Albano Jerónimo: Este é outra vez o seu primeiro Natal

Foto: DR

Albano foi o último a chegar. Os outros atores do Teatro Nacional de São João, que vieram todos do Porto para o festival da União de Teatros da Europa e que com ele são 12, já trabalham apostolicamente há dois dias no frio metálico e radial de Cluj, cidade do noroeste da Transilvânia, Roménia, onde daí a exatas 24 horas iam estrear “A morte de Danton” no Hunter Theatre, uma casa de herança húngara secular, mas ele só agora conseguiu chegar. Em menos de um minuto já está integrado: cachaços, beijos, abraços eufóricos entrançados, desgrenham-se uns aos outros em grande empolgamento, são como putos grandes à porta do teatro onde ele é literalmente o maior.

Acabou de chegar de Tenerife, ilhas Canárias, Espanha atlântica norte, e traz um belo bronzeado debaixo das madeixas loiras insurgentes que lhe caem pela fronte como centelhas a combinar com um brinco de ouro que há muito começou a usar. O clima de amotinação há de repetir-se depois ao jantar no restaurante Euphoria onde Albano se senta numa ponta da longa mesa mas é o centro das atenções: bate nas ementas dos outros, lê nomes estranhos para o alto, atira guardanapos pelo ar, não quer parar de brincar. “Hoje bebemos todos vinho”, diz ele a ventar a ementa no ar. E escolhe a primeira de quatro garrafas de uma casta romena impronunciável de pinot noir.

“Estou já a rodar nas Canárias”, diz depois Albano Jerónimo à NM a sorrir. “É o meu presente de Natal: entro numa série nova da Netflix. Ainda não posso falar nada, o projeto ainda vai ser anunciado, se eu falo eles matam-me já [risos]. Só posso dizer que é uma produção estrangeira na mesma escala de ‘Vikings’ [drama ficcional de Michael Hirst, o criador dos sanguinários ‘Tudor’ no canal História, em que o ator é Euphemius e entra desde 2017]. É uma nova série com a equipa de ‘Games of thrones’ e ‘Downtown Abbey’ que será anunciada em meados de dezembro e vai estrear em 2020. Estou muito contente, é outro mercado, um mercado enorme, é a Netflix, mas, vais-me perdoar, disso ainda não posso falar.”

“Se damos presentes aos adultos, nós é que temos que os fazer”

É a manhã do dia a seguir, Albano foi agora o primeiro a chegar – o encenador Nuno Cardoso, diretor desse fulgurante vórtice sugador que é a “Morte de Danton”, do dramaturgo alemão Georg Büchner, vai ter com ele uma conversa de 45 minutos sobre respiração -, e o ator, que é o altíssono revolucionário George Danton a quem a peça e a História guilhotinaram a cabeça na Revolução Francesa de 1789-1799, está agora sentado nos fofos sofás vermelhos do bar do Hunter Theatre, a casa magiar de ópera e teatro que noutro século foi um estúdio de cinema onde rodaram Michael Curtis e Billy Wilder.

Viemos ali recordar um Natal e os olhos de Albano, que são verdes e maviosos com auréolas de âmbar, abrem-se muito a cintilar.

“A morte de Danton”: Albano Jerónimo é George Danton, que morreu guilhotinado na Revolução Francesa, no Séc. XVIII (Foto: João Tuna/TNSJ)

“Vou-te falar de um Natal de há muito tempo, o meu pai ainda era vivo, e de uma ideia de escassez. Foi há 30 anos, vivíamos em Alhandra [Vila Franca de Xira], éramos pobres, era bastante diferente do que é hoje”, diz o ator de 40 anos. “Nesse Natal tínhamos direito a um presente, só um, era assim. E eu passei o ano inteiro a pedir à minha mãe um carro dos bombeiros. Nessa altura não se abriam os presentes à meia-noite, como agora, era só na manhã a seguir. E foi a noite mais curta do ano, lembro-me bem, levantei-me de madrugada e corri logo de pijama para a cozinha. O Pai Natal desceria pela chaminé e a chaminé era no fogão da cozinha.

Lembro-me tão bem, o fogão estava limpo, a tampa branca fechada e em cima do fogão repousava um embrulho deste tamanho [abre os braços longamente], em papel brilhante, lindo, lindo. Abri-o cheio de vontade, mas devagarinho, cheio de cuidado, ainda estavam todos a dormir, e era um grande carro de bombeiros, o que tinha pedido à minha mãe! Eu era a estampa da felicidade. Brinquei com aquilo tempos infinitos da minha infância, ou um ano e tal seguido, o que na infância equivale ao tempo do infinito. É das memórias mais bonitas, mais ternurentas, mais natalícias que tenho da vida”, diz o ator a falar numa iluminada fiada só.

“Hoje tento passar essa ideia à minha filha [Francisca Jerónimo, fruto da relação de dez anos, já terminada, com a atriz e encenadora Cláudia Chéu], que tem sete anos e vive uma realidade diferente, mais estruturada, se quiseres, mas o que é importante é estarmos juntos, isso é que é o Natal. Damos presentes às crianças, demos sempre, mas só às crianças. Entre nós, os adultos, não. Se quisermos dar presentes entre nós, temos uma regra: temos que os fazer nós. À mão. Só assim é que vale. Temos esta regra, fazemos os próprios presentes, essa é a forma de resgatar a simplicidade do Natal. E aí surgem os presentes mais maravilhosos, acredita. Mas o que realmente importa é estarmos vivos, estarmos juntos, darmos amor. É isso o Natal, é amor, senão o que é?”

“Este ano o Natal vai ser diferente, casei, é verdade”

Já passaram mais três dias, Albano já voou de Cluj para Bristol, Inglaterra, já acordou nas nuvens, já publicou no Instagram uma foto de um pulcro nascer do sol glaciar e já está em Los Angeles, EUA, e continua a irradiar. “Trabalhar no futuro, hoje”, escreveu ele em inglês sob uma foto de Beverly Hills imperial a despertar. O ator foi à América, explicou antes de partir, para promover “A herdade”, o épico de Tiago Guedes que é o pré-candidato português aos Oscars (a 13 de janeiro, o filme saberá se entrou na mais famosa lista de prémios do cinema mundial) e em que Albano é pela primeira vez o protagonista.

Minutos depois de a sua foto ser vista pelos seus 50 mil seguidores, a sua mulher comenta: “Agora volta sff” e pontua a frase com um coração. “Estou a tratar disso”, responde-lhe ele também com vermelha adoração. E ela fecha o diálogo de emojis com um sorriso de dois pontos e um parêntesis e outro coração a chamejar.

Foto: Igor Martins/Global Imagens

Voltamos aos sofás macios de Cluj, percorremos de novo o bulevar do Natal. “Este ano o Natal vai ser diferente, casei em agosto, é verdade, foi notícia, a minha mulher [Ana Francisca van Zeller, 31 anos, enóloga, herdeira da Quinta Vale de D. Maria] é do Douro, é um cenário encantado, ela é também encantada”, diz Albano numa interminável brancura a sorrir.

“Como vai ser? É uma novidade para mim, nunca vivi isto. É uma nova família, família que aumenta, a família é uma permanente angariação de amor. Este Natal vai ser isso: angariação de mais património de amor. Vou passar com a minha mulher, não sei no dia 24 ou no dia 25, ainda falta combinar, e com a minha filha, claro. Vou dar um beijo à Cláudia, como é óbvio, vou estar com os meus amigos e os meus irmãos e a minha mãe”, desvela o ator que discorre depois sobre a paixão permanente de estar vivo.

“Como dizia José Gomes Ferreira, tenho o espanto permanente de existir. Apaixono-me imenso por aquilo que me rodeia e o meu trabalho, seja no teatro, numa novela, na Netflix ou no cinema, está intimamente ligado a isso. Ando de transportes públicos, vendi o meu carro, quero viver rodeado de pessoas, de as ver de perto, de ver as pequenas coisas, de me apaixonar sempre. É isso a pertinência de estar vivo, é isso também o Natal.”

O bolo-rei de Alhandra, as rabanadas do Porto, os sonhos da mãe

Albano é um glutão. Ele confessa: “Gosto de cozinhar, gosto de comer, de saborear, gosto de perder tempo à mesa. Como agora a minha mulher é produtora de vinhos, imagina o que isso veio fazer [risos]. Tenho pecados natalícios, como todos. O maior é o bolo-rei, então se for acabado de fazer e mal cozido com o da pastelaria Tijuca, em Alhandra, é um pecado.…E tenho os sonhos, sonhos feitos pela minha mãe, sabem como nada que já provei. E depois as rabanadas! Descobri um sítio no Porto que as faz regadas com calda de ovo e canela que são uma perdição. O sítio não precisa de publicidade, é famoso, perco-me sempre que lá vou. Tenho aliás um ritual: cada vez que estreio uma peça no Porto, vou lá beber um abatanado e comer uma rabanada. Faço isso desde há anos. Ainda agora na estreia do ‘Danton’ lá fui eu: rabanada acabadinha de fazer, aquela calda grossa a brilhar, canela e nozes e passas. É uma delícia, gosto de a saborear muito devagar”.

O ator desce agora mais longe a rememorar. “Venho de um meio pobre: a minha família, dito de uma forma ‘polite’, tinha meios escassos. Fui criado numa vila de pescadores onde os meus amigos eram cagaréus, filhos de peixeiros e ciganos, e ainda havia os macara, que têm literalmente má cara, caras fechadas, de aparências rudes, se calhar como as caras romenas que aqui vemos ao frio, se calhar como a minha própria cara. Mas tive uma infância extremamente plural. E por ela, lembro-me sempre do sítio de onde venho.”

“És demasiado alto para fazer cinema”

Albano é muito grande, muito bonito, parece forâneo, é um galã. “Eu, a brincar, digo que sou um galão [risos], tenho 1,91 metros de altura! A TV é nisso um meio único de reconhecimento público, abre-te portas. Se tens uma cara laroca, ainda por cima és alto, podes fazer novelas, que foi o que me aconteceu. As novelas dão-te isso: reconhecimento, abrem-te portas. Mas eu só faço novelas, e digo isto com todo o amor, para poder fazer teatro. As novelas dão-me o pé-de-meia de que preciso para depois me apaixonar, como apaixono todos os dias, pelo teatro. Mas as novelas também te dão outra coisa: vedam-te a entrada noutros sítios, como o cinema.

Ouvi muito no início da carreira que era o rapaz das novelas e por isso não fiz logo cinema. Certa vez também me disseram que era demasiado alto para fazer filmes [risos]. Sim, isso mesmo, que era muito alto para fazer cinema! Não vou dizer quem é [o realizador português] que disse isto mas eu ouvi, aliás está escrito, guardo esse e-mail, que era demasiado alto para o papel e que era até demasiado alto para fazer cinema, não é hilariante? Mas isso faz parte do meu património, saber o lugar que ocupo. E, se souber o lugar que ocupo, eu luto, aí eu posso lutar.”

Foto: DR

A conversa esfuma-se, Albano enrola agora um cigarro, batemos os pés encasacados à porta do teatro romeno, ele está radiante a baforar frio, e conta outra coisa cómica.

“Sabes quando te reconhecem mas te confundem e não sabem muito bem de onde é que acham que te conhecem? Já me sucedeu. Há uns anos, em Lisboa, antes de uma peça no D. Maria II, eu tinha um hábito, entretanto perdi-o, que era ir ali à ginjinha, à que fica perto da porta dos artistas, era uma espécie de ritual. A última vez foi no ‘Coriolano’, também do Nuno Cardoso. Então lá fui eu, entro na ginja, estava só uma senhora ao balcão, uma ‘black mama’ que parecia uma cantora dos anos 1940, grande penteado, muito bem-posta, maravilhosa, debruçada no balcão. Eu entro, ela olha para mim, desvia o olhar, mas torna e fica depois a olhar, meia intrigada comigo, até que exclama ‘ah, eu conheço-o’ Eu deixei-a suspensa, ela a olhar, a olhar-me todo, a tentar adivinhar, eu a tentar não me rir, e às tantas ela diz: ‘Já sei! Herbalife!’. E eu desato às gargalhadas, entorno o copo, e depois ela também e ficamos ali os dois a rir. Lá lhe expliquei que não, que nunca fui vendedor da Herbalife, que era só um ator, brindamos, e lá fui eu para a minha estreia, quando entrei no teatro ainda me vinha a rir.”