Vouzela: como Portugal está a perder a oportunidade de mudar o interior

Texto Ricardo J. Rodrigues | Fotografias Rui Oliveira/Global Imagens

Veja aqui o documentário sobre esta reportagem.

Quem sai da A25 e toma a direção de Ventosa, no concelho de Vouzela, consegue perceber o interior do país inteiro. De um lado está tudo o que morreu nos incêndios de 2017, do outro tudo o que renasce. O arvoredo carbonizado na noite de 15 de outubro ainda não foi arrancado, por isso há quilómetros de floresta negra que teima em não ceder à primavera.

Mas, no meio do carvão, também despontam algumas ilhas verdes. A natureza está a seguir o seu curso, há de conseguir furar as cinzas, daqui a dois ou três anos a paisagem estará renovada. Para o povo, no entanto, o limbo é bem mais difícil de ultrapassar.

Vouzela perdido
Fátima Figueiral, presidenta da JF de Ventosa, em Vouzela, diz que não se pode mudar o interior sem fixar pessoas.

A Notícias Magazine esteve aqui há seis meses, quando tudo ardeu. Na altura tentámos perceber a decisão terrível que o povo teve de tomar nessa noite – ficar para enfrentar as chamas ou fugir para salvar a vida. Voltámos em dezembro e vimos como do meio da catástrofe tinha emergido uma onda de solidariedade que permitia a sobrevivência. Mas agora passou meio ano, é tempo de ver a vida que vai renascer da tragédia. E a pergunta que o povo fez na noite de 15 de outubro é a mesma em abril: ficar ou fugir?

«Os incêndios foram o golpe final de uma tragédia que já estava a acontecer há muito tempo», diz Fátima Figueiral, presidente da Junta de Freguesia de Ventosa, uma mulher de 33 anos que assumiu a pasta duas semanas antes de o fogo queimar 95 por cento do território e matar cinco pessoas na freguesia, de um total de oito no concelho.

«Os incêndios do ano passado foram só o golpe final», diz Fátima Figueiral. «A verdadeira tragédia é o abandono do interior do país.»

«Porque a verdadeira tragédia é o abandono a que o interior do país tem sido votado. Se não aproveitarmos agora para repensar o que queremos fazer, se não aproveitarmos agora para mudar o país, estas terras estão pura e simplesmente condenadas.»

No final de outubro, o primeiro-ministro, António Costa, prometeu, numa visita às áreas ardidas de Pampilhosa da Serra, um pacote de novos investimentos para o interior. Foi aberta uma linha de cem milhões de euros para compensar quem tinha perdido as suas explorações e criou-se o programa Repor (Sistema de Apoio à Reposição da Competitividade e Capacidades Produtivas para apoiar os compromissos dos investidores que tinham beneficiado de fundos comunitários.

O Conselho de Ministros também garantiu um fundo de oitenta milhões de euros às empresas que se quisessem instalar e criar empregos nas zonas afetadas pelos incêndios. Mas estas medidas, aparentemente, não chegaram à população.

«Estamos numa zona de pequenos proprietários, de minifúndio», diz Rui Ladeira, presidente da Câmara de Vouzela. «Há muita gente com prejuízos superiores a 25 mil euros que não apresentou qualquer candidatura. Preferiram pedir apenas os cinco mil euros de apoio que a autarquia lhes dava através da sua conta solidária.» Contas feitas, houve mil pessoas a beneficiar do pequeno apoio local e apenas cinquenta a pedir ajuda ao Estado.

Vouzela perdido
A natureza segue o seu rumo, é uma questãio de tempo até a paisagem renascer. Para a população, no entanto, o processo é muito mais difícil.

O autarca acusa o governo de ter criado processos burocráticos e desadequados a uma população envelhecida e com baixa escolaridade. «Não há uma estratégia concertada nem há consciência do que se passa no terreno. O interior do país tem sido tratado a partir dos gabinetes de Lisboa com medidas avulsas, que nada têm de estrutural. Revitalizar o território devia ser um assunto sério e não pode continuar a funcionar por modas.»

E diz que para uma questão destas não pode haver partidos, tem de haver um pacto de regime. «Estamos a chegar ao ponto em que já não vai haver nada para perder. O tempo de fazer alguma coisa é agora.»

Em Vouzela as contas são sempre de subtrair. Perdeu-se o comboio, as urgências, o tribunal.

Em Vouzela, as contas são sempre de subtração. Em outubro do ano passado, 150 casas arderam, mas só cinquenta serão reconstruídas – as que tinham estatuto de primeira habitação. As obras só arrancaram em três. Depois há os currais e as lojas consumidos pelas chamas – contam-se às centenas. A morte de animais foi um descalabro.

Seis centenas de bovinos e pequenos ruminantes foram incinerados, o que é particularmente grave se pensarmos que estamos no epicentro de produção da vitela de Lafões. A avicultura, motor de desenvolvimento do município nos últimos anos, perdeu cem mil frangos – quase todo o efetivo. Mais de 500 hectares de exploração agrícola foram afetados, são oito milhões de euros de prejuízo diretos. E muito do que se perdeu está perdido para sempre.

Na manhã de 16 de outubro, Alcinda Santos era o rosto do desespero. Naquela noite tinha acordado com o crepitar das chamas e teve de fugir para a rua, que as labaredas já lhe galgavam as paredes.

«Perdi tudo. A minha casa não vai ser reconstruída porque, apesar de viver lá há 38 anos, pertence a vários herdeiros e eu estava registada numa outra. Morreram-me três vacas, um vitelo, dez ovelhas e uma cabra, dois porcos, frangos e coelhos. Tudo o que eu tinha, os meus pertences dentro de casa foram-se. Fugi mais o meu filho e o meu marido para a rua descalços.» A solidariedade dos vizinhos e de absolutos desconhecidos amparou as necessidades básicas, mas agora a mulher sente-se tomada por um desalento paralisante.

«Olhamos em volta e o que é que vemos? As árvores estão todas mortas, a única coisa que se vê brotar são eucaliptos. Que ar é que vamos respirar? Depois as aldeias estão todas em ruínas e assim ficarão porque a maioria das casas não vão ser reconstruídas.»

É um cenário de guerra, o que se vê no vale da Ventosa. E quem é que quer viver no meio do apocalipse?

É um cenário de guerra, diz a mulher, e quem é que quer viver no meio do apocalipse? Alcinda só pensa em desistir, mandar tudo às urtigas e ir viver com a filha para a vila. E não é a única a pensar assim. A presidente da Junta de Freguesia de Ventosa está preocupada com a quantidade de vezes que lhe dizem que já não vale a pena investir na terra. «E o fogo veio piorar tudo.»

É verdade que Alcinda não se consola com os animais perdidos. E hoje a câmara até lhe veio trazer uma vaca – há um programa municipal para repor alguns dos animais perdidos. Não é que a mulher não se sinta agradecida, mas às vezes pensa que mais valia abandonar a pastorícia.

«Só nos sobrou um vitelo depois do fogo, depois comprámos outro com o dinheiro que tínhamos de parte e agora trouxeram-nos esta vaca, que só espero que seja mansa.» Encolhe os ombros. «Vou criá-los com pasto bom durante meses para, na melhor das hipóteses, vendê-los por quatro euros o quilo. E depois ainda tenho de tirar para os impostos. Não compensa.»

 

No talho, a mesma carne é vendida pelo triplo do valor, pelo menos. «O abandono do interior começa aqui mesmo, na incapacidade de os produtores escoarem os seus produtos», diz Fátima Figueiral.

Vouzela perdido
Alcinda Santos diz que já não tem forças para continuar a trabalhar a terra. A agricultura pura e simplesmente não rende.

Qualidade não falta, mas a agricultura portuguesa vê-se hoje refém do retalho, que compra em grandes quantidades e a preços incomportáveis. Toda a gente no vale da Ventosa se queixa do mesmo: que a política fiscal do país alivia as grandes empresas compradoras e castiga os pequenos produtores.

As próprias regras de transporte de gado vivo encostam-nos à parede. É que uma vaca só pode ser vendida no mercado se for transportada por uma empresa licenciada. E, como a maioria das explorações são pequenas, os produtores não têm alternativas senão vender a preço de saldo a quem vier buscar os animais.

«Continua a não haver uma política concertada de desenvolvimento rural, que pense na agricultura, na pecuária e na floresta», diz Rui Ladeira, presidente da câmara e, também, engenheiro florestal. «Se queremos travar o despovoamento, temos de pensar como vamos viabilizar a economia agrícola.»

As medidas que têm sido tomadas, diz ele, só têm agravado os problemas. «Cada região é boa para um tipo de cultura e há que olhar para o território nacional como um todo. Volto a insistir que isto não pode funcionar por modas. Num dia incentiva-se a vinha, noutro dia o olival, depois o eucalipto. Mas que sentido faz nós explorarmos esses produtos?»

«Olhe, Vouzela tem condições excecionais para produzir mirtilos, por exemplo, que é um produto diferenciador. O Alentejo tem grande potencial cerealífico e Trás-os-Montes tem a castanha. É nisto que temos de pensar: o que é mais adequado onde. E depois como escoar isso tudo.»

Chegada do primeiro comboio a Vouzela, em 1914. A linha funcionou até 1990.

Fátima Figueiral diz que está tudo a ser feito ao contrário e os sinais que o Estado tem dado às regiões mais despovoadas do país é que são territórios condenados. Nos últimos vinte anos, a quebra populacional tem sido acompanhada pelo encerramento dos serviços públicos.

«Primeiro foi o comboio, que era um motor de desenvolvimento da região, que trazia gente e garantia transporte de mercadorias.» A Linha do Vouga, que funcionou de 1914 a 1990, ligava Espinho a Viseu com passagem por aqui e agora está a ser transformada em ciclovia. O tribunal perdeu competências, o centro de saúde as urgências, os serviços agrícolas saíram do concelho.

Beatriz Augusto anda de roda de uma casa em escombros com as suas galinhas. São quatro, a que sobreviveu ao incêndio e três que a câmara lhe trouxe. O município também está a oferecer telhas a quem perdeu currais – cem mil telhas, na verdade – e a mulher não vê a hora de ver a obra pronta, ao menos sempre pode lá criar um porco.

A casa é que não há meio de arrancar. Em dezembro, quando a visitámos, estava já em estado de ruína, mas o inverno e a chuva fizeram cair o que sobrava do telhado. É, ainda assim, ali que ela passa os dias. À espera.

«Antes do incêndio vivia sem vergonha do mundo. Mas a aldeia mudou muito, foi-se embora toda a gente e estamos para aqui isolados.»

«Estar aqui dá uma tristeza muito grande. Porque está tudo estragado e antes estavam as casas pelo menos direitinhas e a gente deitava os olhos e ficava pelo menos bem-disposta. Assim não.» Se tivesse braços que a ajudassem a combater o fogo, não se cansa a mulher de pensar, tinha conseguido salvar a habitação onde nasceu.

«O problema é que a aldeia mudou muito. Umas pessoas morreram, outras desapareceram e foram para os seus empregos e agora não há ninguém, é uma tristeza. Vive-se assim isolado.»

Beatriz tem 71 anos, e se na noite de 15 de outubro sofreu ao ver a sua casa em chamas, na manhã seguinte ficou de coração despedaçado ao ver arder a escola da aldeia de Santa Comba. «Quando fiz a quarta classe éramos 54. Depois foi reduzindo, foi reduzindo e ficou reduzido a nada.» Em 1972 empregou-se como funcionária das limpezas do estabelecimento. Foi, durante 38 anos, a contínua dona Beatriz.

Vouzela perdido
Beatriz Augusto foi contínua da escola 38 anos. Atrás, as instalações ardidas.

Viu os miúdos todos da terra aprenderem a ler e escrever. «A alegria de qualquer povoação são as crianças aos saltos.» Mas há muito que ninguém brinca ali. No início do milénio, o concelho de Vouzela tinha 16 infantários e 29 escolas primárias. Hoje há sete estabelecimentos pré-escolares e dez do primeiro ciclo.

Fixar os jovens não é por isso uma necessidade, é uma emergência. A câmara propõe apoios estatais às famílias que queiram viver aqui, sejam elas nacionais ou migrantes.

A presidente da Junta de Ventosa é das poucas pessoas que decidiram ter aqui os seus filhos, mas diz que a sua opção só é viável economicamente por um motivo: o marido emigrou. «Precisamos de trazer gente, precisamos que isto deixe de ser um local por onde se passe e não se pare, precisamos que deixe de ser vazio.» É pelo abandono que se explica também o impacto dos incêndios – as matas estavam sujas e apinhadas de eucaliptal desordenado porque os donos dos terrenos saíram para procurar emprego.

Em 2000 havia 16 infantários e 29 escolas primárias em Vouzela. Hoje são 7 infantários e 10 escolas.

Mabilde Santos, 41, que conhecemos em outubro depois de ter passado uma noite a lutar contra as chamas, não para de pensar que é tempo de sair da Ventosa. «Só aqui estou porque amo o Miguel», o companheiro, sapador florestal. Foi ele que lhe ensinou as táticas com que salvaram a casa há seis meses. Ela veio há dois anos, arranjaram o seu pedaço de paraíso. Mas o paraíso fez-se negro e a vida ali não serve a quem cresceu na cidade.

«Sou de Bragança e Bragança é uma cidade, a vida é diferente.» Os primeiros tempos foram difíceis, passou meses há procura de emprego. «Aqui não há grandes sítios para ganhar dinheiro, para trabalhar. É um bocado difícil construir a vida assim.» Agora é embaladora numa empresa de carne, «e só me safo porque tenho carro».

Na noite do incêndio o automóvel também ia ardendo, ela pegou nele e foi levá-lo a um largo onde há uma estátua de uma santa em mármore. «E não tenho dúvidas, foi Nossa Senhora de Fátima que o salvou.» Miguel quer ter filhos, ela hesita. «Isto não é sítio para educar uma criança.»

Alcinda teve de ir caregar o telemóvel ao multibanco e para isso caminhou 12 quilómetros. Não há autocarros.

A falta de transportes é um tremendo sinal de abandono. «Não temos aqui autocarros», diz Alcinda Santos, que até consideraria continuar a morar em Ânsara se arranjasse emprego nas imediações. «As estradas não têm saída para lado nenhum e agora fizeram um estradão que está pior até do que um caminho de cabras.»

Ainda hoje teve de ir à vila para carregar o telemóvel no multibanco e pôs-se ao caminho a pé, seis quilómetros a descer e outros tantos a subir, uma manhã gasta numa tarefa que, urbana, é imediata. E a solução, diz ela, nem era assim tão difícil. «Podiam pôr aquele estradão como deve ser para ligar as povoações umas às outras. Para termos um autocarro, já não digo todos os dias, pelo menos um dia ou dois por semana.»

Políticas de apoio à fixação da população, um plano concertado de desenvolvimento agrícola, investimentos duradouros e geradores de emprego, manutenção e melhoria dos serviços públicos. É isto que Rui Ladeira pede aos governantes.

«Isto não é só um problema de Vouzela, é um problema das áreas percorridas pelos incêndios e é um problema do interior profundo do país. Envelhecimento da população, baixa natalidade, incêndios florestais acabam por ter muitos custos. Se paramos para pensar não no nosso quintal mas em pôr as coisas a funcionar num contexto regional e nacional, o país garante a sua coesão territorial e não tem de estar sempre a injetar dinheiro em compensações.»

Propõe duas ideias descentralizadoras: que o governo continue a melhorar e a ampliar as multinacionais que já existem no litoral, mas só permita a abertura de novas unidades em zonas de baixa densidade populacional e que os serviços públicos distritais sejam distribuídos pelos vários concelhos de cada distrito.

O abandono soma décadas. Depois da tragédia do ano passado, esta pode bem ser a última oportunidade para o interior do país.

No vale da Ventosa é possível ver um país inteiro. Tudo o que se perdeu nos incêndios, tudo o que se perdeu nos últimos vinte anos criou isto: uma terra onde a natureza renasce e o povo definha. Mabilde conta uma história de que já nos tinha falado Alcinda: na noite de 15 de outubro nem os sinos tocaram. É que, durante séculos, o povo reconhecia no toque dos sinos a rebate um sinal de emergência.

Mas eles não tocaram. Estão eletrificados e a eletricidade foi a primeira coisa a faltar quando chegou a tragédia. Se ouvissem as badaladas, talvez os que morreram em casa pudessem ter salvo a vida, talvez conseguissem proteger casas e salvar animais. Talvez.

«Precisamos de uma nova visão do interior do país», disse António Costa há precisamente seis meses. Depois de uma tragédia como a que Portugal viveu o ano passado, esta é a única, e se calhar a última, oportunidade de travar um abandono que soma décadas. Passou meio ano e as mudanças são parcas. O tempo de fazer alguma coisa é agora.