Salazar, então presidente do Conselho de Ministros, decidiu a construção do aeroporto de Faro, isentando-o “do visto do Tribunal de Contas e de formalidades administrativas”.

“Este compromisso do ditador marca o antes e o depois do turismo do Algarve, da insignificância à sua inserção na baía turística do Mediterrâneo em formação desde 1950. A mensagem era clara: para o Algarve em força”, destaca o consultor para o turismo. Os efeitos não tardaram. Logo em 1963, a região assistiu a uma vaga de grandes investimentos, apoiados e licenciados pelo então ministro das Obras Públicas, Eduardo Arantes e Oliveira.

A onda de investimentos ganharia redobrado fôlego dois anos depois, com a inauguração oficial do aeroporto, que tornou o sul do país apetecível para os grandes operadores turísticos da Europa (maioritariamente ingleses, numa primeira fase), responsáveis por trazer para o Algarve turistas “às carradas”, à boleia de aviões fretados.

Antes, já havia operadores estrangeiros a trabalhar na região, mas tratava-se de uma aposta residual, até pela morosidade dos “transfers” de Lisboa a Faro, feitos por estradas que andavam longe de ser o que são hoje.

“Conta-se que, depois da inauguração do aeroporto, os ingleses que iam para a Praia da Luz eram tantos que chegavam a hastear a bandeira”, aponta José Manuel Simões, diretor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa. Monte Gordo, Lagos e a Praia da Luz eram então os destinos preferenciais dos ingleses.

O impacto da inauguração do aeroporto – e da chegada em massa de turistas trazidos pelos grandes operadores turísticos internacionais – está plasmado nos números. A hotelaria no Algarve passou de 30 mil dormidas de estrangeiros em 1960 para 500 mil em 1967. Em 1970, o número superava já o milhão e, anos depois, a fasquia tinha subido para os milhão e meio (ainda assim, bem longe dos mais de 14 milhões de dormidas de estrangeiros por ano registadas atualmente).

Simultaneamente, a região foi ganhando popularidade enquanto destino de férias dos portugueses. E assim se deram os primeiros passos para que o Algarve se tornasse naquilo que é hoje – a maior região de turismo do país, com um contributo relevante para a economia. Segundo dados da Região do Turismo do Algarve, o turismo gera mais de seis mil milhões de euros por ano em bens transacionáveis.

Da situação deplorável ao “boom”

Quase custa a crer que, nos finais do século XIX, o Algarve não passava de uma região pobre, com fracos acessos, quase invariavelmente esquecida e menosprezada pelo Governo central. Essencialmente virada para atividades artesanais, como a agricultura, a pesca e a indústria, a região deparava-se com problemas crónicos, como a falta de vias de comunicação e de iluminação pública, em muitos casos até de condições sanitárias dignas.

O caminho-de-ferro chegou a Faro em 1889 (conta-se que, para evitar as elevadas temperaturas que se faziam sentir na região alentejana durante o dia, os poucos visitantes de altura optavam por fazer a viagem durante a noite). A primeira estrada de acesso à região – a estrada de Barranco do Velho, hoje EN2 – foi construída em 1932. E ainda assim estava longe de ser um acesso simpático.

Já para não falar que faltavam portos capazes de albergar grandes navios de cruzeiros. Não espanta que, em 1951, a situação na hotelaria algarvia fosse “deplorável”. “Apresentava-se então apenas com quatro hotéis, três pensões e uma casa de hóspedes”, realça a revista “Promontoria”, publicada pela Universidade do Algarve.

Até então, a região conhecera apenas uma residual vaga de turismo, relacionada com as termas (sobretudo em Monchique, São Brás de Alportel e Alcoutim). O turismo balnear, primeiro tímido, depois fulgurante, começa apenas na década de 1950, à boleia de uma tendência que, na altura, ganhava força na baía mediterrânica.

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Culpa da melhoria das condições socioeconómicas das populações europeias que, nas primeiras décadas do século XX, viram assegurado o direito a férias pagas e que, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-45), andavam desejosas de largar os dias cinzentos de angústias e contenção e de aproveitar a vida, de preferência em destinos de sol. O Algarve, que juntava às praias pitorescas e ao clima agradável o facto de ainda estar “por descobrir”, tinha tudo para ser, por isso, um caso de sucesso.

E assim foi – mesmo que a história de êxito da região não se faça sem uns quantos percalços à mistura. Entre 1960 e 1963 surgem, na região, os três primeiros hotéis da era moderna (Vasco da Gama, em Monte Gordo; Garbe, em Armação de Pêra; Baleeira, em Sagres). Já depois da inauguração do aeroporto, em 1965, abrem as primeiras unidades de cinco estrelas, ainda hoje conhecidas como “as cinco gémeas”.

O Penina (Portimão), em 1966, é o primeiro. Mérito de John Stilwell, um empresário inglês habituado a passar férias no Algarve, que decidiu investir na região. Seguem-se, em 1967, o Hotel Algarve (erguido, na Praia da Rocha, graças ao investimento do Banco Nacional Ultramarino) e o Alvor (pela mão do Grupo Melo).

Em 1968, mais dois hotéis de cinco estrelas: o Balaia, em Albufeira, resultou do investimento de empresários holandeses, e o Dona Filipa, em Vale do Lobo, uma aposta da Trusthouse Forte. A mesma multinacional foi responsável pela compra dos terrenos de Vale do Lobo, transformando o que era então uma imensa floresta de pinheiros-mansos num empreendimento de vivendas, maioritariamente destinadas a turistas.

“Aos poucos, as pequenas localidades do Algarve foram evoluindo de aldeias piscatórias para grandes centros turísticos. Nos anos 1960, em Armação de Pêra, Albufeira, Monte Gordo, ainda era vulgar ver os pescadores a conviverem com os turistas nas praias”, sublinha José Manuel Simões, diretor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, antes de recordar a capa de um vinil do músico Carlos Mendes, que retrata precisamente esse ambiente.

Paralelamente, começam a aparecer as escolas de hotelaria e turismo (a primeira em Faro, em 1965, uma segunda em Portimão, em 1968).

Mas, se a construção de hotéis e empreendimentos ia, aos poucos, prosperando, fora das unidades hoteleiras ainda pouco ou nada havia. “Tanto que os empresários acabavam por organizar eventos dentro dos próprios hotéis. As atuações de ranchos folclóricos na altura eram muito comuns. E também era comum os hotéis terem discotecas lá dentro”, recorda Carlos Luís, agente de viagens há mais de 50 anos e ex-presidente da Associação de Turismo do Algarve.

Mesmo a oferta em termos de restauração era, no final dos anos 1960, diminuta. “Era um em Vilamoura, outro na Quarteira, um em Almancil (“O Poço”, um restaurante aberto por um casal holandês, especializado em carne) e pouco mais”, lembra André Jordan, empresário luso-brasileiro que é considerado um dos pais do turismo português e que, no Algarve, esteve ligado a empreendimentos como a Quinta do Lago e Vilamoura.

A “Saint-Tropez portuguesa”

Se o turismo balnear na região até começa timidamente no sotavento (zona este), com os alentejanos a procurarem as praias de Monte Gordo, em Vila Real de Santo António, o fenómeno chega em força ao barlavento (zona oeste) ainda no decorrer dos anos 1960. Albufeira, em particular, depressa se torna um marco do turismo no Algarve.

“Era uma vila de pescadores que, pelo seu tipicismo, atraiu ainda mais turistas”, justifica Elidérico Viegas, presidente da Associação de Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve. Mérito também do Hotel Sol e Mar, concluído em 1965, com acesso direto à praia, e ainda mais do Hotel Balaia (1968), uma das tais “cinco gémeas”.

Com 140 quartos, piscina de água aquecida, campos de ténis, minigolfe e um clube noturno próprio, o Balaia ajudou a revolucionar a região e a transformar uma vila piscatória numa vila turística por excelência. Segundo a revista “Promontoria”, muitos pescadores, acompanhados das esposas, transformavam-se nos “banheiros que asseguravam o funcionamento da época balnear, relegando a pesca para uma atividade de segundo plano”.

Foi também em Albufeira que abriu o Sete e Meio, um dos primeiros clubes noturnos do país. “Foi a primeira região do Algarve a assumir-se como destino turístico. Na altura, chamavam-lhe a Saint-Tropez portuguesa [em alusão à vila do sul de França que se tornou um destino de turismo balnear por excelência]. Daí que seja considerada o berço do turismo contemporâneo no distrito.

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Ainda hoje é a principal zona turística do Algarve, com 42% do turismo da região. Tem mais camas do que a Madeira toda junta”, enfatiza Elidérico Viegas, também presidente da Assembleia-Geral da Região de Turismo do Algarve.

Ainda assim, o “boom” do turismo no Algarve esteve longe de se cingir a Albufeira. Monte Gordo (em Vila Real de Santo António) e a Praia da Rocha, que já no início do século XX era apelidada de “praia mais pitoresca do país”, eram zonas igualmente apetecíveis, sobretudo numa fase inicial do turismo no Algarve.

Nos anos que se seguiram, outras localidades se foram fazendo “famosas”: de Lagos a Portimão, passando pela Quarteira, por Armação de Pêra – que, face à forte pressão construtiva das décadas de 1970 e 1980, registou um crescimento urbano desmedido – e por Vilamoura, que começou com a construção da marina em 1971 (concluída em 1974) e depressa floresceu como resort de luxo.

O Algarve torna-se então um destino turístico por excelência, atraindo também gente famosa de todo o mundo. A partir dos anos 1960, passaram pelo Algarve figuras como a princesa Carolina do Mónaco, o arquiteto Óscar Niemeier, o escritor Jorge Amado, o piloto Ayrton Senna, a atriz Ingrid Bergman e os músicos Paul McCartney, Tom Jones e Cliff Richard.

Aliás, ficaram famosas as noitadas de Cliff Richard com os amigos, no Sete e Meio (Albufeira), em que, às quatro da manhã, quando saíam da discoteca, iam para a praia ajudar os pescadores a puxar os barcos. Acabavam a noite já com o sol a raiar, a empanturrarem-se com bolas de berlim em jeito de pequeno-almoço.

O golfe e o 25 de Abril

Com os primeiros hotéis de luxo, surgem também os primeiros grandes campos de golfe do Algarve. O Penina e o Balaia, por exemplo, dois dos tais cinco hotéis de cinco estrelas que abriram na região durante a década de 1960, já incluíam campos para a prática da modalidade.

Entretanto, o empresário André Jordan, que se instalou no Algarve em 1970, avança para a compra dos terrenos que viriam ser a Quinta do Lago. O campo de golfe não podia faltar. “Na altura, um campo normal tinha uns 18 buracos e nós tivemos a ideia de criar um campo com 27. Toda a gente começou a dizer: ‘Está aí um brasileiro maluco. Vai falir, com certeza’”, recorda André Jordan.

À “excentricidade” do empresário luso-brasileiro seguiram-se outras, que ajudaram a que o Algarve se tornasse também um destino de golfe de eleição, catapultando o turismo algarvio no seu todo (hoje, há na região perto de 40 campos e o turismo de golfe gera uma riqueza global anual de 500 milhões de euros).

“O golfe ajudou a que houvesse uma revolução no turismo do Algarve. Os operadores turísticos estrangeiros começaram a trazer golfistas de Inglaterra e da Irlanda e contribuíram decisivamente para melhorar as taxas de ocupação dos hotéis da região, sobretudo em épocas mais baixas, como a primavera e o outono”, conta André Jordan, CEO do André Jordan Group.

André Jordan (à direita), com Pedro Leitão, responsável pela decoração do restaurante Casa Velha

Em 1972, Jordan abriu também no Algarve o Casa Velha, um dos primeiros restaurantes de luxo da região. Por fim, o turismo algarvio prosperava com vigor. Só que a vertigem empreendedora da década de 1970, que incluiu também a infraestruturação da região, com primazia para o abastecimento de água, saneamento básico e estradas, acabaria por ser interrompida nos anos que se seguiram ao 25 de Abril.

Primeiro, porque a instabilidade gerada pela revolução fez com que os turistas fugissem a sete pés do país (houve uma quebra quase total do turismo externo); depois, porque o Estado interveio na gestão dos empreendimentos turísticos do Algarve. “Não os expropriou, mas assumiu a gestão, para preservar os empregos.

A extrema-esquerda chegou a querer transformar os campos de golfe em campos agrícolas”, lembra André Jordan. Anos depois, as empresas foram devolvidas, mas os empresários não tiveram vida fácil: além de se verem obrigados a assumir as dívidas pendentes, enfrentaram taxas de juro que chegaram a superar a barreira dos 30%. Ainda assim, em 1977, já o turismo dava francos sinais de recuperação. “Hotéis do Algarve estarão cheios no próximo verão”, noticiava o “Expresso” em dezembro desse ano.

“Quando reassumi a Quinta do Lago, em 1981, vi aquilo cheio de jogadores e perguntei quanto custava um dia. O preço era tão baixo que decidi dobrar o valor. Disseram-me logo: “Não, aí não vamos ter jogadores!” E eu respondi que não, quem precisava de nós eram os hotéis, eles é que tinham de nos subsidiar. E assim passámos a ter clientela com maior capacidade financeira. O golfe transformou-se num supernegócio”, denota o empresário.

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A década de 1980 assiste, por isso, a um crescimento turístico sem precedentes, que se desenrola a par de um forte incremento no setor imobiliário. “A partir de 1977, a oferta desenvolve-se mais a partir do ‘self-catering’, das moradias, não tanto através dos hotéis tradicionais”, refere Elidérico Viegas, presidente da Associação de Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve.

José Manuel Simões, diretor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, revela outras tendências que marcaram a década de 1980.

“Surgem hotéis de grande qualidade num caos urbanístico total. O Algarve foi alastrando em mancha de óleo. Nesta altura, estavam também já em desenvolvimento as zonas de Vale da Telha e de Altura, áreas criadas de raiz com um único propósito: o lazer. E também aparecem o que nós chamamos de ‘cemitérios de candeeiros’, urbanizações que começaram a ser construídas e, entretanto, ficaram em stand by. Seja como for, na década de 1980, do ponto de vista do tecido urbano-turístico, o Algarve já era muito equiparado ao que temos hoje”, explica.

O que veio a seguir – os shoppings, os cinemas, resorts de luxo e mais resorts de luxo – só serviu para confirmar um sucesso há muito anunciado. Hoje, o Algarve mantém-se como principal destino turístico em Portugal, com quase um terço do total das dormidas registadas no país. E a história não fica por aqui.