Rui Cardoso Martins

A mulher violenta

Ilustração: João Vasco Correia

Um rabo-de-cavalo oxigenado, a nuca inclinada, os olhos para baixo vendo o abismo além dos sapatos de ténis, o vazio por baixo das solas, como naquelas varandas de chão de vidro na montanha, ou miradouro transparente de arranha-céus, que nos sussurram agora vou quebrar… De repente a mulher foi obrigada a voltar ao passado, a olhar para trás das costas.

– O que é que está a tomar?

A juíza folheava o processo. Um antidepressivo e um ansiolítico.

– O outro medicamento não sei o nome. O diazepam é só para dormir à noite.

– Sente-se bem com o diazepam?

– Com o diazepam sim, disse a mulher, coçando a mão.

A juíza virou outra folha e perguntou como iam as coisas com a psicóloga (mas já sabia a resposta).

– Há quase um ano que não vou à psicóloga.

– Porquê?

– Porque houve uma conversa… Disseram que essa medicação era para tomar todos os dias e não era.

A mulher tinha lido o relatório da sua psiquiatra que dizia o contrário: havia o antidepressivo diário, mas o ansiolítico era só para situações SOS. Deixou de ir à psicóloga quando esta lhe afirmou que era para tomar sempre. A procuradora do Ministério Público interrompeu, pediu desculpa à juíza:

– Não sei qual é a autoridade de uma psicóloga para alterar o que diz uma psiquiatra…

Perguntou se podia falar directamente com a arguida, uma vez que a conhecia da primeira condenação. Se faz favor sôtora, disse a juíza. A procuradora endireitou os óculos.

– A senhora tem que perceber que isto não é uma questão de uma consulta, é de se cumprir um plano de reinserção social.

– Mas quando se ouve que tenho de tomar todos os dias e a médica não disse isso!

– A senhora não deixa de ir. A senhora dá conhecimento e pede outra psicóloga!

– Eu não… aquela…

– A senhora incompatibilizou-se com as psicólogas todas?

Disse que não. Mas abanava como no início de um sismo, em crescendo, não se sabia de que grau. A procuradora continuou.

– A senhora foi condenada a pena suspensa na execução com o cumprimento de um plano de reinserção. Não se trata de aceitar ou não aceitar! Mas, para além de ser uma obrigação de uma condenação, decorre de uma necessidade. Isto é para o seu bem. Nós entendemos que ia beneficiar. Que ia melhorar. A senhora tem que cumprir, não está na sua disponibilidade ir ou não ir! Certamente a Santa Casa da Misericórdia não tem só uma psicóloga. Isto é uma pena que a senhora ainda não percebeu, o cumprimento de uma pena!

– Tinha entendido. Mas eu não me sinto bem, uma pessoa não se sente bem! Quando uma recepcionista trata uma pessoa pejorativamente! Eu não me sinto bem! Não me peçam para ir àquele sítio outra vez! Ver aquela recepcionista!

E depois soluços, suspiros, lágrimas, tremuras. A pele da mulher tinha manchas vermelhas. O tribunal procurava resposta para aquela fragilidade teimosa.

Violência doméstica. Mais um caso português. Mas não violência contra ela. A vítima, pelo menos a vítima judicial, é o marido. Há um ano, o tribunal decidiu o afastamento da mulher de casa, do marido, da filha, e só não foi para a prisão até 2021 por se ter comprometido a cumprir a reinserção social. A técnica disse:

– Ela criou a impressão de que as pessoas não a tratam bem. A Dona Elisa está numa situação, não de sem-abrigo, mas sem alojamento fixo. Ela volta a casa, numa situação de algum perigo, uma vez que não cumpre o afastamento decretado. De vez em quando, o companheiro chama-a, ela vai uma semana, mas depois vai-se embora outra vez.

Elisa tem “necessidade de melhorar a sua relação emocional com ela própria”. A juíza perguntou se não poderia entrar no programa Agressores. A assistente social abanou a cabeça.

– O programa Agressores está dirigido ao sexo masculino. Tal como está, não dá para elementos do sexo feminino.

Elisa terá de voltar ao programa, com outra equipa. Ou vai presa. A isto chamou a juíza uma “solene advertência”.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)