A vampira do 5.º andar
Quando entrei na sala, estava uma senhora de muleta a acabar de contar uns horrores passados algures. Era o que parecia, vendo a cara da juíza. Pena, desolação, horror. Ou melhor, a juíza estava era furiosa, furibunda por tentarem enganá-la.
-Vivia num stress contínuo, de medo e pavor, disse a mulher da muleta.
– Isso é outra coisa, noutro tribunal!, cortou a juíza.
A segunda testemunha era uma mulher ágil em botas mosqueteiras, anéis de ouro e cabelo à Barbarella (viajante sexy do Espaço no século XLI, Jane Fonda no ano 4000, filme de 1968), e que veio explicar que os estrondos que ouviu nas escadas do prédio foram horríveis para a dona Ilda, doente em casa com três desgraças: lesão por queda, operação oftalmológica nessa mesma manhã e “hemorragias ginecológicas”. Foi aí que a juíza avisou que, com versões mal contadas, quem levava com processo eram as testemunhas.
Entrou uma rapariga africana, em roupa ortopédica, que em tempos fora empregada da dona Ilda. Também estivera na noite dos desacatos na casa do senhor Jorge, vizinho de cima da dona Ilda. O senhor Jorge é arguido por ameaças e injúrias.
– Nessa noite, eu estava com a minha patroa porque ela se encontrava doente. De repente, ouvimos um barulho que parecia um terramoto, mesmo. Eu estava no quarto com a minha patroa, que estava com problemas na face.
– Tinha caído nesse dia?
– Sim, e tem problemas de saúde.
– É que eu não estou a perceber bem o que é que quer dizer! Ela tem alguma actividade?
– É consultora. Encontra-se em casa. É uma pessoa doente que não trabalha e faz o serviço em casa.
– E a senhora quando é que lá trabalhava?
– Na altura trabalhava todos os dias. Às vezes dormia.
– A senhora tinha caído e exigiu que a senhora lá ficasse à noite?, perguntou a juíza.
– Exigiu, não. Fiquei lá.
– Não faz sentido. Dormiu lá porque havia barulho ou porque havia um problema na face?
Segundo a ex-empregada, “às oito da noite já havia barulho” e foram exigir silêncio ao vizinho de cima. A dona Ilda vive de noite, “tem o sono trocado”.
– Skates a arrastarem-se, pessoas a correrem. A dona Carla foi dizer que não podia ser. Foram ver se eles paravam com o barulho. Começámos a ouvir gritos. A dona Carla foi lá e…
– Já agora, que nomes eram?
– … puta… cabra… bêbeda… Eu só vejo a dona Carla, e vejo um daqueles rolos da porta a avançar…
A juíza estava a encher, a encher e cortou a palavra, zangadíssima:
– Isto não vai correr bem!
Fez-se silêncio. A juíza informou que ia mandar extrair certidão por crime de falsas declarações. Nada do que as testemunhas dizem bate certo, disse. A última testemunha era o filho da administradora do prédio. Foram-no chamar como se o mundo estivesse em perigo. Mas era um aniversário, a festa já tinha acabado e pronto.
– Quando o senhor Jorge abriu a porta, ele dirigiu algum insulto à dona Carla?
– Não, nada. Talvez tenha havido algum barulho, porque havia duas crianças, e eu também tenho uma filha e as crianças fazem um pouco de barulho. Eu não sei quem é a dona Maria Ilda. Sei que no quinto andar há uma pessoa que vive durante a noite. É um bocado estranho.
– Vive de noite e dorme de dia? Eu de facto também estava a chegar à mesma conclusão.
E fiquei a pensar na figura doente, sanguínea, que vive de noite…
A procuradora pediu a absolvição. O advogado de Jorge disse:
– Com todo o respeito pelo meu colega, devia era ter dito “peço justiça” e enfiado a viola no saco. Afinal veio pugnar por uma acusação pífia, torpe, que não merece vir a julgamento. Isto é denúncia caluniosa!
A acusação virou-se contra as acusadoras.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)