A escola que construiu uma “fábrica” para gerir as emoções das crianças

Texto de Sara Dias Oliveira | Fotos: Tony Dias/GI

Na entrada da Escola Básica de São João de Ver, Santa Maria da Feira, está uma fábrica feita de papelão com pássaros e corações estampados, uma torre, desenhos de engrenagens e orifícios que recebem tampas de plástico que simbolizam as emoções da tristeza, da raiva, do medo, da frustração.

A Fábrica das Emoções tem um aspeto tosco, desengonçado e surgiu para reciclar emoções negativas. À chegada, à saída, nos intervalos, quando quiserem, os mais de 200 alunos, do pré-escolar ao 1.º ciclo, podem abrir o seu “transportador de emoções”, uma pequena bolsa transparente com tampas e que pode ser carregada em casa, para se libertarem do que lhes aperta o coração. A matéria-prima desta fábrica de cartão são emoções negativas que são engolidas nos orifícios e transformadas em sentimentos positivos. É um projeto de educação emocional.

“Reciclamos os nossos sentimentos maus, como o medo e a infelicidade, para transformá-los em sentimentos bons”, explica Ana Lua, de dez anos, aluna do 4.º ano. Há pouco tempo, uma separação apertou-lhe o coração. “Coloquei uma tampa na tristeza e ajudou”, confessa.

Beatriz Dias, de nove anos, anda na mesma turma e também tem dado trabalho à fábrica. “Quando pensamos numa coisa que nos está a magoar, a fábrica dá-nos sentimentos bons.” Quando o seu gato desapareceu e nunca mais voltou, quando estudou muito para o teste de Matemática e não ficou totalmente satisfeita com a nota, quando aquela amiga não quis brincar com ela no recreio.

“A fábrica ajuda-nos a não esconder os maus sentimentos.” A colega de turma Gabriela Roma, também de nove anos, ficou espantada com a estrutura de papelão. “É muito bonita, tem passarinhos, luzinhas e corações. É muito divertido, há muitas tampinhas e é engraçado.” Acrescenta Beatriz Dias: “Colocamos uma tampinha e, de repente, ficamos melhor”. Para Ana Lua, o edifício de papelão “é uma ideia muito fixe”.

“Quando tenho sentimentos maus, ponho uma tampinha e fico melhor. A fábrica ajuda a transformar as nossas emoções negativas em emoções boas.”

Simão Alexandre tem sete anos e já colocou mais de 40 tampas na tristeza. “Quando pomos lá uma tampinha, não sentimos os sentimentos maus.” Já lhe aconteceu ficar triste quando a avó não lhe comprou o brinquedo que queria. “Senti-me muito zangado, coloquei uma tampinha e passou.” A colega de turma Carolina Valente, de oito anos, concorda.

“Quando tenho sentimentos maus, ponho uma tampinha e fico melhor. A fábrica ajuda a transformar as nossas emoções negativas em emoções boas.” Martim Magalhães, de sete anos, sabe qual o trabalho da fábrica, mas ainda não colocou tampas. “Uma senhora perguntou-me se tinha sentimentos maus, mas eu acho que não.” Francisca Maia, de sete anos, gosta da fábrica. “Tem um aspeto bonito.”

Durante três dias, logo que a fábrica ficou instalada, ninguém percebeu o que estava ali a surgir. Até que uma carta entrou em todas as salas da turma com uma história que foi lida em voz alta, o mistério foi desvendado, e a Fábrica das Emoções começou a funcionar.

“Todos temos maus sentimentos e as crianças conseguem lidar com eles e sabem pará-los para os transformar”, adianta Ana Paula Saraiva, coordenadora da escola. Partilham-se histórias nas salas de aula, percebe-se o que o outro sente, há momentos de ajuda. Reciclam-se tampas, reciclam-se sentimentos. Dá-se espaço para sentir e para que as crianças compreendam que todas as emoções são válidas.

“É um projeto que ajuda a trabalhar o lado emocional das crianças”.

“É um projeto que ajuda a trabalhar o lado emocional das crianças”, refere Ivo Maia, da associação de pais. Mónica Maia, vice-presidente da associação de pais, destaca a entrega. “A escola não é só uma escola, é importante que se sintam em casa, fazê-los sentir que fazem parte da escola.” Noel Ferreira, presidente da associação, salienta o envolvimento. “O trabalho é fantástico, pode ser considerado uma boa prática dentro do ambiente escolar.”

A semente está lançada e os alunos continuam a reciclar emoções. Ana Paula Saraiva não duvida do impacto do projeto. “A linha do tempo não é só hoje, ela segue, e as nossas crianças nunca mais vão esquecer a Fábrica das Emoções. São essas memórias que queremos criar. Ao longo da vida vão ter uma fábrica para reciclar sentimentos.”

Escolher caretas, pintar almofadas, partir garrafas

A expressão das emoções e dos sentimentos é uma peça fundamental do ser humano em qualquer idade. Há crianças, pelo pouco vocabulário ou dificuldades em construir frases, organizar o pensamento ou conter o imediatismo e a impulsividade, que não conseguem revelar o que sentem.

“Alguns sentimentos são íntimos e devem permanecer íntimos, mas muitas vezes as crianças querem dizer o que sentem e não conseguem… ou ninguém as escuta, porque ‘são crianças'”, refere o pediatra Mário Cordeiro. E assim é necessário permitir essa oportunidade e perceber qual a melhor forma de cada criança expressar o que sente.

Há várias estratégias. Mário Cordeiro preconiza o uso de caretas, de “Mr. Happys”, emojis, e afins, em número par, quatro ou seis, do mais zangado ao mais alegre, para evitar a tendência de apontar o do meio. As crianças pequenas podem indicar com qual se identificam. “Depois, os pais podem tentar perguntar porque é que se sentem assim, o que correu mal (ou bem) e até perguntar também de que precisam para evoluir, não logo para o extremo da escala, mas para a careta a seguir e por aí fora”, explica.

“Alguns sentimentos são íntimos e devem permanecer íntimos, mas muitas vezes as crianças querem dizer o que sentem e não conseguem… ou ninguém as escuta, porque ‘são crianças'” (pediatra Mário Cordeiro)

Perante a frustração, é natural a necessidade de expressar raiva. Uma forma é, adianta, arranjar uma almofada branca para a criança pintar com os pais uma cara muito feia. Quando está zangada pode dar uns murros na almofada, mas só naquela. É uma forma de espantar demónios. Atirar garrafas de vidro para dentro do vidrão e ouvir aquele estilhaçar das garrafas também resulta: “É uma forma de, com elas, e de uma forma inofensiva e boa (é o mais importante!), expulsar alguns fantasmas e sentir o poder de ‘partir’ sem fazer mal a ninguém”.

“As crianças (e as pessoas em geral) vivem num colete de forças sentimental e quando se soltam dele ‘rebentam’ como animais raivosos”, diz o pediatra, que avisa que temos de respeitar os sentimentos e as emoções das crianças, pessoas em formação que ainda não compreendem o que sentem e o que os outros sentem. “A verdadeira empatia e solidariedade, para formar pessoas e cidadãos melhores, virá também daí.”

Na verdade, todos os dias, de forma natural e espontânea, as crianças adquirem um reportório emocional, sentem as emoções tal como são, correm o risco de transformar a tristeza em zanga, vergonha em introversão excessiva e frustração em raiva. As emoções podem vir ao de cima como uma panela de pressão. Por vezes, o choro, os gritos, as birras das crianças são expressões do que lhes vai na alma. “Não podemos exigir que uma criança tenha um controlo refinado das emoções como os adultos”, avisa Ana Barros, neuropsicóloga.

A aprendizagem emocional é um processo contínuo que permite compreender e regular emoções para desenvolver a inteligência emocional. No entanto, a sociedade foca-se no prazer, na recompensa imediata, na felicidade a qualquer custo e em qualquer circunstância.

“As nossas crianças começam a crescer num contexto em que apenas a alegria importa e não aprendem a sentir a perda e a frustração. Os filhos querem… os pais dão.” E acrescenta: “Uma criança privada de frustração tornar-se-á num adulto insatisfeito, com fraca capacidade de resiliência e experienciando emoções descomedidamente negativas e intrusas”.

As emoções tornam-se negativas quando impedem a criança de tomar decisões, quando paralisam e não deixam fazer o que se gosta. E o domínio do cérebro emocional precisa de afetos, limites, empatia e uma grande dose de compreensão. Os pais são fundamentais, a escola também.

“Uma criança privada de frustração tornar-se-á num adulto insatisfeito, com fraca capacidade de resiliência” (neuropsicóloga Ana Barros)

“O ensino não deve cingir-se aos conteúdos cognitivos, é imprescindível inserirmos, no processo educacional, a aprendizagem de competências emocionais e sociais”, sublinha Ana Barros. Ou seja, tornar o ambiente escolar num espaço de crescimento intelectual, cognitivo e emocional capaz de oferecer e cultivar sentimentos ligados ao desejo de compreender o outro e à valorização da própria pessoa.

“Ser emocionalmente alfabetizado é tão importante quanto a aprendizagem das letras e dos números. Precisamos de crianças que desenvolvam a empatia, que se reconheçam nos sentimentos do outro, que descodifiquem as suas emoções, que consigam parar para pensar, sem fugir para o evitar; que aprendam a respeitar o espaço dos outros, sem que isso implique conflito; saber conviver com a diferença e aceitá-la.” Tudo isso implica que a escola, os pais e a comunidade caminhem lado a lado.

Os sentimentos não devem ser desvalorizados. “Todas as crianças são especiais e únicas e reagem de maneira diferente aos mesmos estímulos”, refere Manuela Queirós, a professora que criou o Projeto CIEE – Clube de Inteligência Emocional na Escola. “Tanto os pais como os educadores devem estar muito atentos, não devem minimizar ou maximizar os sentimentos, mas sim tentar compreender que ficam tristes e zangados como os adultos.” As emoções existem, são reais, não podem ser ignoradas. “São a bússola que orienta as nossas vidas.”

Trabalhar as emoções não é muito complexo. É preciso prestar atenção a todos os sentidos, parar, identificar as causas e quais as consequências no corpo, no pensamento, no comportamento. “As emoções são reações do nosso corpo a estímulos.” Internos e externos. Os mais novos, do pré-escolar, podem reconhecer emoções em histórias, animais, noutras pessoas. Primeiro nos noutros, depois em si próprios. Há estratégias, jogos, atividades lúdicas, histórias para trabalhar emoções.

“Os pais, em primeiro lugar, devem estar muito atentos às expressões faciais e corporais dos filhos. Descobrir e conversar sobre a razão, o porquê e, juntos, chegarem às causas desse sentimento”, diz Manuela Queirós. E ir mais atrás, à razão da causa. Criar cumplicidade, hábitos de partilha, e participar em grupos de inteligência emocional nas escolas. “Nascemos equipados com um conjunto de emoções para garantir a nossa sobrevivência.”