A grande descasca

A censura, a reprimenda, a invectiva, a reprovação, o reverbério, enfim a esfrega, a grande descasca dada a João P., o condutor insolente, começou mansa. Mas nos olhos da juíza luzia já, desde o princípio, quando o mandou levantar para a sentença, a mensagem que diria vinte minutos depois:
– Realmente, cada um acredita no que quer. E o arguido tentou acreditar na sua versão que inventou. E, às tantas, tanta mentira se conta que se acredita nelas.
Na verdade, a juíza não acreditava que João P. acreditasse no que ele próprio dissera em tribunal. Ou então não teria continuado para aquele final épico (que vos convido a conhecer).
Esta miséria em quatro rodas junta duas gerações: um homem segue em Lisboa de carro com a mulher e cinco crianças; outro carro atravessa-se à frente (uma condutora distraída tirou-lhe a prioridade, foi sem querer e levava também ela um bebé no banco de trás); o homem muda de direcção e persegue o carro, buzinando; ultrapassa o carro e trava à frente, impedindo que a senhora prossiga; sai do carro e quer que ela abra o vidro para ouvir os seus impropérios (julgava-se agente da autoridade, talvez?); a senhora, cheia de medo, não abre o vidro e só quer sair dali; o homem leva o braço atrás e parte-lhe o vidro com o cotovelo.
Resumo simples, consequências complexas. Porque João P. veio dizer que estava perto do guarda-lamas e que só partira o vidro porque se desequilibrou, isto é, sugeriu que a senhora o tentara atropelar.
Estava outra de vez de pé mas agora é que seria abalroado de verdade. Por uma juíza no tribunal.
– Perante uma mera quezília de trânsito, o arguido perseguiu, desviando-se inclusive da sua rota, buzinou, ultrapassou e parou à frente de um veículo conduzido pela demandante, saindo da viatura, com cinco crianças dentro da viatura, não há nada de bom a dizer!
As provas estavam nas próprias declarações de João P., nas da vítima-demandante, num homem que ia a passar e viu tudo.
Foram 250 dias de multa a 7 euros, isto é, 1 750 euros. Mais danos não patrimoniais de 1 500 euros. Mais o vidro de 150 euros. Mais juros. Mais custas judiciais. Foi o vidro mais caro de uma vida. Já a descasca foi grátis. A juíza falou alto e disse:
“Não percebemos a lógica da sua defesa: Realmente qualquer pessoa… provavelmente se contasse o que nos contou a nós às crianças que vinham dentro do carro, também elas se teriam rido muito e também elas diriam que quis partir o vidro. É tão ridículo, e a forma como o arguido ainda se acha numa posição de poder ensinar alguma coisa a alguém, é revelador de uma personalidade que só merece censura deste tribunal. O arguido é condenado numa pena de multa, como referi há pouco, ‘in extremis’, porque realmente perante aquilo que ficou assente, a proximidade de uma pena de prisão ficou exclusivamente dependente do facto de ter ou não antecedentes criminais, porque se os tivesse não haveria forma de tentar evitar a prisão.
O que o arguido fez: perseguir alguém, desviar-se do seu caminho, buzinar, ultrapassar e travar à frente de outra pessoa e depois sair do seu carro e ir para junto dessa pessoa, querer obrigá-la a sair do carro, com cinco crianças – cinco crianças! – e ainda teve aqui o desplante de dizer que duas não eram suas… Mais vergonha devia ter! Mas o que é certo é que não teve vergonha de nos vir contar isto. Contou-o e de uma forma como se isso justificasse tudo aquilo que depois aconteceu. O que é certo é que não percebemos como uma pessoa adulta, inserida na sociedade em termos familiares, consegue chegar a este ponto. A vergonha que espero que esteja a sentir que seja suficiente para que a educação que tem dado aos seus filhos mude radicalmente. Aquilo que mostrou aos três filhos e às duas crianças que infelizmente estavam no seu carro, e que não tinham nada a ver com o assunto, é algo de absolutamente perigoso e que só merece censura!
“Esta foi, a sua primeira condenação, pelo menos no registo criminal é a primeira que lá tem. E espero que, para bem dos seus filhos, aquilo que demonstrou nesta sala… tenha sido algo que tentou fazer crer ser… que efectivamente, lá no fundo, ainda exista alguma coisa que lhe permita educar as crianças que lá tem em casa! Está encerrada a sessão.”
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)