A cidade onde se caminha sobre lápides roubadas

Texto de Ana João Mamede

Todos os anos, milhões de turistas passeiam na calçada de Staré Město, conhecida como a cidade velha de Praga. No entanto, o que os visitantes não saberão é que muitas das pedras que têm debaixo dos pés foram roubadas de um sítio sagrado.

O repórter da BBC Rob Cameron, numa visita ao coração histórico onde a cidade nasceu na Idade Média, descobriu essa realidade.

Milhares de turistas encontravam-se ao longe, no fundo da Praça Wenceslas, para ver os artistas de rua e matarem a fome e a sede em quiosques que vendem salsichas e cerveja. Cameron e Leo Pavlat, diretor do Museu Judaico de Praga, estavam parados no meio da rua movimentada da capital da República Checa. Escrutinavam o chão, procurando algo que poucos conhecem ou em que reparam.

No meio da confusão, entre queixas de turistas por se encontrarem a bloquear o caminho, Leo Pavlat encontrou o que procurava. Apontou para uma faixa de paralelepípedos escuros, correu em direção ao local e Rob Cameron seguiu-o. De um saco plástico, o diretor do museu retirou duas pedras idênticas às cravadas naquele pedaço de chão. Os paralelepípedos que Leo tinha consigo eram especiais. Um tinha uma face polida onde era possível ver-se uma data: 1895. O outro tinha três letras hebraicas pintadas em dourado.

Há mais de 30 anos que Leo guarda essas pedras como tesouros. Foi no fim da década de 80, numa manhã de primavera, a caminho do trabalho, que reparou num amontoado de pedras, à espera para serem dispostas no chão por calceteiros. Umas pedras diferentes. Tratava-se de fragmentos de lápides judaicas feitos cubos de granito. Pelas datas, o diretor do museu concluiu que teriam sido saqueadas de um cemitério do século XIX. Chocado, agarrou em algumas pedras e fugiu.

Antes da Segunda Guerra Mundial, na Checoslováquia, a população judaica rondava os 350 mil habitantes. Em 1946 eram pouco mais de 50 mil, incluindo sobreviventes dos campos de concentração. “O país foi tomado por um antissemitismo oficial, ao longo de várias décadas, devido ao comunismo. O regime queria que a comunidade judaica acabasse lentamente”.

Existem aproximadamente 600 cemitérios judaicos abandonados em aldeias e cidades espalhadas pelo país. A polícia, o governo comunista e os próprios líderes da comunidade judaica olharam para esses locais como fonte de materiais de construção sem custos.

Leo pesquisou as pedras de que se havia apoderado nos anos 80. Ao que tudo indica, foram cortadas de lápides de um cemitério judaico criado em 1864 na cidade de Udlice. O que gostaria ele que as autoridades fizessem em relação à calçada de Staré Město? “As lápides nunca poderão ser refeitas. E fazer paralelepípedos novos pode custar milhões. O mínimo era colocar uma placa a informar as pessoas que caminham sobre as memórias da vibrante vida judaica que um dia existiu em Praga. E para que os turistas se recordem dos atos bárbaros executados pelos regimes autoritários.”