O vinho português deu um filme

Texto Rita Garcia

A luz coada que entrava pela janela deixava adivinhar uma cápsula do tempo por descobrir. Na penumbra do sótão da Quinta do Vale Meão, em Vila Nova de Foz Coa, adivinhavam-se as silhuetas de bonecas de porcelana com olhos esbugalhados, velhas grafonolas já mudas, vestidos e brinquedos de outras épocas e até banheiras de pé.

Era como se mais de um século tivesse esquecido aquelas dezenas de metros quadrados, deixando intacta uma parte da herança da Ferreirinha, a mulher que um dia salvou da peste as vinhas do Douro. Foi ali, entre nuvens de poeira e teias de aranha, que Ana Sofia Fonseca pensou pela primeira vez que aquele sítio dava um filme.

Desde esse dia até ao momento em que começou a realizar o documentário Setembro a Vida Inteira, com estreia marcada para 15 de março, passaram mais de dez anos em que as histórias do vinho se foram cruzando no seu percurso.

Na época, Ana Sofia Fonseca, hoje com 39 anos, era uma recém-formada jornalista a preparar um livro sobre o Barca Velha, um dos mais aclamados vinhos portugueses (ver caixa). «Sempre achei graça ao universo dos vinhos. É um universo de paixão, não se trata apenas de transformar a uva. E percebi logo que a história do Barca Velha era um romance.»

O documentário mostra que o universo do vinho se estende para lá das adegas, dos laboratórios e das salas de banquetes das grandes quintas vinícolas.

Foi esse o pretexto que a levou ao Douro e a muitas das personagens que agora protagonizam o seu primeiro filme. Aí conheceu Francisco e Maria Luísa Olazabal, proprietários do Meão e das vinhas de onde saíram as primeiras garrafas do mítico vinho, mas também os Guedes da Sogrape, hoje detentores da Casa Ferreira e produtores do Barca Velha.

O livro foi publicado pela primeira vez em 2004, esgotou, teve uma reedição em 2012, voltou a desaparecer, e saiu de novo em 2017, sempre revisto e aumentado. Ana Sofia Fonseca aproveitou cada uma dessas ocasiões para voltar ao Douro, atualizar a história e aprofundar contactos. Escrever sobre vinho nunca foi uma coisa pensada, garante, mas a verdade é que acabou sempre por lá ir parar.

Se é inegável que os direitos humanos tiveram lugar de destaque em muitas das reportagens premiadas que assinou na Grande Reportagem, na revista Pública, na Revista do Expresso e nas colaborações regulares com a SIC, o facto é que, em paralelo, continuou sempre a escrever sobre o mundo por detrás de cada garrafa. Foi, de resto, esse o mote para uma rubrica que publicou no Diário Económico e que se revelaria determinante para se aventurar no cinema documental.

«Quando comecei a escrever essas crónicas percebi que faltava um documentário sobre vinhos em Portugal. Mas não me interessavam as notas de prova. Queria as histórias das pessoas, sem fazer um filme com gente de nariz no copo. Estas pessoas sentam-se connosco ao jantar e nós não as conhecemos. Mas quem são estes convidados que vêm parar à nossa mesa?»

«O que aparece no filme é genuíno, as pessoas foram aparecendo, não estava combinado ir lá o [chef] Ljubomir [Stanisic].»

Ana Sofia Fonseca estava disposta a captar todas as dimensões do mundo do vinho: das tradicionais famílias de produtores, como os Olazabal, às mais recentes, como os Soares da Malhadinha Nova, sem esquecer os enólogos, os tanoeiros e as mãos que fazem a vindima.

Quis mostrar que esse universo se estendia para lá das adegas, dos laboratórios e das salas de banquetes das grandes quintas vinícolas. E, por isso, escolheu filmar manifestações populares como a bênção do mosto e a eleição anual da rainha das vindimas, em Palmela.

Começou a planear o filme com esse ponto de partida, olhando para Portugal de norte a sul, sem esquecer as ilhas, sabendo que a esperava uma linguagem muito distinta da da televisão, no tempo e na estética.

«Num documentário, um dos grandes encantos é o tempo para o silêncio. E cada plano é pensado.» Aquilo que se imagina pode levar muitos meses a conseguir. Só assim foi possível, por exemplo, captar o produtor Dirk Niepoort deitado na banheira de casa, num terraço sobre o Douro.

«A primeira vez que o filmámos, o que trouxemos não retratava o Dirk. Eu queria que as imagens mostrassem como ele é uma pessoa diferente, um homem de ideias e de riscos, com a sua excentricidade.» Demorou um ano desde que a realizadora idealizou o plano de Dirk num banho de imersão até ele ceder a revelar tanto da sua casa e da sua intimidade.

Entre a decisão de fazer o documentário e os primeiros dias de rodagem foram meses de planeamento e escolha criteriosa das personagens. No início, a lista ocupava duas colunas de uma folha A4, que Ana Sofia foi rasurando e anotando até escolher os nomes finais.

Visitou cada uma dessas pessoas mais do que uma vez para construir com elas uma relação, perceber o seu dia-a-dia, as rotinas, os sotaques. Deslocou-se aos locais para selecionar os décors que lhe pareciam obrigatórios. Tudo em prol de um acesso privilegiado a um universo habitualmente vedado a câmaras de filmar.

Desta forma, entrou na sala de estar do patriarca da Sogrape, Fernando Guedes, e filmou uma longa conversa à lareira, entre ele e a mulher, como se estivessem sozinhos. Os dois foram falando um com o outro sobre a vida e os três filhos, Salvador, Manuel e Fernando, horas antes do jantar de comemoração dos 85 anos do pai. «Mais tarde, à mesa, tivemos a clara noção de que todos eles se esqueceram completamente das câmaras e dos microfones e isso permitiu-nos captar um momento único.»

Aqui, como nas outras cenas, houve a opção de colocar a câmara «na posição de observador da realidade, para que pudesse documentar a vida real, enquanto ela acontecia», diz a realizadora. O mesmo aconteceu no serão em que a família Soares, da Herdade da Malhadinha Nova, no Alentejo, reuniu adultos e crianças para um jogo de tabuleiro sobre vinho, e na festa que dedicou aos anos 1920, numa cave cheia de pipas.

As casas e a mesa têm, aliás, lugar de destaque no documentário, desde o almoço das quartas-feiras dos irmãos Freitas, dos vinhos Barbeito, da Madeira, a um interminável jantar em casa de Dirk Niepoort, onde vai sempre chegando mais alguém para se juntar a uma noite bem regada. «O Dirk é das pessoas que mais gostam de dar a conhecer o vinho, passa o tempo a ir buscar preciosidades à garrafeira. O que aparece no filme é genuíno, as pessoas foram aparecendo, não estava combinado ir lá o [chef] Ljubomir [Stanisic].»

As ocasiões podem ter sido escolhidas a dedo – como a reunião de lançamento da única edição do Barca Velha que viria a receber cem pontos da revista Wine Spectator – mas o que a câmara captou desenrolou-se com o mínimo de intromissão, garante.
O resultado é um filme de 99 minutos, que em setembro conquistou o Grande Prémio do Júri do Most – International Wine & Cava Film Festival, em Barcelona. Agora é a vez de chegar às salas portuguesas: a partir de 15 de março, estará em exibição exclusiva nas salas Cinema City de Leiria, Setúbal e Alvalade.

O VINHO NOS DEDOS

Barca Velha, Histórias de um Vinho.

O desafio para escrever um livro sobre o mítico vinho do Douro partiu do jornalista José Vegar, que então coordenava os Cadernos de Reportagem, das Publicações Dom Quixote. A primeira edição da história do Barca Velha foi publicada em 2004 e esgotou. Em 2012, o livro foi reeditado para assinalar os 60 anos do vinho. E em 2017, foi de novo revisto e aumentado.

Cada Garrafa Conta uma História

A reunião das crónicas publicadas por Ana Sofia Fonseca no Diário Económico deu origem a este livro, que conta as histórias por detrás do vinho, um pouco por todo o país, cruzando épocas, guerras e aventuras.

JORGE PALMA INÉDITO

Quando pensou na banda sonora do filme, Ana Sofia Fonseca lembrou-se de imediato do tema Oiça Lá, ó Senhor Vinho, mas queria uma interpretação inovadora do fado de Amália Rodrigues. Admiradora de Jorge Palma, decidiu desafiar o cantor a fazer uma versão inédita do tema. O pedido foi aceite. Durante a gravação do seu último álbum, numa madrugada, Palma encontrou tempo para dar voz à versão original da música que fecha Setembro a Vida Inteira.