Rui Cardoso Martins

Uma jóia de soqueira

Uma soqueira não é moda que se veja pelas ruas. É uma jóia rara que cruza o ar – cintilante e prateada – nos filmes de gangsters, antes de alguém tombar no chão sem sentidos. Na rusga a Marco, a polícia contou um pedaço de haxixe “suficiente para 34 doses individuais”, uma faca de cozinha com resíduos de droga, uma soqueira de metal.

– Eu uso próteses, se eu conseguisse morder, era com os dentes que cortava, a faca estava assim porque era para cortar o haxixe!

O braço pontiagudo de Marco em gestos cortantes, movendo uma faca no mundo das ideias. A soqueira custava-lhe mais definir.

– Eu a soqueira encontrei no caixote do lixo! Era para ir vender ao ferro-velho.

– Porque é que tinha 34 doses de haxixe?

– Sou consumidor há mais de 20 anos, doutora. Eu uso para me acalmar, isto dava mais ou menos para mês e meio.

Tudo estava bem confessado, até que disse:

– Se for preciso, eu fumo aquelas 25 gramas num dia… numa hora… agora mesmo! Se eu precisar, eu embrulho num charro e fumo tudo de uma vez!

– …!!! Tudo???…

A juíza suspirou, expirando para dentro e inspirando para fora, ou atrapalhação semelhante. Depois semifechou as persianas dos olhos, desconfiada.

– Mas não está tão necessitado que vá fumar estes 24,101 gramas num só dia…

– Mas pode ser!

Fez-se silêncio debaixo dos neónes da sala de julgamentos.

– Isto não é uma confissão… Está a dizer que pode fumar tudo de uma vez?

– Conforme, senhora doutora, conforme a minha cabeça, conforme os meus problemas. Isso era para quatro semanas, mas pode ser para um dia!

Marco não percebia que, para se aceitar como “integral e sem reservas” a confissão, tinha de admitir que era droga para mais de dez dias, segundo a tabela diária dos cientistas haxixeiros. Mas um charro, como o Natal, é como um homem quiser. Um viciado com três filhos em casa e a fumar, a fumar como se não houvesse amanhã (depende da dose diária de amanhã). Até ficar com a pele da cor do haxixe.

– Estou a perceber a diferença, estou a perceber… então pronto, eu tinha haxixe para três semanas.

– Ah, então voltámos à confissão integral e sem reservas.

Agora era altura de voltar à soqueira metálica, senhor Marco.

– Eu nem sabia que aquilo era uma arma branca!

– Mas assim não está a confessar, outra vez…!

– As palavras caras deste tribunal às vezes confundem-me, pronto. Eu sabia que era uma soqueira, mas não sabia que era proibido por lei. Aquilo era metal para ser amachucado com martelo! Neste preciso momento está um saco de ferro-velho debaixo da minha cama.

A juíza mostrou-lhe a foto da proscrita. Grandes argolas coladas, de perímetros variados para os diferentes dedos de um ser humano, num arco metálico do tamanho de um punho. A partir do momento em que entrar nos dedos, um objecto feito para partir maxilares, esmagar narizes, quebrar abóbodas dos olhos.

– Isto é uma soqueira toda bonita, arranjada, até com um motivo decorativo na parte de cima.

– Não estava nada. Estava partida, estalada, o único mal que eu fiz foi não ter amachucado logo com o martelo!

– Então sabia o que era. Não vou considerar confissão integral e sem reservas.

Podíamos estar o resto da página no ele confessa, não confessa, mas não há espaço. O polícia que fez a rusga disse que encontrou a soqueira dentro do guarda-fatos.

– Não estaria acondicionado como se fosse, por exemplo, lixo?

– Penso que não. Não se põe lixo no guarda-fato.

Uma banheira também é uma banheira e há quem a use para criar galinhas. Mas o guarda não inventava. Como acontece com muitas pessoas, talvez Marco não soubesse ser arma proibida.

– Deixo em aberto. Não sei se não estaria num saco com pechisbeque, colares de senhora, nem ouro nem prata…

– Pode ser sucata?, perguntou a juíza.

– Poderá ser. Foi armazenando aquilo.

– Acha que ele podia não saber o que era uma soqueira?

– Ó sotora, pelo senso comum, as pessoas sabem o que é. Aquilo não são anéis.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)