Rui Cardoso Martins

Um tiro no pé

Notícias Magazine

– A lei sobre ameaças agravadas, agora, não é só uma pessoa sentir medo: é sentir medo ou inquietação.

Inquietação não é medo, é uma irmã mais nova do medo, ou mais velha, às vezes é a gémea criada no mesmo segundo. Que dia tão português começava no Campus de Justiça, celebrado por pessoas na plateia, no planalto onde vivem os magistrados, no banco dos réus. Nesta sala do piso 3, o juiz justificava a pena de nove meses de prisão, suspensos por um ano, aplicada a um homem (hoje ausente) que provocara “inquietação ao pai da Joana”:

– Ele ameaçou-o dizendo “estás feito”, “vou-te matar”, “já estive preso por homicídio”, “vou-te cortar a cabeça”, “quem mata um, mata dois!”

As ameaças de um presidiário, um homicida que bate em mulheres como a Joana, assustaria qualquer outro que não o pai da Joana:

– O pai da Joana não teve medo por ser militar, ter arma e saber proteger-se. Mas é impossível ouvir isto sem sentir inquietação, terminou o juiz.

Tanta alma portuguesa em líquido se derrama todos os dias nos tribunais, escorrendo pelo chão, pelas paredes, escadas e elevadores. Três pisos de salas cheios de tragédias, dramas estúpidos, histórias aborrecidas e crimes feios como nódoa de ovo numa gravata. Cenas imaginadas de repente para dar cabo da vida inteira. Mas também planos pacientes, maldosos, tecidos nas teias de aranha das famílias. Pais que batem nos filhos, filhos que batem nos pais. Comunidades portuguesas. Lusofonia da estalada, do cinto, do insulto.

Numa sala, um médico anestesista diz que, ao ser chamado de urgência ao recobro ortopédico, viu uma mulher acabada de ser operada a um desvio ósseo na perna e, passada a anestesia epidural, viu-se com a rótula rachada, uma fractura de prótese e o joelho da largura de uma pata um elefante, e ninguém sabe como isso aconteceu. Foi na cirurgia, caiu no chão, torceu-a a fisioterapeuta até quebrar?

– Quando cheguei, a dor era tal que nem a morfina dava.

Na mesma manhã, um rapaz faltou ao seu julgamento, mas a meio apareceu porque se perdera no caminho, na verdade perdera-se anos antes, quando começou a drogar-se, cada vez mais magro, sem se lembrar dos crimes que praticava. A polícia apanhou-o com um colar de ouro roubado por esticão, magoando o pescoço de uma mulher, mas para ele foi só uma dose que falhou.

E um advogado de acusação disse que problemas de memória nunca teve, isso nunca, “quando era novo até um padre quis fazer de mim sacerdote”, por causa da sua excelente memória e, depois, pediu ao juiz que as próximas sessões fossem marcadas só da parte da tarde, já que de manhã não pode ser.

– O senhor levanta-se mais cedo, como eu, como toda a gente, respondeu-lhe o juiz.

– Tenho um problema. Ordens médicas. Tenho papel: o médico proibiu-me de fazer esforços intelectuais de manhã.

– O sôtor vem à tarde, já vem de moca afiada, e avia!, respondeu-lhe o adversário, o advogado de defesa.

– Esta nunca tinha ouvido, suspirou o juiz, de ombros rendidos à medicina.

E no meio do advogado que não pensa de manhã, do homem que provocou inquietação ao pai da Joana, de tantos farrapos de realidade húmidos de lágrimas e de cuspos, espalhados por tantas salas e andares, um juiz mandou o senhor Gonçalo levantar-se. Era um homem atlético, moreno, com cerca de 40 anos. A sentença falava numa pistola Beretta ilegal e das suas balas, cuja detenção “em si é um crime”. Falava ainda em arrependimento e em pena suspensa. Então o juiz olhou Gonçalo no centro das sobrancelhas, focou mesmo o centro do alvo, suspirou do sopé do estômago e revelou ao mundo a fantástica aventura da prisão do homem:

– Até porque o senhor já teve a sua pena, que foi disparar a arma no seu próprio pé!…

Portanto, isto existe antes de ser metáfora. Dar um tiro no pé. E o pobre Gonçalo – no seu andar lateral, com o seu azar literal – saiu coxeando. O pé direito mais cheio no sapato. Nem medo nem inquietação, outra coisa mais triste e cómica. E que cara tão portuguesa ia lá em cima.

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.