Tanta falta de carinho
Ele não assistiu porque já subira no elevador, mas fui eu ao lado de quatro mulheres risonhas, e uma delas ameaçava, ofendida:
– A seguir vou eu ao sexto andar apresentar queixa.
– Vais a seguir?
– Se ele me der um tiro antes, não me serve de nada!
E riam as quatro, a caminho da sala das testemunhas, porque os guardas-republicanos não têm de passar pelo detector de metais da portaria do tribunal. Um GNR poderá entrar na sala de julgamentos armado com pistola, mesmo que seja ele o réu que vai ser julgado.
[Mas bolas, quando penso no pobre Silva apetece-me escrever coisas destas: o carinho é como o óleo e o combustível da mota, sem eles andamos mal ou nem andamos.]
– Foi uma má fase no relacionamento com a Sónia, disse o guarda Silva quando se levantou para falar.
Admitiu ter perdido a cabeça e enviado mensagens de ameaça. Mas calhara a Silva uma juíza que o deixava falar, sair a porcaria que corrói a pessoa, as ferrugens do coração, e Silva pediu-lhe autorização para contar a desventura desde o princípio. Preparámo-nos para consulta psiquiátrica pública. Não torcera o braço a Sónia:
– Isso é mentira, foi cara a cara. A minha intenção, o meu intuito, meritíssima, era só saber com quem é que ela estava a falar. Digo-o do fundo do coração: eu estar aqui neste momento é o momento mais triste da minha vida…
Tudo em Silva, os músculos duros dos braços, o pescoço de tonel, a ampla barriga, até, daí a pouco saberíamos, as tatuagens escondidas pela t-shirt negra, confirmavam o seu mais triste momento. [Quero ainda escrever esta: não há fundo, nem horizonte, nem classe social, nem género para a desgraça no amor.] A voz saltava-lhe da cremalheira, mas o relatório do remorso de Silva continuou a rolar:
“Dei oito anos da minha vida por uma pessoa que, ao fim e ao cabo, não valia o que eu dava. Eu só lhe disse: ‘Sê uma mulherzinha e diz-me, de uma vez por todas, qual é a razão para acabares a nossa relação’. Se tinha coragem, se era mulher para me dizer qual a razão para acabar, quando lhe dei tudo o que tinha e o que não tinha. Nós andámos pelo mundo das motas, em concentrações de motas, com muita gente a quem essa senhora agora diz mal de mim, tenta sempre deitar-me abaixo. Isto começou era eu casado e o meu casamento estava a dar as últimas… por falta de carinho. Conheci a Sónia no motoclube em 2009, em Julho, foi um dia que me marcou muito… Sôtora, eu tenho aqui essa data tatuada no peito! Pensei que fosse o Tal Amor da nossa vida. Durante oito anos pedi-lhe que pedisse o divórcio, porque eu não me sentia bem. O seu próprio filho, dos 12 aos 18 anos, fui eu que tratei dele. Ela não lhe dava de comer. Ele fazia oito quilómetros para ir comer a casa de uns meus amigos das motas. O que me revolta é esta Sónia estar agora a fazer o papel de santa. O marido… que trabalhava nas minas, desabafava comigo e eu fui um cobarde, porque eu considero-me um cobarde por não lhe ter contado o que se passou! Era uma pessoa que, apesar de eu ter uma relação com a mulher dele, era uma pessoa de valor, porque se fartava de trabalhar como mineiro e ela a gastar tudo! O rapaz a pagar dívidas às finanças por causa dela! Um dia, a pessoa que é vice-presidente de um motoclube no qual eu sou o presidente, disse-me: ‘Deixa-a, que essa pessoa não presta’. ‘Então porquê?’, disse eu. ‘Porque na altura em que vocês não andaram, ela andou com outro, de outro motoclube…’ Essa senhora, além de me ter como amante, teve que arranjar outra pessoa!’ Um dia, ela combinou encontrar-se comigo e afinal apareceu o primo, que me gritou ‘o que é que estás aqui a fazer, meu grandessíssimo filho da puta?!’ Eu, se fosse um homem, tinha saído e resolvido ali as coisas, mas não, fui apresentar queixa à esquadra. E disse-me ela: ‘Vai-te mas é embora daqui, ó otário do caralho!’ Resumindo, eu que nunca lhe quis mal, que lhe dei tudo o que tinha e o que não tinha! Deixei de ir passear com o meu filho porque ela não tinha dinheiro e eu dei-lhe o dinheiro guardado para ir passear com o meu filho, e é isso que me está mesmo a corroer por dentro!”
Tanta falta de carinho no asfalto a ferver.