A segunda morte de José Afonso

Foto: Arquivo/Global Imagens

Texto de Pedro Emanuel Santos

Um saco de discos para vender após os concertos. Uma mala com um pijama e roupa simples. Folhas de eucalipto para enganar a sinusite. Pão integral. Era pouca a bagagem de José Afonso quando fazia espetáculos que exigiam pernoita. Também não podia faltar um gravador, aparelho em que, estivesse onde estivesse, apontava sonoramente os acordes e poemas que lhe vinham à cabeça, muitos deles primeiros esboços de canções que se tornariam definitivas e o consagrariam em lugar cimeiro na história da música portuguesa.

Grande parte dessa obra está hoje perdida ou em paradeiro incerto. No ano em que completaria o 90.º aniversário – nasceu a 2 de agosto de 1929, em Aveiro -, José Afonso anda em bolandas. Os originais dele, mais concretamente. Onze álbuns da discografia encontram-se desaparecidos, pelo menos, desde 2008, depois de a editora Movieplay alegadamente os ter vendido a uma empresa offshore, a Multiform Investments, registada fiscalmente na cidade de Wilmington, no estado americano do Delaware.

“É um caso de polícia. O legado musical do Zeca está à mercê de um qualquer mercenário que lhe pode dar o destino que bem entender”, resume Francisco Fanhais, presidente da Associação José Afonso (AJA).

A história conta-se em duas penadas. A Movieplay, fundada em Espanha em 1968 e posteriormente comprada por capitais belgas, entrou no mercado português em 1977. Seis anos depois, em 1983, e já com um vasto rol dos mais proeminentes artistas nacionais sob contrato – Amália Rodrigues, José Cid, Fausto, Fernando Farinha, Fernando Maurício, Fernanda Baptista ou o Trio Odemira -, comprou os direitos de todos os discos de José Afonso lançados com o selo da Orfeu e da Rádio Triunfo, de Arnaldo Trindade, que desde o final da década de 1960 até 1981 produzira parte significativa da discografia do cantautor. E também foram adquiridos os da etiqueta Sasseti, com a qual Zeca assinara em 1982. Foi, aliás, pela Movieplay que foram gravados e lançados os últimos trabalhos de estúdio: “Como se Fora Seu Filho” e “Galinhas do Mato”.

Iniciado o processo de insolvência, e posterior falência, da Movieplay Portugal, a editora trespassou à Multiform a propriedade da unidade de produção e de edição discográfica, o que envolveu meios logísticos e técnicos, utilização da marca comercial, para além de todo o catálogo da empresa e respetivas matrizes. O negócio, apurou a “Notícias Magazine”, rondou os 550 mil euros e foi concretizado a 31 de dezembro de 2006.

“Há quem assegure que os masters estão guardados num armazém que pertenceu à Movieplay, em Alcântara (Lisboa). Há quem suspeite que terão sido enviados para os Estados Unidos. Há quem garanta, até, que foram destruídos”, refere à NM fonte que acompanhou de perto o definhamento da Movieplay Portugal e que preferiu não se identificar. “Certezas absolutas ninguém as tem, a única verdade que se sabe é que o património discográfico original de José Afonso está perdido”, acrescenta a mesma fonte.

“É um caso de polícia. O legado musical do Zeca está à mercê de um qualquer mercenário que lhe pode dar o destino que bem entender” (Francisco Fanhais, presidente da Associação José Afonso)

O resultado prático é que, sem os masters, não podem ser reeditados trabalhos de José Afonso para futura comercialização e divulgação cultural. “Apenas são possíveis cópias de cópias”, confirma Francisco Fanhais. “Com a tecnologia atual, há cópias de grande qualidade do ponto de vista técnico, isso é verdade. Mas o que está aqui em causa é um caso muito grave porque qualquer mercenário pode pegar no material de José Afonso e dar-lhe o destino que bem entender. Destruí-lo, até”, salienta Fanhais, o antigo padre que virou cantor de intervenção e que, nos anos 1960, viu em José Afonso figura de referência e mestria: “Fiquei a perceber como era possível dizer tanta coisa através da música e da palavra. Um homem de grande coragem física e intelectual”.

A “Notícias Magazine” tentou, sem sucesso, obter a reação de João Serafim, o último administrador executivo conhecido da Movieplay Portugal. Andreia Lanceiras, advogada que representou a editora aquando da transferência de direitos para a Multiform Investments, já não se encontra registada no site da Ordem dos Advogados. O site da editora está inativo e o número de telefone desativado.

Assinatura do contrato com a editora Sasseti, em fevereiro de 1982. (Foto: Arquivo/Global Imagens)

“Uma dor de alma”

Com os polémicos masters em parte incerta, os amigos de José Afonso estão em estado de choque. Querem respostas, exigem respeito pelo cantor, demandam quem lhes dê uma luz que ajude a trazer de volta o acervo fonográfico do autor de “Grândola Vila Morena”. “É uma dor de alma. Ainda por cima estamos a falar de alguém que exigia perfeição absoluta no seu trabalho e que pediu que depois da sua morte as capas e a qualidade dos seus discos não fossem alteradas”, desabafa Arnaldo Trindade, fundador da editora Orfeu, a mesma que, em meados dos anos 1960, deu a mão ao cantor quando ninguém o amparava devido ao conteúdo político das suas canções. “Dei-lhe liberdade para cantar o que queria e como queria”, recorda Arnaldo Trindade, 84 anos de memórias vivas.

Francisco Teixeira da Mota, advogado que defendeu o cantor Fausto, outro dos muitos artistas lesados, num processo contra a Movieplay, lembra que uma das tentativas foi a de penhorar o catálogo da editora, tarefa que se tornou impossível quando foi tomado conhecimento de que a venda à offshore Multiform Investments era realidade incontornável.

“A Movieplay faliu e todo o material está na posse da Multiform”, assegura Francisco Teixeira da Mota. Recuperar o material discográfico, seja o de José Afonso, seja o de muitos outros autores em situação idêntica, parece-lhe tarefa que só um pequeno milagre pode ajudar a resolver. “Tenho as maiores dúvidas sobre a realidade subjacente à operação levada a cabo pela Movieplay”, adianta.

Numa derradeira, e quase desesperada, tentativa de reaver o que resta dos originais, foi lançada em junho uma petição pública dirigida à ministra da Cultura, Graça Fonseca. O objetivo passa por exigir a classificação da obra de José Afonso como de interesse nacional com vista a “uma especial tutela do Estado”.

O documento, que conta com assinaturas de figuras públicas de diversas áreas e ultrapassa as 11 mil subscrições, expressa que Zeca é “referência maior da cultura musical portuguesa” e que o seu legado artístico “constitui património de inestimável e inexcedível grandeza”, lamentando a “suposta dissipação de todo o património da Movieplay”.

A concretizar-se o conteúdo da petição, seria a primeira vez que um português veria o seu património artístico nacionalizado. Mas a intenção poderá não passar disso mesmo, dada a quase impossibilidade legal de a tornar realidade. “Estamos a falar de património material de um artista individual. Logo, apenas quando os masters forem localizados é que essa lista poderá ser avaliada para então se avançar com o eventual processo de classificação”, explica fonte do Ministério da Cultura. “Além, claro, da necessária autorização dos herdeiros de José Afonso, sem ela o Estado não tem margem para atuar”, reforça a mesma fonte próxima de Graça Fonseca.

Francisco Fanhais é presidente da Associação José Afonso, figura a quem elogia a “grande coragem física e intelectual”. (Foto: A-Gosto.com/Global Imagens

Mais recentemente, a 19 de julho, último dia antes das férias parlamentares, a Assembleia da República aprovou um projeto de resolução do PCP que recomenda ao Governo a classificação da obra de José Afonso. Todas as bancadas votaram favoravelmente, exceção feita à do PS, que optou pela abstenção.

Perfecionista e distraído

Desaparecido a 23 de fevereiro de 1987, depois de uma luta de cinco anos contra a esclerose lateral amiotrófica que o foi matando aos poucos, José Afonso deixou, além da obra que o tornou imortal, um legado de amizade e companheirismo que marcou como tatuagem os amigos que mais de perto lidaram com ele. “Tinha um humor corrosivo, uma ironia cáustica, um feitio bizarro. Deu-me grande parte do que sei sobre a música e o Mundo”, elogia Rui Pato, mestre coimbrão da guitarra, companheiro de estúdio e de estrada de José Afonso, que conheceu quando tinha apenas 16 anos, em 1962.

“Trazia sempre dois ou três livros com ele, além de um pequeno saco com medicamentos por ser hipocondríaco. E era distraído, muito distraído. Tão distraído que às vezes saía de casa sem dinheiro nos bolsos ou com uma meia de cada cor”, sorri Rui Pato.

Vez houve, em Espanha, em que cometeu proeza que oficiosamente o calibrou com o tal cúmulo da distração. “Na mesma noite, depois de um concerto, esqueceu-se de um saco com discos nos camarins, após o jantar deixou no restaurante a mala da roupa e, já de madrugada, andou desnorteado à procura do seu gravador, que não sabia onde o tinha deixado”, desfia Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa e companheiro musical de José Afonso nos agitados anos de frenesim cultural que se seguiram ao 25 de Abril. “Ao mesmo tempo, era muito atento ao próximo, estava sempre a perguntar se eu e os restantes músicos estávamos bem. Além de que era um poço de cultura, a todo o lado que íamos adorava visitar museus e igrejas.”

Alain Vachier, produtor musical que há mais de quatro décadas escolheu Portugal como casa, conheceu o cantor também logo após a revolução. Os ares de liberdade deram a José Afonso um quase sentido de missão na tarefa de apresentar ao público a sua arte, o que acabou por lhe levantar problemas de sobrevivência.

“Apesar de cantor, tinha de dar de comer à família e o que acontecia é que aquele génio, sempre muito acessível, muitas vezes dava concertos a troco de um jantar ou que lhe pagassem a gasolina. Cachês ou não havia ou eram baixíssimos”, conta Alain Vachier, que, para o “ajudar e dar-lhe dignidade”, lançou a cooperativa Era Nova.

“A ideia era simples: a cooperativa organizava os concertos, tratava dos transportes, do alojamento, da alimentação”, descreve o produtor francês. Vachier foi o responsável pelo célebre concerto no Coliseu de Lisboa, em janeiro de 1983, imortalizado posteriormente em disco e numa gravação da RTP, a antepenúltima atuação ao vivo de José Afonso – a derradeira foi em Coimbra, poucos meses depois, a mesma Coimbra onde viveu e estudou na juventude e que tanto lhe inspirou a obra.

Arnaldo Trindade abriu as portas da editora Orfeu a José Afonso: “Dei-lhe liberdade para cantar o que queria e como queria”. (Foto: Rui Oliveira/Global Imagens)

Quando toca a profissionalismo, quem com ele privou em estúdio e na estrada repete a palavra “perfeição” para lhe definir os métodos de trabalho. “Era muito atento aos detalhes, sobretudo aos pequenos detalhes”, lembra o produtor Arnaldo Trindade.

O último pedido

Apesar do constante desafio à ditadura através da palavra e das posições assumidamente de esquerda, José Afonso não se filiou em partido algum. Durante o salazarismo, o PCP sondou-o várias vezes. Disse sempre que não.

“Eu sou o meu próprio comité central”, respondia a quem lhe perguntava porque negava a militância partidária. Apenas se torna próximo, não tão próximo ao ponto de assinar a ficha de militante, da Liga de Unidade e de Ação Revolucionária (LUAR), de Hermínio da Palma Inácio, para quem compõe “Viva o Poder Popular”.

Apoiou Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976 e repetiu-lhe o gesto nas de 1980. Em 1986, as terceiras e últimas eleições para a Presidência da República que testemunhou vivo, preferiu a católica progressista Maria de Lourdes Pintasilgo a Mário Soares e a Salgado Zenha, os candidatos de esquerda que concorriam contra o representante único da direita, Freitas do Amaral. Recusou, três anos antes de morrer, a comenda da Ordem da Liberdade atribuída por Ramalho Eanes, então chefe de Estado.

O advogado Francisco Teixeira da Mota tem “as maiores dúvidas sobre a realidade subjacente à operação levada a cabo pela Movieplay. (Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens)

O funeral de José Afonso para o cemitério da Senhora da Piedade, em Setúbal, em 1987, teve cortejo com 30 mil pessoas. No caixão, apenas uma bandeira vermelha, sem símbolo algum. Exigência do próprio, último pedido de quem raramente pedira algo para si em vida. E que, 32 anos depois da morte, tem o património que deixou como herança perdido em parte incerta.