Rui Cardoso Martins

Um brinquedo em segunda mão

Camisa verde e branca, sapatos de pelica barata escolhidos para o julgamento. Um homem louro, baixo, largo, braços fortíssimos e a voz quebrada por dois anos de espera. A companheira acusou-o de violência doméstica. A figura do romeno Nicolai – mesmo filtrada pela imigração – é a do arguido português: não pode sair do país enquanto o caso não se resolver. Tem termo de identidade e residência. E as testemunhas de acusação – começando pela mulher que Nicolai ama -mais uma vez não apareceram no julgamento.

A tradutora de romeno, destacada pela embaixada, acredita em Nicolai. Ao falar para a juíza, num português um pouco enrolado, por vezes as suas palavras parecem mais da tradutora do que do traduzido:

– A senhora arrolou testemunhas e as testemunhas estragaram tudo. Os factos que elas contaram não eram verdade. E é um processo que já está a durar dois anos, ele quer regressar ou ir de férias, poder sair do país, e precisa de saber quanto tempo vai durar essa situação…

A mistura de eslavo e latino oscila entre a boca do homem e da tradutora. Nicolai fala devagar, mas acelera quando trata da confusa relação com os sogros. Os singulares e os plurais, os tempos verbais, o ontem e o hoje começam a misturar-se como nas histórias de amor mal resolvidas:

– O senhor está a dizer que eles ainda não têm uma habitação e que estavam escondidos num hotel os dois, e os pais, quando souberam que estiveram juntos, começaram outra vez a criar vários problemas. O pai da sua companheira e a mãe… eles têm uma situação muito má, e só querem tirar dinheiro dele para manter ele numa situação…

– Mas agora, corta a juíza, o que é preciso é que as senhoras sejam ouvidas o mais depressa possível, aliás porque a esposa pode dizer que não quer falar como testemunha, tem esse direito… O senhor percebeu?

– Mas vocês… vai demorar quanto tempo?, pergunta Nicolai.

– Isto acaba, isto acaba! O senhor não vai ficar preso a este processo eternamente, diz-lhe a juíza. Nós agora vamos fazer esta tentativa, por escrito, por linhas simples. Se elas não colaborarem, o tribunal vai tirar as suas conclusões.

– Eu não percebo porque é que ela faz isto… Eu mandei 800, 900, mil euros.

Nicolai recomeça em português [línguas do mesmo avô, o latim, “carta” em romeno é livro, coisas que se aprendem nos comboios].

– Nós estávamos a viver escondidos do pai dela, que tem problemas mentais. Ele disse que “o teu filho”… o meu filho… [Nicolai faz gesto de tábua, de corpo deitado] um caixão! “Nunca vais ficar com ele!”

Lembra o pior dia de todos:

– A minha mulher, quando o meu filho começou a sofrer de falta de ar e eu tinha de o levar ao hospital de São José… Eu telefonei para a mãe e pedi se ela podia vir ajudar. Ela veio ter com o filho. Mas eu quando cheguei do trabalho fiquei à espera que ela chegasse… três horas à espera, “mas onde é que ela foi?”, e tinha desaparecido, tinha ido embora com o meu filho sem me dizer nada.

Escapara para a Roménia. A tradutora, outra vez:

-Ela só lhe escreve “Meu amor, preciso muito de ti” quando vai pedir dinheiro. Quando recebe, deixa de lhe ligar. Dá 100 euros e ela pergunta: “Mas isso é dinheiro?” Eu não percebo.

– Comprei um caixote…

Nicolai enerva-se e passa de novo o discurso para a tradutora. Uma confusão: ela às vezes assume o eu dele, outras vezes não. A senhora da embaixada está angustiada, abana a cabeça, parece que nunca traduziu tanta tristeza.

– Ele comprou um caixote cheio de brinquedos. Brinquedos bons, com os comandos todos. Ele… eu comprei, mandei e tirei fotografias, e eles não quiseram, não aceitaram, porque eles só queriam brinquedos novos, mas eu não posso pagar brinquedos novos!

Isso é dinheiro.

O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.