Rui Cardoso Martins

A terrível suspeita

Ilustração: João Vasco Correia

Quando mentira e dúvida se rasgam em farrapos atirados ao vento, já ninguém apanha a verdade. Júlia acusou Lara, sua empregada de casa durante 15 anos, de a ter roubado. Se tivessem sido ladrões a entrar-lhe em casa pelas traseiras do prédio, furando uma rede, retirando o canhão da porta da marquise, então por que razão deixariam ficar tanta coisa valiosa? Os ladrões eram burros? Júlia começou a enviar mensagens de telemóvel: Lara era ladra. Foi ao emprego do marido dela dizer que a mulher não era a pessoa que pensava. Lara processou-a. Foi no Natal de 2017. Júlia tem a voz atravessada:

– Fui passar Natal a Macau com os meus filhos. No dia 14 de Janeiro, ela telefonou a dizer que me tinham assaltado a casa e que já tinha chamado a polícia. Eu disse-lhe para ver se lá estava a caixa do ouro. Ela encontrou-a e eu pedi-lhe: então leve a caixa para sua casa. Quando eu regressei, no fim de Janeiro, só o meu quarto estava desorganizado. Eu pensei até: não vou ter nada colares nenhuns, desapareceu-me tudo. Mas afinal tinha a caixa com os colares, faltavam os dois melhores e havia algumas coisas no chão. Reparei que na minha cómoda estavam os meus relógios de marca. Pronto, nessa noite descansámos.

Acordou com perguntas a contorcerem-se na cabeça e no coração.

– Quando abri a caixa, dei logo conta que me faltava o meu anel de noivado, que tinha há quase 50 anos, e que eu destinava para um dos meus netos.

– Então faltava-lhe o quê?

– Seis anéis, dois colares de pérolas, um de três fiadas e fecho de ouro, e um com uma fiada, mais a pulseira de pérolas.

– A senhora achou estranho terem levado umas jóias…

– …e não terem levado as outras…

– Então pergunto-lhe se, na altura, confrontou a dona Lara.

– Confrontei e ela jurou que não, jurou pelos filhos.

– Ela continuou a trabalhar para si.

– Continuou e por isso peço desculpa. Mas perante aquelas evidências, de levarem umas coisas e não levarem outras… e eu a pensar: então mas os ladrões são parvos? Então têm aqui coisas tão boas, têm aqui uma máquina fotográfica, computadores, e só levam… não me levam o ouro todo, tenho aqui vários colares de pérolas e só me levam os dois melhores? Confrontei-a e ela não respondia e as coisas entre nós ficaram um bocado esfriadas.

Muitos anos de amizade. Júlia suspira:

– São muitas coisas que eu não deveria ter feito. Mas eu queria que as pessoas soubessem que ela não era a pessoa que parecia.

Lara entrou com botas de couro, o sotaque eslavo. A indignação intacta. A suspeita magoava-a muito. Mal entrara na casa, chamara a polícia e telefonara para Macau. Nem sabia se perdeu algum emprego melhor por culpa de Júlia. Mas a coisa quebrara-se antes, quando Lara comprou casa nos arredores.

– Agora já não posso contar convosco…, dissera Júlia.

– Pode contar connosco no horário de trabalho. Mas ela não contava connosco só no horário de trabalho. Uma vez telefonou a dizer que lhe tinha entrado em casa uma ratazana do tamanho de um coelho. E o meu marido vestiu as calças às onze da noite e foi lá matar a ratazana.

A juíza perguntou se estranhara o comportamento dos ladrões.

– Também achei… até disse aos rapazes da polícia: há coisas valiosas e não levaram… não sei o que levaram. Ela foi dizer ao meu marido para eu ir com jeitinho ver lá em casa para encontrar o que eu lhe tinha roubado.

– Alguma vez o seu marido ou a sua filha lhe perguntaram: tens a certeza que não fizeste nada?

– Não, não!

Bloqueou os números da ex-patroa e todos os telefones fora da agenda. Mas assim tinha medo de perder a chamada do filho se ele ligasse da guerra. O filho era soldado em Kabul.

– E quando a minha filha se sentiu muito mal no trabalho, tentaram-me ligar e não conseguiram.

A última mensagem que recebeu foi: “Não há crimes perfeitos. Não houve assalto nenhum.” Lara não desculpa Júlia.

– Para que me servem as desculpas? Eu ouvi muitas vezes dela: as desculpas evitam-se, não se pedem.

Lara ainda não sabe tudo o que foi dito nas suas costas.

Mas isso ninguém sabe.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)