Sobrinho Simões: “Sou muito medroso, tenho medo de tudo”

Pedro Kirilos / Global Imagens

É impossível distinguir, dicotomicamente, virtudes e defeitos. Desde logo, tenho características (qualidades) em percentagens variáveis para o bem e para o mal. Algumas variações estão relacionadas com a idade – a perceção do que “vejo bem” ou “vejo mal” hoje, aos 70, é diferente da avaliação do que fora há dezenas de anos atrás. O que estou a dizer é que as nossas características são bastantes dinâmicas e dependem menos da “genética” do que do resultado da interação dos genes com o ambiente e, sobretudo, com as pessoas.

Ainda antes da lista, não resisto a salientar um elemento tão crucial como a sorte/azar. Para além da possível dimensão espiritual, não vejo nada mais importante do que fator sorte na vida. No meu caso tive uma sorte extraordinária, desde as condições do nascimento até às da velhice, que resultou de fatores determinantes: a família, os amigos, os professores e a benéfica inter-relação com o meio. Pode argumentar-se que “mereci” essa sorte na medida em que potenciei a educação e a saúde. Seria uma vergonha apregoar como virtude minha ter tido sorte.

Vejo bem…
1. Gosto de aprender e de trabalhar a sério. Tenho muito mais características culturais adquiridas com a família, a escola, as instituições, do que com os princípios genéticos. (Um parênteses sobre o septuagenário: até quando estas virtudes se manterão?).

2. Penso que sou generoso e contribuí, e continuo a contribuir, juntando grupos, departamentos e instituições.

3. Gosto de ser professor e de fazer parte de grupos que tanto ajudam como são ajudados. A virtude está na incorporação do NÓS; a recompensa em ser ultrapassado pelos seus estudantes e os pares.

4. Sou honesto e acredito no valor da avaliação externa com consequência. Procuro construir contratos que permitam ultrapassar os contextos “tribais” e prevenir tanto quanto possível os problemas da informalidade/corrupção.

5. Apesar de ser um tímido, transformo-me no “palco”, seja numa aula/seminário/curso, independentemente de abordar estudantes novinhos, professores ou investigadores seniores. O mesmo se passa em conferências internacionais. É claro que não escapo às tosses e aos arrancos de vómito antes de começar a “performance”.

Vejo mal…
1. Sou muito medroso. Tenho medo de tudo desde as coisas mais ridículas (escuridão, gás, andar no metropolitano nos EUA,..) até às coisas mais sérias. Tenho muita pena de morrer e, sobretudo, do medo do sofrimento insolúvel.

2. Sou demasiado orgulhoso. Por vezes roça o insustentável quando junto a teimosia à falta de humildade. À medida que a idade progride as chatices de doença tornam-se mais frequentes. Apercebo-me das ocorrências tipo “banho de realidade” e pergunto-me como continuo orgulhoso? É mesmo um defeito.

3. Sou muito mau com as mãos (e pés) e com os aparelhos. Não tenho jeito para fazer consertos, não sei cozinhar, fui um péssimo desportista (exceto no pingue-pongue), guio mal, mas mal, e não tenho nem telemóvel, nem computador. (Abro uma exceção para o Tablet).

4. Sou muito mau na planificação e execução da vida de todos os dias: não compro vestuário nem calçado, nem nada, exceto livros e jornais; não compro comida e acabo por fazer uma única (e grande) refeição diária, à noite. Os livros e documentos são empilhados em vários quartos e a situação aproxima-se da catástrofe. Não consigo deslocar os montes e as queixas da minha mulher têm razão de ser. É um outro grande defeito.


Professor de Medicina
70 anos