Rui Cardoso Martins

A grande queda

Ilustração: João Vasco Correia

Miguel é que era o presidente da Administração. Empresa de milhões e de centenas de colaboradores, como ele diz. Mas isso foi noutra vida, antes desta sala de tribunal, ouvindo a sentença da mulher que roubava ouro a idosos, o jovem com charros nas cuecas, esperando a sua penosa vez. A meio da manhã, chamaram-no à frente, ao banco dos réus. Tinha um casaco bom, meio informal e fora de moda. Cabelo grisalho quase nos ombros.

– E que o é que o senhor Miguel faz?

– Eu ajudo o meu pai e a minha mulher.

– A fazer o quê?

– O meu pai tem uma quinta, onde eu o ajudo, onde se produz vinho e azeite.

– Conhece os factos pelos quais o senhor está acusado e dispensa a leitura ou pretende que lhe leia a acusação?

– Dispenso. O que eu quero explicar é o seguinte. Eu fui empresário durante muitos anos, a empresa B. nessa altura tinha níveis de facturação entre… à roda de 28 milhões de euros, ou mais, com mais de 250 colaboradores e que…

– Pergunto-lhe se nas datas em causa, entre Agosto de 2012 e Julho de 2013, o senhor era administrador desta sociedade.

– Era.

– E o senhor era o presidente do Conselho de Administração.

– Sim, sendo que o Conselho de Administração não tem qualquer atribuição a mais do que os outros.

– Pergunto-lhe se os valores que aqui estão foram ou não descontados e não entregues à Segurança Social.

– Nas datas não tive conhecimento disso. Entretanto, apurei a situação e imediatamente fui ao IAPMEI tentando fazer um PER, um plano especial no sentido de regularizar, porque o que eu lhe ia dizer há pouco é que a empresa tinha um nível de vendas de 28 milhões de euros e 250 colaboradores, foi… enfim… apanhada pelo turbilhão da crise… mas até essa altura corria tudo normalmente, até que chegou uma altura, ao verificar que a área financeira não tinha cumprido, enfim, imediatamente tentámos tomar as medidas necessárias…

Miguel estava a dizer que a culpa era de outro homem:

– O processo é automático e é da responsabilidade do administrador financeiro.

– Isso diz o senhor.

– Não, digo eu, não! Era assim que era! E nem pode ser de outra maneira, porque uma empresa desta dimensão não tem um Super-Homem a tratar de todos os assuntos!

– Olhe, a sua empresa fazia o quê?

– Consultoria e branding.

– E passaram a ter dificuldades financeiras, é isso?

Miguel agora falava do seu plano, via-sacra, crucificação.

– Quando detectámos que esse pagamento não tinha sido feito, pedidos um plano especial de regularização, fechámos esse plano, começou a ser pago ainda quando eu estava e as prestações foram sendo cumpridas, eu dei todas… as minhas poupanças de uma vida pus na empresa para regularizar aquilo que conseguia regularizar e em Julho de 2014 saí da empresa e deixei o plano fechado e os pagamentos em regularização. A partir daí, venho a saber mais tarde, não só não registaram a minha saída como não fizeram pagamentos. Senti que, apesar de não ser da minha responsabilidade, senti que fazia parte e tinha que contribuir, e contribuí, e a minha vida entrou num… num turbilhão, e passou a ser uma coisa muito diferente daquilo que era, depois de quase 30 anos de empresário… a criar empregos, a pagar salários, muitos milhões de impostos, mas enfim.

Vou poupar-vos aos testemunhos dos trabalhadores (Miguel diz colaboradores) que não receberam salários. A Internet está cheia de notícias de deserções, saídas, novas empresas formadas com restos da gigantesca empresa de Miguel. Lembro só os inspectores da Segurança Social e a dívida de três milhões de euros. De como, só neste processo, falta pagar (vejam o rigor que o Estado põe na sua máquina de sangrar): 241 961,67€.

No fim, Miguel levantou-se outra vez.

– Com o que é que vive?

– Ganho 500 euros.

– Vive na casa de quem?

– Numa casa emprestada. É da minha filha, que lhe deu a mãe.