A arte dos sapatos nascidos na primeira pessoa

Não fazem calçado que voa como os de Dorothy em “O Feiticeiro de Oz”, mas inventam muitos pares exclusivos, por medida. São artesãos, fabricantes e estilistas portugueses que embelezam os pés de mulheres e homens.

Na oficina de José Machado, em Vila do Conde, cheira a couro e a pele. As paredes estão decoradas com cintos, carteiras e formas de sapatos de vários tamanhos encavalitadas umas nas outras. Ao centro, uma mesa de madeira sarapintada de cola. José faz sapatos por medida há mais de dez anos, com a marca Machado Shoes.

Serviu-lhe um quadro de Gustave Courbet para inspiração de criações para o cliente “andar com os pés no chão e o coração nas nuvens”. O imaginário é “extremamente pessoal”. Em 2004, José Machado lançou as primeiras sementes de um projeto que floresceu em 2007. Teve a sorte de crescer e brincar à volta de sapatos.

Há três gerações que o legado do calçado está na família. “Penso em sapatos para todos.” O resultado são sapatos unissexo. “Tenho de experimentar o sapato. Depois, há quem se identifique ou não, mas este é o risco do trabalho de autor”, diz.

“O que define o preço é o tempo associado a cada peça, a atenção aos pormenores. Todos esses ‘inputs’ valorizam o trabalho. A forma como são feitos, o rigor colocado na execução, a exclusividade. Quando um par de sapatos demora à volta de cinco dias a ser feito dá para ter uma noção do número de horas de trabalho que está ali e do ‘know how’ requerido.” Um par destes objetos, totalmente feitos à mão com materiais de qualidade, pode custar entre 250 e 650 euros.

O mercado compra. As pessoas compram. Na questão das vendas, a revolução digital veio ajudar. Os últimos sapatos executados por José seguiram para Copenhaga. Não há a necessidade de um espaço físico de venda. A Internet ajuda a que as suas criações voem de Portugal para outros pontos do Globo.

O artesanato deslumbra a indústria

José António Strena frequentou o primeiro curso de Estilismo de Calçado em 1987. “Comecei por desenvolver coleções em algumas fábricas durante três anos e em 1990 abracei o meu próprio projeto, Strena, que em latim significa ‘estreia’.” A fábrica está localizada em São João da Madeira, a alma do fabrico do calçado português – é por estas bandas que também se localiza o Museu do Calçado.

Criatividade é palavra transversal aos criadores manuais de sapatos. José António aproveitou as “asas da criatividade” para se aliar ao teatro. “Colaborar nos figurinos de teatros como o São João ou o São Carlos ainda é das coisas que mais me apraz.” Para calçar personagens, este estilista do pé pesquisa muitas épocas.

Strena é da opinião de que o fabrico de calçado continua a ter uma componente artesanal muito forte nas empresas. “Mesmo as mais industrializadas, que se dedicam a fazer calçado de qualidade, não podem abdicar de mão-de-obra especializada nas várias fases da produção, começando no corte, passando pela costura e montagem, até ao acabamento”.

Pequeno “boom” a lançar Portugal

À frente da Bota Sadi encontra-se Xavier Melo. Também com morada em São João da Madeira. As histórias do avô sapateiro foram o primeiro parágrafo no seu percurso. “Histórias dos sapatos que já não se faziam, dos que duram demasiado para os nossos tempos, que demoram demasiado tempo a ser feitos para os nossos tempos.”

Sobretudo “sem recurso a atalhos mecânicos”. Confessa que “toda a dinâmica das técnicas que envolve” sempre o deixaram maravilhado.

O fabrico artesanal teve de se adaptar à industrialização. O seu mercado encolheu para um nicho de clientes – “Manteve-se muito restrito mas estável a nível mundial”. Dito isto, Xavier fala de um “pequeno boom” no mercado dos sapatos realizados por medida, “explicado tanto pelo aumento do número de pessoas e de países ricos, como pela abertura de portas de outras culturas a nível global”.

Xavier Melo revela que “a Rússia, mas principalmente o Japão, têm vindo a surpreender muito com a abertura de muitas oficinas/escolas de calçado manual”.

O artesão sorri perante os ventos favoráveis ao calçado português, e acrescenta: “A industrialização é necessária para abastecer os mercados de massas e continuará a existir, tal como a ‘fast fashion’ e a alta-costura estão a aprender a coexistir”. Xavier lamenta, todavia, o atraso de Portugal relativamente ao resto dos países da União Europeia.

“Estamos a recomeçar um pouco atrás dos outros países membros no que toca ao calçado manual. Não temos nenhum sapateiro de renome no mercado internacional.”
A aposta passa por cativar novas gerações de artesãos. “Este será sempre o nosso principal desafio: aprender, desenvolver e afinar técnicas e, mais tarde, ensiná-las a quem as queira conhecer.”

Xavier Melo acha que, com a industrialização, “o muito conhecimento que havia foi apenas substituído” e, com isso, esquecido. “Nós, sapateiros, agora temos que juntar as pontas soltas para redefinir e mostrar ao Mundo a arte do calçado português na sua raiz.” Pelo meio, gostaria de criar estratégias contra “o mercado asiático, com o qual é quase impossível competir”.

Entende que aquilo que confere “credibilidade a uma produção nacional é o seu produto de excelência e não os números de produção”. Por isso, remata: “Penso que os sapateiros não estão, como se pensava há uns anos, condenados ao desaparecimento.Apenas a muito trabalho”.