Agarrados ao Fortnite. O que faz deste jogo um sucesso e um vício?

Texto de Sofia Teixeira

Quando, em dezembro passado, a mãe de Afonso, de 11 anos, já desesperada, o proibiu de jogar Fornite durante a semana, ele deitava-se na cama, horas a fio, a olhar para o teto e em silêncio. Mas antes disso, o jogo de guerra transformou a casa de Liliana Silva num campo de batalha.

Durante meses, o filho viveu obcecado. Aos fins de semana acordava às sete da manhã para jogar e, se ninguém o parasse, lá ficava até às dez da noite. Não queria comer e fazia birra para ir tomar banho porque não queria sair do computador.

Não falava de mais nada: quem jogava, quem não jogava, como tinha corrido o último jogo, o miúdo X que tinha conhecido online, o Y que tinha comprado as “skins” que ele também queria comprar. Na escola, passava os intervalos no YouTube a ver vídeos de outros jogadores.

As notas desceram. “Parecia uma doença. Nem sequer ia à casa de banho enquanto estava a jogar: chegava a passar mal por não fazer cocó e nem disso queria saber”, conta a mãe, Liliana Silva, de 37 anos.

“Parecia uma doença. Nem sequer ia à casa de banho enquanto estava a jogar: chegava a passar mal por não fazer cocó e nem disso queria saber”

Encontrar alguém disposto a confessar que tem ou teve filhos viciados em Fornite, como Liliana, é encontrar alguém disposto a dar o corpo às balas. “Admitir o vício dos filhos em jogos online é ainda um tabu”, defende Ivone Patrão, psicóloga clínica, docente e investigadora no ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.

“O problema não é alheio a uma certa permissividade dos pais e a poucas regras no uso de dispositivos. Exporem o vício dos filhos, em certa medida, é exporem que estiveram pouco atentos”, considera a autora, entre outros, dos livros “Geração Cordão – A geração que não desliga” e “Dependências Online.”

A assistente administrativa, da Costa da Caparica, Liliana Silva é por isso uma exceção. E ela não hesita em fazer o “mea culpa” em relação ao problema do filho Afonso. “Sinto-me culpada, sim, por não saber dizer não. Admito que tenho alguma dificuldade nesse sentido, é algo que tenho vindo a tentar trabalhar”, assume. Como muitos pais, sente-se esmagada pela correria de todos os dias, que deixa pouco espaço à atenção na parentalidade: o trabalho, os transportes, a casa, os compromissos, as refeições, a gestão dos dois filhos.

“Saio de casa às sete da manhã e só regresso às sete da noite. Com esta vida acabamos por não perceber de imediato certas coisas.” No seu caso, só percebeu verdadeiramente o que se passava quando começam a surgir sinais de alarme em Afonso, como não comer, não tomar banho e a descida das notas.

Apesar disso, admite que antes houve outros sinais, menos expressivos, mas evidentes: não querer sair de casa para ir jogar à bola, faltar a festas de amigos para ficar a jogar e o próprio comportamento que exibia durante as sessões contínuas do jogo. “Vivia aquilo muito intensamente, sofria, ficava ansioso, transpirava e cheguei a apanhá-lo a chorar quando os jogos não corriam como queria. Perdia completamente a noção de tudo e parecia que estava noutro mundo, diferente do nosso”, relata a mãe, que acabou por proibir o jogo durante os dias de semana.

Os sinais que, numa primeira fase, por vezes passam despercebidos aos pais não costumam passar aos professores. Tânia Simões, professora de francês do 3.º ciclo num colégio em Lisboa, costuma ter facilidade em identificar os miúdos que andam a abusar de videojogos.

“Verifico que eles estão alheios nas aulas, com imenso sono, cansaço e irritabilidade. Estão desesperados pelo intervalo para poderem continuar o jogo e isolam-se de forma a aproveitarem todos os bocadinhos para jogar.” Em muitos casos, conta a professora, passado pouco tempo os resultados escolares caem a pique e começam e ter muitas negativas. Alguns acabam por ser encaminhados para a equipa de psicopedagogia da escola ou são aconselhados a ir ao psicólogo, para controlar o comportamento.

Ansiosos a jogar, ansiosos sem o jogo

Quando, no início de dezembro, Liliana Silva ficou assustada com o comportamento de Afonso resolveu impor regras restritivas que passaram por proibir o jogo durante a semana. Aquilo com que ela não contava era com o impacto que isso teria no comportamento do filho. Havia dias em que Afonso ficava horas deitado na cama a olhar para o teto. Falavam com ele e não respondia. Não fazia os trabalhos de casa. Enfiava-se na casa de banho e nunca mais de lá saía.

Depois, começou a direcionar a raiva para o irmão de dois anos. “Irritava o miúdo de propósito, escondia-lhe os brinquedos. Acho que fazia isto tudo para me enervar e para ver se eu cedia. Quando percebeu que não resultava, aos poucos, foi começando a voltar ao normal.”

É provável que o comportamento de Afonso tenha sido apenas de desagrado perante a decisão dos pais, um quadro de sintomas de privação. Cerca de um mês e meio após a mãe instaurar as novas regras está mais calmo, mas Liliana sabe que ainda é cedo para cantar vitória. Nota-o na revolta constante do filho, que não pára de se queixar acerca dos limites estabelecidos e nas pequenas estratégias que tenta levar a cabo para jogar mais.

“Mesmo ao fim de semana, só pode jogar depois do almoço e almoçamos sempre às 13 horas. Hoje, [sábado] ainda não era meio-dia quando apareceu a dizer que estava cheio de fome. A ideia dele era almoçar mais cedo para poder ir jogar.”

Também Catarina, que prefere não se identificar para não expor a família, está agora a impor mais regras quanto às horas de jogo, tanto ao filho de 14 anos como ao de oito. Apesar de o mais velho continuar a jogar cerca de duas horas por dia durante a semana e muitas mais ao fim de semana, é com o filho mais novo que se tem sentido especialmente preocupada.

“Agora, só joga ao fim de semana, mas fica a tarde toda. Tem apenas oito anos e já começa a dizer que não quer vir connosco quando vamos sair de casa para ficar a jogar, reage muito mal quando tento impor regras e revolta-se.” No entanto, por outro lado, considera que nas fases em que joga mais tempo fica stressado e ansioso. “Até parece que muda de personalidade, não percebo.”

Não é de estranhar. Um estudo recente, publicado em março de 2016, na revista Cyberpsychology, Behavior and Social Networking mostra que o excesso de videojogos pode, com o tempo, causar uma diminuição dos níveis de epinefrina e norepinefrina no cérebro, o que significa que os adolescentes que estão viciados em jogos estão a diminuir a capacidade de regulação do stresse e a aumentar os níveis de ansiedade.

Podemos falar em vício?

A Perturbação do Jogo Online integrou a última versão do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM- V), na secção de “condições que exigem estudos posteriores”. Isso significa que há um reconhecimento do problema – e uma proposta de critérios de diagnóstico -, mas significa, sobretudo, que há ainda muito por saber.

“A sugestão de se incluir no Anexo 3 do DSM-V foi a de procurar evidências empíricas e estudos controlados que permitissem comprovar de acordo com o método científico a existência desta problemática, que se foi identificando cada vez mais nos consultórios clínicos”, esclarece João Faria, coordenador do núcleo de intervenção no Comportamento Online do Pin – progresso infantil.

De acordo com este psicólogo, atualmente, uma das áreas de maior investimento dos estudos clínicos passa por perceber quais são os fatores de risco que tornam as crianças ou adolescentes mais vulneráveis ao desenvolvimento de uma adição a jogos online. Sabe-se que a adolescência, pelas características de desenvolvimento que tem, é por si só um fator de risco.

“Porém, outros estão a ser identificados e cada vez mais fundamentados, nomeadamente o fraco desempenho escolar associado a mais tempo online e vice-versa; as perturbações do desenvolvimento – já existe evidência de maior risco para crianças e jovens com perturbações do espetro do autismo e com perturbação de hiperatividade e défice de atenção -; as regras parentais inconsistentes e a permissividade ou autoritarismo”, explica o psicólogo.

Uma coisa parece ser certa: as comparações entre o jogo online e drogas são manifestamente exageradas. “O jogo não é heroína, como alguns profetas do apocalipse das redes sociais advogam”, sublinha o psiquiatra Diogo Guerreiro. “As drogas são substâncias externas que interferem diretamente no nosso cérebro e que têm mecanismos que levam à dependência da substância, já as dependências comportamentais, que levam à libertação de substâncias naturalmente existentes no nosso cérebro, são diferentes em termos de mecanismos.”

A prova disso, exemplifica o médico, é que dos milhões de pessoas – crianças ou adultos – que jogam online, apenas uma pequeníssima percentagem apresenta sinais de dependência. “Pelo contrário, se compararmos com a quantidade de pessoas que experimenta uma droga, seja heroína ou nicotina, a percentagem de pessoas que desenvolve uma dependência é elevadíssima.”

Isso não quer dizer que não haja pessoas suscetíveis de criar uma “dependência” de certos jogos e – admite, no caso do Fortnite, – “é como se os programadores tivessem estudado a neurobiologia do cérebro e tivessem criado um produto, que, estimula os circuitos cerebrais de prazer e recompensa de uma forma ‘natural’ e extremamente completa”. Ou seja: há um real risco de adição, sobretudo da parte de miúdos ou adultos mais vulneráveis. Por isso, no caso dos mais novos, os pais devem estar atentos e impor regras.

“O Fortnite é um jogo para maiores de 16 anos, será que os pais sabem isso?”
Ivone Patrão
Psicóloga

A verdade é esta: o Fortnite, como todos os outros videojogos, é pensado para viciar. Mas o fenómeno também não pode ser olhado apenas à luz das características e mecânicas do jogo em si. A explicação para a adesão massiva que o jogo tem tido, defende a psicóloga Ivone Patrão, deve ser enquadrada com outros dados independentes do jogo, nomeadamente os estilos parentais mais permissivos e o uso das tecnologias como forma de manter as crianças entretidas em casa.

De resto, na investigação que a psicóloga desenvolveu, um dos dados interessantes diz respeito à idade com a qual, hoje, as crianças começam a navegar online sem supervisão parental: aos oito anos. “Os jogos em geral e o Fortnite em particular não têm de ser vistos como um bicho-papão”, diz, mas os pais devem conhecer o jogo, as regras e perceber o que é ou não adequado para cada idade. “O Fortnite é um jogo para maiores de 16 anos, será que os pais sabem isso?”, remata.

Recentemente, o popular jogo foi notícia por outras razões. A empresa de cibersegurança “Check Point” descobriu algumas vulnerabilidades no registo das contas do Fortnite que deixavam expostos os dados pessoais e dos cartões de crédito dos jogadores. Os ciberatacantes que tivessem acesso a essa base poderiam comprar objetos do jogo com a moeda virtual V-Buck. As conversas gravadas através dos microfones dos usuários enquanto estavam online também ficaram à mercê dos ciberdelinquentes. Depois do alerta, a produtora “Epic Games” tomou medidas e o problema foi resolvido.

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