Texto de Pedro Emanuel Santos
Em 1981 a vinha era mundo de homens. Deles e praticamente só para eles. Mulher naquele mundo tão específico era olhada de lado, tida como inexperiente, quase inapta a desempenhar função para a qual não parecia destinada. Mas há sempre quem rompa convenções e desafie normas instituídas em sociedades pouco abertas à diferença.
Foi o que aconteceu com Filipa Tomaz da Costa quando, nesse ano, a então jovem estudante de Agronomia foi convidada pela Bacalhoa Vinhos Portugal, que então se denominava João Pires & Filhos, empresa fundada nos idos de 1922 em Azeitão, na região de Setúbal, para fazer parte da empresa enquanto enóloga. Aceitou sem hesitar e, sem se aperceber, fez história. Nunca mais de lá saiu e hoje continua incontestável diretora do setor de enologia.
O espanto pela raridade foi tanto que um pequeno (e curioso) episódio ajuda a entender sem explicação adicional o enorme passo que nesse 1981 foi dado quase sem se dar por isso. “Enviavam-me correspondência ou faxes com o nome Filipe, e não Filipa. Depois, quando encontrava pessoalmente essas pessoas, ficavam espantadíssimas por lhes aparecer pela frente uma mulher. Acontecia muitas vezes”, conta Filipa Tomaz da Costa, que ostenta o título não oficial de enóloga mais antiga de Portugal. “Tenho a certeza que fui, sim”, realça orgulhosamente.
Diretora da Bacalhoa Vinhos desde 1993, Filipa Tomaz da Costa garante “ter tido a sorte” de contar com elementos da cadeia de comando da empresa “que sempre primaram pelo bom tratamento” e por “não olhar ao facto de ser mulher, apenas à competência”. O pior foi o resto, o que estava lá fora, as barreiras que foi necessário derrubar até que no exterior se aceitasse como normal uma presença feminina em universo até aí inteiramente masculino e onde parecia prevalecer uma placa imaginária pintada a vermelho com a inscrição “mulher não entra”.
A caminhada praticamente solitária de Filipa Tomaz da Costa durou o que pareceu eternidade. Percorreu a década de 1980, sempre ela (apenas ela, aliás) como enóloga única em Portugal, e atravessou a de 1990, quando começaram a surgir os primeiros sinais de que algo que estava a mexer. Devagar, muito devagarinho, é verdade.
“Foi na viragem para o século XXI que se deu origem à mudança. Mais mulheres abraçaram então a enologia. Muitas com famílias ligadas à vinha, outras, até, que se deslocaram das cidades para seguirem vida profissional em herdades e quintas fora dos grandes meios”, explica José Silva, enófilo e eterno apaixonado pelo mundo dos vinhos, um dos maiores especialistas nacionais na matéria e responsável pelo programa “Hora de Baco”, transmitido durante várias temporadas na RTP. “Hoje está completamente ultrapassada a ideia de que a enologia é só para homens, não faz qualquer sentido pensar assim”, assegura.
“É um sinal de evolução da sociedade. Afinal, na geração da minha mãe também não era possível haver enfermeiras, por exemplo. Atualmente é perfeitamente banal ver mulheres na vinha, até em cima de tratores. E ainda bem”, congratula-se, por sua vez, Filipa Tomaz da Costa, a grande precursora da revolução de mentalidades.
A primeira presidente
O poder feminino aumentou de tal forma que a própria Associação Portuguesa de Enologia (APE), a mais representativa da classe, é liderada pela primeira vez na história por uma… mulher. A honra cabe a Alexandra Mendes desde janeiro último, ela própria um exemplo da geração que virou o século XX e abriu o século XXI, a que abriu mentalidades e desbravou caminhos antes apenas reservados aos homens. Depois do curso tecnológico de Indústrias Agroalimentares, licenciou-se em Engenharia Alimentar na Escola Superior Agrária de Santarém, acabou por apaixonar-se depois pela enologia.
“Comecei em 1996 e, realmente, eram então muito poucas as mulheres no meio. Aliás, não foi fácil para mim entrar no mercado de trabalho, estive seis meses à espera que respondessem daquele que foi o meu primeiro emprego na área. As pessoas davam desculpas, diziam que eu não era aquilo que procuravam, evitavam-me”, relata Alexandra Mendes, 45 anos, atual enóloga responsável máxima pela enologia das Adegas Dois Portos (na região de vinhos de Lisboa), da Quinta do Cerrado da Porto (em Sobral do Monte Agraço, na mesma região) e do Monte da Capela, no Alentejo.
A presidente da APE, então longe de imaginar que viria a liderar a associação, recorda que após a pequena travessia no deserto sentiu-se, muito rapidamente, integrada numa atividade que via as mulheres como ser raro no meio. “Nunca fui colocada de lado, longe disso. Até acabei por ser mais protegida do que outros colegas homens”, admite Alexandra Mendes.
Da Direção da associação faz parte mais uma mulher. Chama-se Ana Isabel Almeirante, tem 31 anos e é a tesoureira da instituição. Nos restantes corpos sociais, elas também começam a sobressair, sinal da evolução de tempos e mentalidades. Martta Reis Simões e Sofia Catarino integram, respetivamente, o Conselho Fiscal e o Conselho Coordenador das Atividades Profissionais. Só a Assembleia Geral, essa, é 100% masculina.
“Em qualquer profissão o essencial é demonstrar o que sabemos, independentemente de sermos homens ou mulheres. Pode ainda haver distinção de género na enologia, admito, mas nunca dei por isso. Se fui discriminada nem sequer me apercebi, não dei demasiada importância”, diz Ana Isabel Almeirante, natural de Vila Franca de Xira, especialização feita em longas experiências vividas na Austrália e nas principais regiões vinícolas de Portugal, senhora de horizontes vastos e para quem “a tecnologia está de tal forma uniformizada que hoje é fácil ser enólogo em qualquer parte do Mundo”.
Atualmente, tem em mãos um projeto próprio, ainda em fase embrionária, que conta desenvolver e tornar realidade a breve trecho.
A lenta evolução dos tempos
O rácio de paridade da Direção da Associação Portuguesa de Enologia acaba por fazer pecar por defeito a reflexão sobre a crescente importância das mulheres na profissão. Os números mais recentes apontam para o facto inequívoco de que dos 390 membros da APE 89 são mulheres. Ou seja, qualquer coisa como 22,8%. Percentagem baixa, é verdade, ainda assim surpreendente, se for tido em conta que há pouco mais de uma década era tarefa complicada encontrar enólogas nas vinhas nacionais.
Foi gradual o aumento da influência feminina na enologia. Qual macia marcha rumo à abertura de atitudes e mentalidades, os passos foram-se dando discretamente. Os preconceitos já pouco abundam, cada vez mais ténues à medida que as mulheres foram tomando o pulso e ganhando posição, destaque e mestria. O que hoje parece normal, não há tantos anos assim era, contudo, olhado com o desdém de quem se habituou a encarar o vinho enquanto universo puramente masculino. Elas já impõem tanto respeito como eles. Ou mais, até. E não há conflito de género que as abale, garantem.
“Tem havido uma evolução muito grande no que diz respeito às mentalidades antes predominantes nos vinhos, os mitos caíram. As mulheres sempre foram importantes, é certo, a grande diferença é que em gerações anteriores não tinham qualquer visibilidade. Atualmente é muito diferente. Para melhor, claro”, considera Filipa Pato, 44 anos, enóloga desde 2001, grande responsável juntamente com o marido e sócio, William Wouters, por uma das principais produções vinícolas da Bairrada, responsável pelo Nossa Calcário, cujo tinto conquistou o prémio The Wine Advocate. “Vinhos sem maquilhagem”, como eles próprios definem.
“Acho que o meu grande segredo foi ter passado temporadas em formação na Austrália, em Bordéus (França) e na Argentina. Isso permitiu-me ver Portugal de fora para dentro e perceber os nossos pontos fortes”, considera Filipa Pato, cuja formação de raiz foi em Engenharia Química. “Foquei a atenção nas castas locais e, num Mundo cada vez mais globalizado, procurei as diferenças que nos distinguiam e que podiam fazer a diferença nos nossos vinhos. É isso que tento aplicar no meu dia-a-dia enquanto enóloga”, descreve.
A ciência explica
Afinal, haverá razão profissional, científica ou outra que faça traçar distinções claras entre homens e mulheres no desempenho da enologia? Filipa Pato acredita que sim, que as mulheres “podem focar-se mais na questão da elegância e os homens nas partes mais estruturais”, mas até isso pode ser fator de sublimação da profissão. No fundo, no engrandecimento dos vinhos nacionais, em alta na cotação internacional, cada vez mais reconhecidos além-fronteiras, alvo de admiração constante.
José Silva vai mais longe e baseia-se na ciência para justificar diferenças essenciais entre uns e outros. Umas e outros, para ser mais exato. Crê que a grande vantagem das enólogas é serem “mais sensíveis em termos de aroma e paladar por uma questão genética. E isso está cientificamente comprovado”.
Antes, quem arriscasse dizer que as mulheres haveriam de se tornar referência corria o risco de ser quase ridicularizado, tomada como heresia tamanha antecipação de emancipação. Desafio quase impossível, portanto. A realidade tratou de desmentir fantasias que se solidificaram como verdades absolutas ao longo de gerações e que acabaram por ruir como castelos de cartas num piscar de olhos.
Os cursos de enologia, inexistentes até há cerca de 20 anos, foram sendo cada vez mais procurados por mulheres. O primeiro nasceu na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) – “com professores de excelência”, como recorda José Silva -, outras licenciaturas podem ser tiradas atualmente, também, nas universidades de Évora e Lisboa e têm “muita procura” de alunas.
A criação de tais cursos veio facilitar o acesso das mulheres à enologia e tornar mortos paradigmas vividos no antigamente. A realidade atual comprova que as quintas portuguesas são, cada vez mais, feudo delas. Com sinais reconhecidos no mercado a servirem de prova evidente de como comparar 2019 com o final do século XX é exercício praticamente impossível. Ou fácil, se quisermos simplificar ao máximo e dizer que hoje há mulheres onde antes só havia homens. Mas tal seria quase menorizar uma luta que demorou a ser vencida e obrigou a ultrapassar obstáculos com elevado grau de dificuldade.
Novas gerações
No Douro, em Cedovim, aldeia quase colada a Vila Nova de Foz Côa, mora uma das quintas de onde saem dos vinhos mais reconhecidos de Portugal, os Conceito. São 180 mil as garrafas produzidas nesta quinta, cuja responsável é exemplo perfeito da geração mais recente de enólogas. Rita Marques, 36 anos, tem curso tirado especificamente na área e exporta praticamente 100% da produção para mercados internacionais.
“Ainda estudei dois anos de engenharia mecânica em Coimbra, mas acabei por desistir porque não gostava nada do curso. Optei por enologia porque a minha família possuía vinhos e isso influenciou muito a decisão que tomei”, expressa Rita Marques, ela que vem de uma geração em que a dicotomia homem/mulher na enologia aparece já esbatida pela diferença de mentalidades. “Atravessei uma fase em que apanhei muitas mulheres que tiraram o curso universitário ao mesmo tempo do que eu. Havia mais mulheres do que homens, até”, rebobina.
Como está inserida num setor “extraordinário e muito civilizado”, Rita assevera que “sempre se sentiu muito bem”, sem diferenças de tratamento de género de que se apercebesse ou que sentisse na pele na primeira pessoa.
“O fundamental é ter boas bases científicas de enologia. E ir experimentando. A partilha de conhecimentos é cada vez mais importante e importa saber o que se faz em Portugal e um pouco por todo o mundo. Tudo isso, mais a experiência que se vai acumulando com o tempo, formam um bom enólogo”, define. Se é homem ou mulher, isso é indiferente, “não é profissão em que o sexo seja determinante”.
Solidariedade e vinho
Quase no outro extremo do país, numa herdade isolada a meia hora de caminho de Beja, Rita Soares vive com o marido, com os cinco filhos (que desenham os rótulos das garrafas que comercializa) e a companhia de uma vinha imensa que se perde de vista na imensidão do Alentejo.
Formou-se em Educação, curso que rapidamente percebeu que não iria exercer porque a atração pelo vinho e a vinha foi mais do que assolapada e transformou-se rapidamente em amor para a vida inteira. Deixou a cidade e entregou-se de coração aberto à Malhadinha Nova, de onde saiu, em 2003, a primeira produção própria. As coisas correram tão bem que foi logo premiada. E nunca mais parou.
“Quando cá cheguei com o meu marido nem sequer vinha existia. Foi tudo lançado aos poucos, com muito trabalho pelo meio”, frisa Rita Soares, 46 anos, “enóloga sem formação mas muita paixão pelo vinho”, testemunho direto de encarar possíveis adversidades pelo facto de ser mulher com um sorriso nos lábios e otimismo permanente.
“É verdade que este é um mundo de homens, sobretudo por ser muito duro fisicamente. Já foi mais assim, é certo, mas ainda continua a ser assim”, sublinha. “Mas nunca liguei muito a isso. Sou uma pessoa positiva e mesmo que alguma vez tenha sido olhada de lado por ser mulher não dei por mim a reparar”, garante.
Entretanto, Rita Soares foi alargando uma rede de conhecimentos e de amizade com outras enólogas. Juntas, imaginaram um projeto de solidariedade que viu a luz do dia o ano passado, a United Wine Women – Blended for a Cause. A primeira ação foi pensada para ajudar o Refúgio Aboim Ascensão, no Algarve, casa de crianças provenientes de meios desfavorecidos.
“A parte social sensibiliza-nos muito e queríamos fazer algo que pudesse ter impacto”, diz Rita. Assim pensado, assim executado. Ela e mais 24 enólogas e produtoras de país uniram-se em torno do objetivo comum de ajudar o próximo com aquilo que mais e melhor sabem fazer: vinho. “Cada uma de nós deu o seu melhor vinho”, que depois foi leiloado em Lisboa num cabaz comum que rendeu 20 mil euros. “É para repetir no futuro”, promete.
Filipa Tomaz da Costa, Alexandra Mendes, Ana Isabel Almeirante, Filipa Pato, Rita Marques e Rita Soares. Seis nomes que protagonizam o vinho e a vinha no feminino. Que derrubaram barreiras, imaginaram o sucesso e protagonizaram-no, sem olhar a possíveis preconceitos que tiveram a coragem de derrubar. Tanto assim foi que hoje são figuras respeitadas sem que se olhe para elas primeiro como sendo mulheres. São enólogas, ponto final. Sem direito a acrescentos, querem ser conhecidas no mercado português e internacional apenas com a garantia da qualidade do que produzem. Conquistaram o papel principal e dele não abdicam.
“Elas são peça fundamental, o motor para mudar para uma vida completamente diferente na vinha. Além de que se dedicam de alma e coração, andam pelo Mundo fora, têm uma paixão fantástica pela arte”, elogia José Silva. “E em termos de aroma e palato descobriram que têm mais sensibilidade do que os homens”, completa. Características que as enólogas aplicam diariamente no trabalho, completando os conhecimentos e alargando horizontes nas múltiplas viagens que fazem. Todo o saber no sabor de um copo de vinho.