
Os bombeiros perdiam a água e a batalha do Estradão da Ribeira do Freixo. O fogo cruzara a estrada projetado e rangia para o Freixoeiro, para a casa da família de Maria. Os bombeiros iam para o outro lado, na frente furibunda de Sarnadas. Eles ficaram sozinhos, mãe, quatro filhos, pai, mais dois filhos e sete moços de Mação que correram o fogo a chicote. Faz hoje uma semana. Agora eles são uma árvore a sorrir.
Às tantas aquilo era tão irreal que a pequena Mafalda, de 13 anos, imaginando um Rhaegal montanhoso a avançar ou um Viserion de asas pretas armadas prestes a desfechar um fogo colossal, ela que os vê sempre aos dois, os dantescos a voar e respirar chamas comandados por Targaryen, a domadora de dragões que é loira como ela na série de TV, estava nisto a família toda ainda a fumegar suor do combate ao fogo, e a Mafalda diz então: “Parecia mesmo uma batalha da ‘Guerra dos Tronos’! A sério”.
Os irmãos abanaram as cabeças quase em sincronia e sacudiram-se a descolar as t-shirts que exalavam calor, o pai Duarte e a Maria não deixaram de sorrir, ela deu a mão à Mafalda puxando-a para si, não disse nada, só concordou e enlaçou-se nela uns segundos sem fim. Já conseguiam brincar com a situação, já podiam sorrir, já tinham aprendido outra vez a respirar.
Isto foi mais ou menos duas horas depois do fogo ter passado, são seis da tarde, faz hoje uma semana, o céu estava ainda todo policromado, visto de baixo da rua a casa branca deles ainda há minutos dividia o céu, metade à esquerda era uma nuvem de cores quentes a chamejar, outra metade era uma parede preta a combustar, com farrapos brancos por baixo num quadro fantasmal.
Passou-se tudo à porta da casa deles e acima lá no prado, a casa foi comprada em janeiro, os anexos ainda vão a recuperar, manteve traça de casa rural, pedras nuas, é a primeira casa do Alto do Freixoeiro, aldeia do concelho de Mação onde hoje moram 20 pessoas mas já foram 200, distrito de Santarém, Beira Baixa.
E, como em muitos povoados do Portugal central, as casas dali têm pinheiros e eucaliptos que correm o monte e o vale a poucos metros de cada casa e muitas vezes bordam as estradas que trazem crescidos os capins, as gramíneas e ciperáceas, as forraginosas onde o fogo grassa como foi o caso do Estradão que corre a Norte para as Sarnadas, onde o fogo tinha cruzado naquela tarde a goelar.

17 feridos e um grave quatro horas à espera do salvamento do ar
Faz hoje uma semana e um dia que o braço de brasa que passou ali e se esticou vindo da Vila de Rei, concelho fronteira de Castelo Branco, foi um braço do maior fogo do ano até 23 de julho de 2019, duplicando a área de hectares que ardeu no país todo desde o início do ano. São mais nove mil escurecidos, diz a leitura do EFFIS, Sistema Europeu de Informação de Incêndios Florestais que soma neste ano 18 666 hectares de floresta infernal em 6 061 incêndios rurais.
Durante os quatro dias até que este fogo foi estancado em Mação, 41 pessoas foram assistidas, 17 foram consideradas feridas por escoriação, queimadura leve ou inalação de fumo e há um feriado grave internado desde sábado no hospital de S. José – é o queimado de Vale da Urra, Vila de Rei, e esteve quatro horas às voltas no salvamento que vinha do INEM e do ar, o helicóptero saiu às 22.59 de sábado de Santa Comba Dão e demorou quatro horas a descobrir onde pousar debaixo do céu de fumo e da escuridão.
Entretanto, queimou tanto combustível que perdeu autonomia para levar o ferido a Lisboa e voltou à base. Várias tentativas, pistas, holofotes, autarcas a autorizar aterragens no campo sintético Senhora das Neves, do clube de Proença-a-Nova, e avançou um novo héli, veio de Évora e entregou o ferido às três horas da manhã em Lisboa, no S. José. O ferido está estável, não regista intercorrências.
O melhor ataque é a defesa e a limpeza
Isto passou-se antes e não foi milagre, foi previdência. A Maria ainda fala de mangueira na mão, “Eu gastei 30 euros, o que são 30 euros? Salvamo-nos todos e às casas porque eu gastei 30 euros há três dias a mandar cortar o nosso campo à volta da nossa casa e das casas dos meus vizinhos. Estava tudo limpinho aqui à volta. Fizemos a nossa parte. Não ficamos à espera do Estado, isto é isso, 30 euros para desmatar”.
Maria diz isto tudo de rajada. Ela está inclinada no campo de capim queimado à frente da sua casa e os esquissos dos eucaliptos continuam a fumear e a exalar vapor 50 metros de terra acima. O céu está sujo para qualquer lado que se olhe mas emana luz. Todas as coisas têm uma cor irreal, muito mais vívida, como se não refletissem, como se tudo o que vemos estivesse fixado ou filtrado ou debaixo de um ataque de polarização.

A família teve um momento decisivo, foi quando os filhos disseram à mãe “OK. Vamos ficar. E vamos lutar”. E todos estarreceram na harmonia a concordar.
O que se seguiu a partir daí foi confuso, exaltado, a memória continua ali enfumaçada, houve muito stress, adrenalina, epinefrina, a Maria lembra-se de ter berrado aos miúdos, eles lembram-se de ter berrado de volta e de todos terem bradado juntos ao fogo. “Temos que lutar, é a nossa casa, estamos preparados”, disse a Maria a fitar os filhos com firmeza. A avó deles já tinha saído para sítio seguro, Maria do Carmo, 80 anos, levou-a a neta Filipa, todo o caminho com a mão nela a serenar. “E lutamos. E agora temos este orgulho que nos junta e que nunca mais sairá de nós.”
Aquilo foi imediatamente a seguir ao instante em que os bombeiros esgotavam os tanques no Estradão da Ribeira do Freixo afora, eram quatro da tarde, corriam aos reacendimentos de sábado à tarde, repentistas, tanques vermelhos no Estradão, Benavente, Alcobaça, Almeirim, todos rubros agitados, a fumegar suor, Ferreira do Zêzere, Minde, Caxarias, outros não se veem ocultos a lutar no fumo escuro que corta a estrada vivo vindo do céu. Com o fogo a avançar para Sarnadas, para Cardigos, os bombeiros esgotados a repuxar, foi-se a água, já não há com que apagar e uma projeção golfada pelo fogo ateia do outro lado e a mata do Freixoeiro desata de repente a estralar. A batalha foi sumida em suor.
A família globetrotter que pára no Freixoeiro
A vida deles nove é demasiado grande para caber aqui. A Maria, mãe dos dois rapazes e duas raparigas, ficou marcada pelo local onde nasceu, Lourenço Marques, o explorador que em 1554 colonizou a Baía Moçambique com o seu nome a comerciar sorriso de marfim. Ela nasceu lá, hoje Maputo, Moçambique, costa oriental africana que Portugal governou daí até 1975.
Nessa altura ela já crescia em Angola e voava agora com os pais para a África do Sul, refugiados do calor independentista que disparou subitamente nas colónias em 1970. Três miúdos nasceram lá, Cidade do Cabo, Jacques, hoje 27 anos, Maria João, 25, e Filipa, 24. A Filipa parece a Wynona Ryder. Não a adorável Wynona a correr como o ET de peruca no Stranger Things de hoje mas a Wynona de Reality Bites, que tinha a mesma idade dela, fatal no filme que definiu o amor nos 90’s, que foi triangular. A Filipa tem namorado, é o Leandro, também tem 24 anos, ele esteve à frente da frente do fogo, viu a parede 15 vezes maior do que ele de árvores a arder, que gritavam, e o céu cromado que parecia que se ia dissolver.

Eles cresceram na África do Sul, vão e vêm do Cabo a Lisboa, o outro irmão é o Miguel, é o mais novo, tem 17 anos, naquela tarde ele foi ao fogo de peito armado a avançar com a serpente de mangueiras na mão, era um dos 300 de Esparta e de Snyder, obcecado contra fogo e a Pérsia a arder. Foi essa a lição que ele aprendeu, o que é a bravura, o que nos faz ter valor. Como nos defendemos de tudo e do fogo quando parece que tudo vai arder, o que é a família, o que é a casa, o que é a comunhão, o que é a terra, como é derreter-se do coração.
O Freixoeiro que lhes tinha cabido a todos caído do céu era também do Duarte que casou em 2015 com a Maria, ele tem dois filhos, a Mafalda fã dos dragões e o irmão, 17 anos, também é Duarte como o pai.
Os rapazes bravos de Mação
Eles ficaram primeiro a conhecer os corações dos moços e só depois aprenderam os nomes deles. Eles apareceram de cima vindos do monte que ardia como uma parede esburacada de eucaliptos a chiar e seguia a esgolear-se acima da casa da família, estavam todos no prado de mangueiras e esfregonas molhadas a avançar, de costas para a casa virados ao fogo e esses e uns outros moços aparecem debaixo da estrada e da rua dos Canhotos ao todo eram sete.
Ao fim da tarde no Facebook eles já estão todos a sorrir, uns de pé, uns sentados, estafados, um veste um macacão vermelho afogueado de escarlate, outro refulge de verde refletor, o mais novo tem 15 anos, traz a máscara de respirar em dois canais abraçada ao pescoço, outro tem a pose do jogador de futebol a esperar, outro segura uma míni bebida de penálti e todos têm cara de festejar.
“Parece que nos caíram aqui do céu, bravos rapazes, bombeiros nem os vimos, só de fugida a passar lá em baixo no Estradão, aqui em cima não”, diz a Maria comovida os olhos vermelhos a raiar. “Tenho uma carreira bonita, orgulhosa [é sales manager internacional dos fabricantes na Bimby], trabalho em Lisboa, na Alemanha, na Suíça, estou sempre a voar, e o Freixoeiro é o nosso poiso de família, bravos os rapazes que nos vieram ajudar, é isto a terra é isto a comunhão, é isto que tem valor, conhecer pessoas assim”, e Maria passa as duas mãos na cara e afasta o cabelo da aflição.

E logo depois aquela árvore irreal
Um par de curvas e de metros abaixo da casa deles, adiante do Freixoeiro para quem vai em direção a Arganil e à Mouta Recome pela EN 241-1, estrada que desemboca em Proença-a-Nova depois de muito serpentear, num campo aberto carbonizado por onde o fogo passou a esgoelar, há uma paisagem que provoca pasmo e assombração.
É um retrato bravo na pretura daquela devastação e parece levitar numa estranha tranquilidade. É a imagem de uma laranjeira viva onde tudo à volta dela ardeu, uma árvore gloriosa, cheia de cor, uma árvore numa paisagem de pólvora a respirar. Absolutamente irreal, é tão forte que parece virtual, é como um cisne branco a repousar, vivo, a esperar, prestes a levantar-se e a sair imortal da escuridão.