“A menstruação é tabu porque quem a tem não domina o mundo”

Há uma mulher que quer instigar todas as outras a conhecerem os seus corpos. Para perceberem que ter o período não é vergonha. Que não tem que haver dores associadas. Que o sangue que se perde não é “nojento”.

Se as mulheres apenas são férteis à volta de seis dias por mês e os homens são-no sempre, porque cabe a elas tomar a pílula? E por que razão se inibem de fazer sexo quando estão com o período? “Menstruar nesta sociedade é uma merda”, declara Erika Irusta, feminista basca, tida como a primeira pedagoga menstrual do Mundo.

Tem a sua razão. A palavra “período” ainda é sinónimo de vergonha, escondendo deles o que devia ser “assunto de todos”. Porque sangrar mensalmente é algo pessoal mas não tem de ser tabu. E porque há premissas tidas como absolutas que se devem questionar.

Hipersensível. Inconstante. Depressiva. Instável. Carente. Mal-humorada. Uma montanha-russa emocional. Eis alguns dos adjetivos e expressões que se associam a uma mulher quando está com a menstruação. É, de resto, o que elas próprias pensam de si naqueles dias.

A relação da mulher com o seu corpo oscila entre a estranheza e o insulto, e serão poucas as que compreendem o que se passa nestes e nos outros dias do mês. Culpam-se as hormonas. Por isso se inventaram soluções para as “controlar”. É o caso da pílula. Por que motivo é que a tomamos ao certo?

Erika Irusta debruça-se há mais de oito anos sobre o ciclo menstrual, que não termina nem acaba nos dias em que a bandeira vermelha está hasteada. Um ciclo é todo o mês.

“Menstruar nesta sociedade é uma merda”
Erika Irusta
pedagoga menstrual

“A questão não é usar pílula sim, ou usar pílula não”, refere frequentemente. “Se não dizemos aos homens que a testosterona só serve para se reproduzirem, porque estamos a dizer às mulheres que a química da ovulação serve apenas para procriar? Nós precisamos das nossas hormonas, da mesma forma que eles necessitam. Mas em nenhum momento a deles é posta em cheque, ou se pensa eliminar. A nossa sim.” E a razão por que se elege este caminho e não outro pode residir na ignorância de não sabermos o que estamos a fazer ao nosso corpo.

Erika começou a questionar-se sobre o que se passava consigo quando um dia leu na Internet que as mulheres só são férteis à volta de seis dias por mês. Contou ao namorado, a quem também nunca lhe tinha ocorrido a ideia. “Como é possível que sejas tu a tomar a pílula e eu, que sou sempre fértil, não tomo?”.

Ambos começaram a pôr tudo em causa. Principalmente Erika, que até àquele momento odiava as feministas e se definia como “um dos rapazes”. Nesse instante nascia a primeira pedagoga menstrual do Mundo. Para a qual contribuíram quatro momentos decisivos.

Um: depois de ter nascido, a sua mãe passou por complicações. Ficou sem útero. Os médicos disseram-lhe: “Ao menos tem uma filha”. O objetivo era confortá-la, mas não ajudou. Não sabiam que sonhos acalentava e ficar sem útero acabou com eles. Dois: aos 17 anos, Erika é sexualmente ativa e procura um ginecologista para saber mais sobre métodos contracetivos. Única solução apresentada? A pílula. A jovem elege-a, sem que seja informada sobre toda a castração química que vai sofrer. Terceiro momento: Erika quer ser mãe.

Engravida, mas perde o filho. Um aborto espontâneo. É-lhe dito no corredor de um hospital que já não está grávida. Quarto momento: desespera para ser mãe mas não consegue engravidar. Começa a tomar nota de como se sente todos os dias. A dada altura percebe que há um padrão. E começa a questionar-se por que motivo é cíclico.

“Sendo a menstruação um sintoma de saúde, por que razão nos vendem como se fosse uma doença?”
Erika Irusta

O clique deu-se quando percebe o que o feminismo realmente defende. Para fornecer informações que levem outras mulheres a questionarem-se cria o blogue “El Camino Rubi”, assim como uma comunidade educativa digital, uma espécie de rede social para mulheres que querem saber o que se passa com o seu corpo, a que chama “Soy Una, Soy Quatro”, porque percebe que cada mulher encerra em si outras. Desde então, tem estudado e trabalhado com a Society for Menstrual Cycle Research, para ensinar sobre a experiência menstrual.

“A menstruação é uma construção cultural, social e política”, conclui. “Quando dizemos que a menstruação é natural, queremos dizer que ela é fisiológica. Mas a forma como a experimentamos é cultural.” Na China, onde a menstruação é conhecida por uma palavra que significa “água celestial”, explica-se às mulheres que se há problemas, como dores, é porque algo no ciclo delas não está bem.

Este é outro dos pontos que Erika frisa com frequência. “Sendo a menstruação um sintoma de saúde, por que razão nos vendem como se fosse uma doença? Por que razão se acha natural que quem menstrua tenha dores? Podemos ter desconforto, mas não temos de sentir dor. Se dói é preciso saber o que raio se passa.”

Quando o sangue é azul

Este é o resultado de uma sociedade que não evoluiu grande coisa neste assunto. “Temo-nos como modernos, fingimos ter superado um tabu, quando na realidade o encobrimos ridiculamente.” Provas? “Nos anúncios enchem de líquido azul os pensos higiénicos, um azul céu, muito melhor que um vermelho ‘putón’”. Erika usa o vernáculo. Choca, mas sabe-se que tudo o que diz é uma realidade.

“O Instagram elimina fotografias onde aparece conteúdo relacionado com a menstruação. Até se pode denunciar como algo asqueroso. Vendem-nos tampões com aplicador para não termos de nos tocar. Isto não é superação.” Vai mais longe. “Temos nojo de nos tocarmos e de fazer sexo durante o período, mas não nos importamos que o nosso corpo seja inundado pelo sémen dos homens. A menstruação é um tabu porque a têm os corpos que não dominam o Mundo.”

“Nos anúncios enchem de líquido azul os pensos higiénicos, um azul céu, muito melhor que um vermelho ‘putón’”
Erika Irusta

Cathia Chumbo, especialista em Psicologia Clínica e da Justiça, a exercer funções na área clínica no Hospital Arrifana de Sousa, em Penafiel, tem escrito vários artigos sobre esta temática e conhece o trabalho de Erika Irusta: “Foi uma das minhas pacientes que me falou sobre ela”.

Curiosa, leu mais sobre a pedagoga menstrual, e diz ser fácil compreender o sucesso que a palavra espalhada está a ter. A autora “assume uma pedagogia como forma de disseminação de um conhecimento que pretende chegar a todas as mulheres da forma mais laica”.

Ao questionar “conceitos que se encontram demasiado enraizados socialmente, abala o pensamento feminino com questões éticas e sociais”. Na sua opinião, Erika põe a descoberto “a necessidade que as mulheres têm de se questionarem nos mais variados temas, de índole íntima, sexual”, e “acima de tudo tabu”. Assumindo que, afinal, “não são loucas, …são cíclicas”. E que isso não tem nada de errado.

 

Nota: Na edição impressa de 5 de maio, onde este artigo veio publicado, por lapso foi escrito que a psicóloga Cathia Chumbo conhecia a espanhola Erika Irusta. Pedimos desculpa pelo erro.