A arte sobreviverá a Joe Berardo

"Figuras suspensas" (1997), do espanhol Juan Muñoz, escultor cuja última obra produzida no ano em que morreu, “Treze a rir uns dos outros” (2001), se pode ver no Jardim da Cordoaria, no Porto. (Foto: Sara Matos/Global Imagens)

Texto de José Miguel Gaspar

A cada minuto que passa, cinco pessoas de diferentes países visitam e descobrem a Coleção Berardo, espólio de arte moderna e contemporânea do Museu Berardo instalado no Centro Cultural de Belém em Lisboa e que abriu em 2007.

É uma métrica impressionante de pessoas que se plantam em frente ao retângulo de 260×400 centímetros de “Abstract painting”, do artista alemão de 87 anos Gerhard Richter, uma das obras mais intrigantes das 862 peças que pertencem ainda ao empresário madeirense Joe Berardo e que estão cedidas ao Estado português desde 2006, num acordo de comodato que estará em vigor pelo menos até 2022 – um comodato é um empréstimo contratado de coisas não fungíveis, isto é que não se gastam, não se consomem por olharmos para elas e que não podem ser substituídas por outras do mesmo género, qualidade ou quantidade.

São 998 831 pessoas por ano (dados de 2018), 83 mil pessoas por mês, 2774 por dia, 308 por hora. São mais ou menos cinco pessoas a cada minuto que passa no museu da zona ribeirinha de Belém e que está aberto diariamente durante nove horas, das 10 às 19 horas, que se põem a ruminar à frente do óleo pincelado de caos e voragem muda de Richter. O bilhete custa cinco euros, menos aos sábados, em que é gratuito e que é sempre o dia em que o visitam mais portugueses, incluindo muitas crianças com as suas famílias; o preço foi instituído desde há dois anos; daí para trás e até 2006 entrar no museu era gratuito.

Uma cascata de euros a escorrer

O que veem, então, essas 308 pessoas que a cada hora que passa do horário de expediente do museu se deixam absorver pela tela que o realista capital Gerhard Richter desbravou em 1987 e a que deu o nome nu de “Pintura abstrata”? Veem demasiadas coisas a saltar: os redemoinhos hápticos de tinta cinza, azul e de sangue, as ostensivas camadas cumulativas do pastel, a incrível ventania da sua tintura, que é um mapa emocional não-representacional, e veem também isto que não está lá – 34,5 milhões de euros, que é o montante em moeda europeia que o quadro atualmente valerá.

Os exemplos sucedem-se às dúzias nos quadros daquele museu: o “Oedipus and the Sphinx after Ingres”, que o pintor figurativo inglês Francis Bacon fabulou em 1983, valerá também 34,5 milhões; o “Tableau” (1923) de amarelos, pretos, azuis, vermelhos e cinzentos de Piet Mondrian custaria hoje 24,7 milhões; o muito procurado “Pater”, uma pintura do norte-americano Jean-Michel Basquiat com tantas cores vivas que parece estar prestes a explodir, custaria hoje 17,2 milhões, o mesmo valor que se dá à “Figure à la Bougle”, que o abstracionista catalão Joan Miró pintou a olhar, há 94 anos, para as paredes do seu atelier na Rua Blomet, em Paris.

A cascata de mil vezes mil continua a escorrer: 12,1 milhões valerá o ameaçador “Sabro” (1956), de Franz Kline; 8,1 milhões o “Picture emphazing stillness”, de David Hockney; 5,7 milhões o “Lucky seven” (1962) de Joan Mitchell; 4,6 milhões o “Elena’s schuhe” (1988) de Sigmar Polke; 2,8 milhões o “Sem título” (1989) de Agnes Martin; mais 2,8 milhões o “Orient IV” (1970) de Bridget Riley; e outros tantos 2,8 milhões o “Balance” (1920) de Francis Picabia.

E a coleção ainda contém obras maiores e potencialmente mais caras de Andy Warhol, como a acídula tricolor “Judy Garland”, de 1979, ou as suas caixas de “Brillo” (1964); a rara metafísica “Corte invencível” (1928), do italiano Giorgio De Chirico; as esculturas do babilónico Jeff Koons; ou os dois embriões do portentoso cubista espanhol Pablo Picasso, “Tête de femme” (1919) e “Femme dans un fauteuil” (1929), um artista de inviolável valor.

Além, é claro, da imensa armada dos artistas nacionais: Amadeo, Lapa, Pomar, Sarmento, Areal, Bravo ou a Rego. E atente-se no axioma da valoração: uma obra de arte, por mais cara que seja, não inclui o valor do artista, que o dono da obra conserva como um extra no presente que valoriza sempre no futuro – a morte, como sabemos dos domínios da arte, é um substantivo que nunca pára de valorizar.

Dos 316 aos 509 milhões…

A colossal Coleção de Berardo foi na sua essência constituída nos anos de 1990, quando se atravessava ainda pelo meio dos estilhaços da crise de crédito que se seguiu à bolha imobiliária mundial, uma fase negra de transtorno que se cruzou com o colapso dos mercados emergentes em meados da década final do século XX.

Obras do neoexpressionista norte-americano Jean-Michel Basquiat estão entre as mais valiosas e as mais chamativas do Museu Berardo. (Foto: Sara Matos/Global Imagens)

Aquelas obras primeiramente enumeradas integram a dúzia que Joe Berardo, um nome tóxico hoje caído em desgraça por uma dívida a três bancos (CGD, BCP e NB) que chegará a 962 milhões de euros, tentou enviar para Londres em 2018 para as salvar de um fogo que o empresário já sentia há muito a arder – tentou mas não efetivou… Aquelas são também algumas das obras mais significativas da Coleção Berardo exposta no CCB e que são as pontas de uma lança que representa, em obras e respetivos autores, um acervo que tem a ambição de acompanhar os principais movimentos artísticos do século XX e que valem centenas de milhões em qualquer mercado demarcado de arte.

Avaliada em 309 milhões de euros pela leiloeira Christie’s em 2006 – o valor não agradou a Berardo, que acusou a casa inglesa fundada em 1766 por James Christie de embaratecer o produto para depois o comprar em saldo -, a coleção de 862 peças de arte foi novamente apreciada em 2009, agora a pedido particular de Berardo, e valeria então, disse a galeria de Gary Nader, dos EUA, 509 milhões.

“É um valor que ainda está aquém daquilo que aquela imensa coleção valerá”, disse à NM o crítico de arte Bernardo Pinto de Almeida, que a conhece muitíssimo bem – já foi administrador, nomeado pelo Estado, da Fundação Berardo, a entidade que governa o museu.

Está entre os cem mais visitados do Mundo, o museu do CCB: a publicação “The Art Newspaper” colocou o Museu Berardo e os seus 998 831 visitantes de 2018 na 79.ª posição do ranking dos 100+; há apenas um outro museu que entra nesse top referencial, o Museu de Serralves, no Porto, que recebeu 946 932 pessoas no ano passado, número que o coloca na 84.ª posição da lista dos cem museus mais procurado no Mundo todo.

… até ao salto dos mil milhões

“Hoje, a Coleção Berardo valerá o triplo, facilmente, estou convencido disso, o triplo da avaliação oficial feita em 2006, podendo por isso chegar perto dos mil milhões de euros em valor”, revela Bernardo Pinto de Almeida sem pestanejar. “É”, continua o crítico, “uma coleção de arte de referência institucional, de ressonância internacional, contém obras do mais alto nível em qualquer mercado mundial. E é, sem dúvida alguma, o mais importante acervo de arte moderna e contemporânea que possui Portugal”.

“Telefone lagosta” (1936), também conhecido por “Telefone afrodisíaco”, do surrealista catalão Salvador Dalí. (Foto: Sara Matos/Global Imagens)

E volta atrás para sublinhar: “Fazer hoje de novo toda aquela coleção custaria mais até do que mil milhões, além de que duvido, todos duvidamos, que aparecessem assim disponíveis no mercado de uma vez obras daquela craveira de Mondrian, Magritte, Richter ou Bacon, não é?”.

Claro que os valores do mercado são com os homens, não valem só por si, valem sobretudo pelo que fazem dentro da sua circunstância e com aquilo que os rodeia, e uma coleção de arte como a de Berardo não se atira ao mercado de uma vez, como um lote indiferenciado de pescado. As presas teriam que ser bem separadas, reavaliadas, reagrupadas, só assim, com olho clínico e bisturi, sairiam compostas pelo seu real valor.

Bernardo Pinto de Almeida exemplifica: “O notável, absolutamente notável, núcleo de art-pop, com Richter, Warhol, Basquiat e a brigada de americanos vale muitos milhões; a arte povera italiana a mesma coisa, foi muitíssimo bem escolhida pelo comendador; o núcleo surrealista idem idem, é mesmo dos melhores a nível europeu; o Bacon, sabe por quanto foi vendido há alguns anos um quadro de Bacon, o tríptico ‘Três estudos de Lucian Freud’? Pois é, por 142 milhões de dólares!; e eu podia continuar…”, diz Bernardo Pinto de Almeida de olhos a brilhar.

O crítico de arte deixa então duas opiniões. Primeira: “Teria sido bom que o Estado português já tivesse comprado a coleção, através, por exemplo, de um fundo de aquisições, porque aquela coleção, como qualquer boa obra de arte, está sempre a valorizar”.

Segunda: “E que todo este imbróglio que já vem desde 2006 e que esta semana evoluiu para um imbróglio jurídico muito complicado com arresto das 862 obras a pedido dos três bancos credores que solicitaram, e bem, a guarda das obras pelo Estado, que todo este imbróglio, dizia, tivesse dado origem a mais e melhor informação que não chegou, nem continua a chegar com clareza às pessoas e à opinião pública”.

Além de que, conclui Bernardo Pinto de Almeida, “estamos a assistir na praça pública ao achincalhamento de alguém que, com todos os seus defeitos, teve o mérito, e além do mérito a coragem, de ter feito por si, sozinho, aquela que é a maior e melhor coleção de arte moderna e contemporânea que existe em Portugal”.

“É bom, assim a coleção ficará cá”

Por que razão não comprou então o Estado português, em devido tempo, aquela coleção? Isabel Pires de Lima, a ministra da Cultura entre 2005 e 2008 à época do XVII Governo Constitucional de Portugal presidido por José Sócrates, dá uma resposta desarmada e muito simples sobre o contexto desses anos: pré-crise e depois crise económico-financeira mesmo a sério, mundial.

“Porque não haveria dinheiro. Ponto.” Isabel Pires de Lima conta como foi: “Comprar a coleção foi uma hipótese real, real, não fantasiosa, esteve em cima da minha mesa com base naquela avaliação de 309 milhões de euros que propunha a Christie’s. Mas houve outro entrave: o valor não era do agrado do comendador Berardo, ele queria mais, muito mais, e dizia que a Christie’s estava, ela própria, a leiloeira, a querer comprar em saldo toda a coleção”.

“Hagamatana II” (1967), do expressionista abstrato norte-americano Frank Stella (lado esquerdo da fotografia); “Fleet” (1971), a mítica escultura de ferro verde do inglês Anthony Caro (centro da foto); e ainda um quadro do modernista neerlandês Piet Mondrian. (Foto: Sara Matos/Global Imagens)

E agora Isabel Pires de Lima diz uma frase em que se vê que está claramente a sorrir: “Foi muito bom termos conseguido naquela altura fazer esse acordo [de comodato] com Joe Berardo, foi muitíssimo bom. Porque agora, com a penhora das obras e as dívidas do comendador, estamos às portas de a coleção ficar definitivamente à guarda do Estado, isto é, ficar definitivamente para os portugueses, ficar para sempre em Portugal. E isto é muito bom, não é? A coleção ficará sempre cá”.

Nem de propósito: a atual titular da pasta da Cultura, Graça Fonseca, garantiu esta quarta-feira que o arresto decretado das obras de arte não põe em causa a existência do Museu Coleção Berardo.