Um biltre cómico

Um currículo que não mente: no mesmo semestre de 2017, deu um pontapé nas costas da mulher grávida de quatro meses e pregou um murro no olho da avó acamada e doente. Mas que equivalência dará isto em tribunal?
– É tudo mentira, não fiz mal a ninguém. É tudo falso testemunho contra mim! Eu levantei só assim o pé… Eu não bati! Eu estava a brincar, eu fiz assim!
Sentado, Paulo faz como o futebolista controlando a bola a meia altura com o calcanhar, gesto técnico meio virtuoso, meio desastrado. Bem, na verdade parece mais um cão a fazer chichi na árvore. E a voz desafina-lhe, é um galaró agarrado pelo rabo.
– Não batiiiii!, só levantei o pé a brincar, o GNR é que disse “está a dar um pontapé à senhora”. Eu não lhe bati!
Os braços rodopiam-lhe no peito, as mãos são as garras da verdade. Quase arranca as vestes.
– Acha que eu ia bater à minha avó?!
– Não sei. Bateu?
– Ela caiu da cama! Estava com tontura… ficou com o olho roxo, ou isso. Sei lá se caiu da cama! Eu, bater à minha mulher grávida? Eu que fique doente, doutora juíza, eu não fiz mal a ninguém, eu estou inocente, eu a bater à minha mulher grávida e o meu filho a segurar-me, ai pai?! Eu dou-me tão bem com ela!
Entra a ex-mulher e mãe dos filhos. Viveram juntos 18 anos.
– Eu estava grávida de três ou quatro meses. Eu tinha ido ver o meu filho. Eu encontro-me com ele [o marido] na universidade e… Ele não estava bem. Ele é…
– Ai!, interrompe Paulo.
– O senhor volta a falar e tem de sair da sala.
– Eu não digo mais nada…
– Eu estava a expressar para ele ir tratar de assuntos… mas não estava bem. Eu sou sincera, eu como mulher também não podia fazer aquilo que fiz…
– Mas ele deu pontapé?
– Mas foi devagar… Como estava nervosa, eu, se fosse possível, incriminava-o em tudo. Eu queria-me vingar!
O filho mais velho tinha 15 anos e meteu-se à frente do pai.
– Tentou defender a senhora?
– Sim. Mas ele não me fez mal.
– Minha senhora, já disse que lhe deu um pontapé. Isso é fazer mal.
– Ele atingiu, mas foi ao de leve, não foi pesado.
Não foi o que viram os dois GNR que patrulhavam a Ajuda.
– Não tenho dúvida nenhuma. Pontapé nas costas. Tive de fazer a detenção. Nós fomos logo com os cavalos na direcção deles. O senhor parecia estar um pouco desorientado. O discurso não era coerente. A senhora não caiu no chão.
A segunda acusação, dias depois, era também já campo semeado por Paulo. Outro guarda explica:
– Foi uma denúncia de violência de um neto sobre a avó. Eram moradores bastante exaltados para levarmos alguém preso. A senhora acamada tinha um hematoma grande à volta do olho e um derramamento dentro, com sangue vermelho.
Entra a mãe de Paulo.
– É o meu filho. Eu tenho de dizer uma coisa. O meu filho não está carregado por mim.
A juíza teve experiência no Alentejo e explica à procuradora:
– Carregado quer dizer acusado…
– Era só para dizer que a minha mãe caiu da cama. Eles dizem que eu acusei o meu filho, mas não é verdade.
– Cala-te!, ordena Paulo.
– Cala-te tu!, grita a mãe.
– É só para falar sobre o caso, pá!, guincha Paulo.
– Cala-te!
– Tem de obedecer à senhora sua mãe, além de obedecer ao tribunal.
A mãe de Paulo, de novo:
– A minha mãe disse que caiu da caminha e bateu com o olhinho. Uma mãe não vai acusar o filho!
– Vá à sua vida, suspirou a juíza.
Paulo, triunfante:
– Eu alguma vez ia dar um murro à minha avó?! Os ciganos é que disseram!, acrescenta Paulo, o cigano.
Será absolvido “in dubio pro reo” do murro na avó, agora morta, e condenado pelo pontapé na grávida. Um dia pode ir preso.
– Não diga isso, que eu nunca estive preso, eu morria numa prisão…
– Há sempre uma primeira vez.
– Ó pá, começava a chorar!
– Pela sua mãe?
– Pela minha mãe, a minha mulher, por todos!
Pontapear a mulher grávida, esmurrar a avó entrevada na cama. Faltou esfaquear a mãezinha, mas mesmo assim ela não o carregava.
O autor escreve de acordo com a anterior ortografia.