Um sniper à pressão
[Ah, pensam que é só vir para aqui bloquear, acham que é assim?!] Não se conhece o núcleo dos pensamentos de Nuno, a que temperatura funde a rubro-branco a sua alma rodoviária. Mas da boca para fora ele é bem explicado. O polícia:
– Passa um indivíduo e começa a gritar: “Vão à merda, vão embora daqui, chulos, vieram para aqui roubar!” A minha reacção ao que ele dizia foi perguntar-lhe se algum dos carros era dele.
Apesar da delicadeza, o homem escapou para um prédio. Os polícias destacados para aquela zona de Lisboa continuaram o seu bloqueia aqui, tranca ali, reboca acolá. Estavam rodeados de edifícios de média altitude, todos com janelinhas. Vendo agora a geografia do terreno, a fila de carros, o passeio e um relvado atrás, era o sítio ideal para uma emboscada. Quem já pisou uma cidade em guerra civil sabe que esta, desafortunadamente, é coisa pouco uniforme.
Aqui estás bem, na esquina a dez metros estás mal. Podes dormir e entrar-te uma bomba pelo telhado, podes mudar para um local seguro e era para aí que afinal estava marcada a matança do meio-dia. Mas contra a lotaria há uma espécie de livro de regras, como um código da estrada.
Em Sarajevo, no princípio dos anos 1990, viam-se cartazes improvisados nos postes dos cruzamentos que, em vez de Stop, em vez de dê prioridade, em vez de proibido virar à esquerda (esses ninguém respeitava, podia-se conduzir à noite sem luzes) avisavam: “Atenção, Snipers!” E, tal como perto dos hospitais se desenha uma corneta, ali era uma carabina com mira telescópica e relâmpago no cano. Correr na neve até ouvir um crack! ao fundo e um silvo rodopiante sobre a cabeça. Com estudo e sorte, tirava-se a carta por mais um dia.
A Polícia Municipal de Lisboa não combate guerrilha urbana, é mais bloqueios de pneus. Não esperava o dia em que um amador de caça leve resolveu mudar para a grossa. A sorte dos guardas foi o material ser fraco.
– Ouvimos um tiro. Uma explosão e um impacto na nossa viatura. Refugiámo-nos logo atrás da carrinha.
– Tem a certeza que era um tiro?
– Sim, de uma pressão-de-ar. A minha dúvida é se não era ajudada por alguma botija de gás, que dá muito mais força ao disparo. Houve um segundo disparo e só vimos um vulto à janela. Um terceiro andar. Não vi a arma, mas era a única que estava aberta. Fizemos diligências e descobrimos que era do mesmo senhor que nos tinha insultado. Foi mais fácil do que eu pensava. Não esperava que ele viesse a sair…
Um sniper de anedota. O guarda e o camarada recolheram na relva um chumbinho de espingarda “flober” espalmado, um insecto de chumbo, mas é tiro que vaza olhos e há fotos dos buracos na chapa. Tem de se provar que os tiros pertenceram a Nuno. Veio de blazer e calças em bombazine castanho-claro, ombros extensos e cabelo metalizado da cor elegante dos tachos (e de quase metade dos automóveis em Portugal, ide à janela ver). Custa imaginá-lo no seu macacão de mecânico. Já passou dos 40 e vive com a mãe. Mas Nuno já disse em tribunal que não disparou. Talvez um vizinho? Pelo contrário, disse o polícia, ele confessou que “estava muito zangado porque já lhe tinham bloqueado o carro na semana anterior”.
– Também admitiu que tinha uma pressão-de-ar, mas que sobre isso não ia dizer mais nada.
A juíza voltará a Nuno e à sua versão menos oleada: a espingarda teria sido destruída antes do dia dos acontecimentos.
– A minha pressão-de-ar avariou-se a certa altura e como não justificava o valor do arranjo… Era uma coisa barata, e quando parte a mola…
– Para que é que a tinha?
– Costumava ir praticar tiro ao alvo com um amigo.
– Porque que é que disse à polícia que tinha uma pressão-de-ar?
– Eu disse à polícia “já tive”, não disse “tenho”!
A juíza suspirou.
– O senhor vai dizer porque é que se desfez da pressão-de-ar ou vou ter de chamar o seu amigo?…
O sniper saiu como um passarinho ferido na asa.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.