Por Sara Dias Oliveira e Maria João Gala/Global Imagens
António esconde o nome. Tem razões para isso. Todos os dias vai trabalhar com um colete à prova de bala. Nos últimos anos, três sequestros, uma fuga, dinheiro em troca da vida. Armas apontadas à cabeça, olhos vendados com pensos de feridas, mãos amarradas, tareias no corpo, uma perna partida, duas costelas quebradas.
Tudo muito rápido, viagens curtas em carros desconhecidos, destinos indecifráveis, resgates pedidos em dólares. “Olha, saí com vida…… que queres que te diga?” Pausa. Outra pausa. “Vivi situações muito duras, sequestros, extorsões, roubos. A vida, para mim, tem grande valor. Já estive perto da morte, realmente estive. Aqui, na Venezuela, a vida custa o valor de uma bala. Não há consequências, falta justiça”, conta durante uma conversa, com o Atlântico pelo meio, imagens num quadradinho de ecrã de telemóvel.
“Aqui, na Venezuela, a vida custa o valor de uma bala. Não há consequências, falta justiça” (António)
A Venezuela está com as tripas de fora. Crises que se sobrepõem, inflação que dispara várias vezes ao dia, famílias que comem do lixo, um salário mínimo que quase não chega para um quilo de carne, seguros de saúde que mudam todos os meses, insegurança constante, zonas proibidas, coletivos policiais armados, ruas sem gente quando o sol se põe.
Um par de sapatos custava, há poucos dias, 10 mil bolívares, cerca de 12,5 euros, dois meses de trabalho. O salário mínimo ronda os 4 950 bolívares (6,19 euros), um café custa 450 (0,56 euros). Mas tudo é volátil, até os preços. O país vive no meio do caos e tornou-se a porta giratória dos cartéis de droga da América Latina.
Não há nomes reais nas histórias que se seguem. Foram alterados por razões de segurança. Há histórias com gente dentro. Intensas, dramáticas, remoídas. Histórias de portugueses e lusodescendentes que resistem para não perder vidas de trabalho.
António é um homem feito, a caminho dos 40 anos, filho de portugueses, tem dois filhos pequenos. Uma vida construída na Venezuela, a partida a ser pensada, primeiro a mulher e os filhos, depois ele. Em 2019, estarão todos em Portugal para começar do zero.
Por vezes, há silêncios do lado de lá, e de cá, seguram-se as lágrimas, e o relato dos dias continua. Os sustos, os medos, os homens que viu matarem um cão na rua para comer. Filho dos típicos emigrantes portugueses que fugiram da miséria em busca de uma vida melhor e encontraram um país próspero, gente feliz, trabalho. Tudo mudou. “Um país com um património cultural riquíssimo, o clima perfeito, um povo alegre. Muitos vieram para cá, fizeram fortunas, sempre a enviar coisas para Portugal. Com este novo Governo, aquela riqueza que sempre tiveram desapareceu. Agora não ganhamos para termos comida, medicamentos, seguro de saúde. O socialismo acaba sempre por bater à nossa porta.”
O canal 8 da televisão, do Governo, transmite comícios, campanhas eleitorais, de manhã à noite. “Sempre com ameaças, com problemas com emigrantes, que os estrangeiros são uns traidores. A Venezuela é um país rico com uma moeda pobre. Portugal é um país pobre com uma moeda rica.”
Os preços mudam diariamente, da manhã para a tarde, da tarde para a noite. Não há dinheiro para comprar matérias-primas. “Ninguém aguenta isto. Com esta inflação é muito complicado para quem tem negócio, para quem não tem ainda é pior. Todo o Mundo está a fugir”, refere. Ninguém quer abandonar as empresas erguidas a pulso, fruto de suor, de décadas, o que passou de pais para filhos, geração após geração. “O problema são os negócios, as casas, as propriedades. Ninguém consegue vender, a própria moeda desvalorizou.” Quem fecha as portas, arrisca-se a perder o negócio. Expropriado, assaltado, vandalizado. Não há regras. Não se sabe o dia de amanhã.
A árvore de Natal está decorada e iluminada, o presépio montado. Ali perto duas Virgens Marias que protegem a família. Na Venezuela, o Natal é uma festa de abraços, de convívio, de festa, de casas de portas abertas, convites para entrar. Na casa de António prepara-se o Natal, uma consoada mais venezuelana com o tradicional pernil, pão de jamón, hallaca, um guisado de carnes embrulhado numa massa de folhas de bananeira. Não haverá bacalhau.
“Lamento não poder dar aos meus filhos, na Venezuela, a infância que eu e a minha esposa tivemos. Mas vão ter uma melhor em Portugal, isso é seguro.” (António)
“Quando vives em ambientes hostis, as famílias estão sempre mais unidas. Graças a Deus, os meus filhos vão ter Pai Natal, trouxemos as suas prendas de Portugal.” António quer alegria. “As situações por que temos passado ensinam-nos a avaliar as pequenas coisas. Agora somos mais humildes.” A dor embrulha-se na esperança, a fé tenta calar a tristeza. “Lamento não poder dar aos meus filhos, na Venezuela, a infância que eu e a minha esposa tivemos. Mas vão ter uma melhor em Portugal, isso é seguro.”
“Resistir é um ato heroico”
Miguel também não tem 40 anos, a mulher e os filhos já estão em Portugal, e o plano é partir, juntar-se à família. Não sabe quando. Lusodescendente, dupla nacionalidade, sente que está a ser empurrado da Venezuela, onde nasceu. Sabe que se fechar a porta da empresa da família, sem a vender ou alugar, tudo se desmorona. Perde tudo, fica sem nada. Nos últimos tempos, emagreceu 15 quilos. É muito stresse. A inflação aumenta 4% ao dia, a insegurança dá cabo dos nervos e um povo alegre por natureza está deprimido. “Resistir é um ato heroico.”
A esperança alimenta essa resistência, o problema é que a realidade de todos os dias impõe-se sem pedir licença. “Nos últimos dois anos, o país entrou num processo muito forte de deterioração, está tudo a colapsar”, relata a partir da Venezuela. Miguel repete a palavra caos ao longo da conversa. “A vida quotidiana é infernal, não há trabalho, não há empresários que suportem semelhante caos.” E, depois, a imagem de um inferno que usa como uma metáfora, uma bofetada sem resposta. “Há pessoas a adoecer, a viver mal. É como ver um filme de um campo de concentração e, no meio do desespero, continuar vivo. Cada dia é uma vitória.”
“Há pessoas a adoecer, a viver mal. É como ver um filme de um campo de concentração e, no meio do desespero, continuar vivo. Cada dia é uma vitória.” (Miguel)
Miguel tem uma palavra que resume o desassossego. “Anomia, já ouviu falar? Não podemos prever nada, não podemos planificar nada. É uma situação de precariedade absoluta, vive-se ao dia, não podemos confiar em ninguém. Estamos a resistir.” Anomia, essa ausência e desintegração das normas sociais, sem objetivos ou planos, essa perda de identidade, essa sensação do chão que foge dos pés. A conversa é dura, o Natal à porta, muito provavelmente com a família deste lado do Atlântico e, logo a seguir, um regresso para aqueles dias que custam a passar. Miguel vê uma segunda Cuba à frente, uma política de controlo social, um país “agarrado por um grupo de delinquentes”, o mercado negro cada vez mais pujante. “Não há forma de saber as coisas, o Governo pode controlar tudo.”
Anabela tem quase 60 anos, nasceu na Venezuela, filha de pais portugueses emigrantes na década de 1950, um amor imenso por Portugal que conhece e onde quer viver, um filho com mais de 20 anos que reza para que Deus o traga de volta sempre que coloca o pé fora de casa. Como um pacto divino. “Encomendei-o a Nossa Senhora de Fátima para que mo levo e para que mo traga”, desabafa a meio de uma manhã de dezembro.
Cá chove, lá está calor, vê-se o sol. “A segurança aqui está muito mal. O dinheiro não chega para comprar nada, está tudo muito caro. Há muita gente a agarrar lixo para comer. Há miúdos de dois/três anos que andam no lixo”, descreve como um telegrama dramático. Já não vai a lojas, agora é mais mercados, não sai de casa à noite, o dinheiro conta-se e conta-se e não chega para partir para Portugal. Tem fé que o filho saia da Venezuela. Ele primeiro, ela a seguir. “Sempre gostei de Portugal, estou a preparar-me para ir embora.”
Não há dia marcado para voltar ao país onde casou, berço dos pais, que não visita há algum tempo. “No dia que for embora, vou tranquila com o que vivi aqui.”
“Há muita gente a agarrar lixo para comer. Há miúdos de dois/três anos que andam no lixo” (Anabela)
Anabela sorri pelo ecrã do telemóvel, um sorriso que não desaparece durante a conversa. A Venezuela está-lhe no sangue e naquela pele tostada pelo sol. “Este país tem muito para dar, agora está muito decadente, as pessoas estão a ir para fora.” Anabela teve um pequeno negócio, o filho tem trabalho, a inflação rebenta com tudo. Está na lista das pessoas que recebem a caixa CLAP (Comités Locais de Abastecimento e Produção) com as caras de Chávez e Maduro estampadas no exterior. Lá dentro, estão bens alimentares, como azeite, arroz, massa, leite, feijão preto, latas de atum. A caixa CLAP surgiu há dois anos, na altura das eleições, e permaneceu. Agora custa 120 bolívares por 26 produtos.
A duas semanas do Natal, o Governo distribuiu o pernil num saco. Fala-se em 20 toneladas, presume-se que o pernil tenha vindo da Colômbia. Este ano, não houve polémica à volta do naco de porco, desta vez Maduro não acusou Portugal de “sabotagem” no fornecimento de carne, como fez no Natal passado, e que originou comunicados dando conta da falta de pagamentos por parte da Venezuela.
Anabela recebeu o pernil e, este ano, sonha com bacalhau à mesa na ceia de Natal para relembrar tempos de que tem tantas saudades. “Mas está muito complicado, está muito caro. Se conseguir o bacalhau faço farrapo velho no dia de Natal”, confessa. Quanto à caixa de papelão, Anabela não se cansa de dizer aos que conhece que não se devem habituar a um sistema que, em seu entender, não se aguentará muito tempo. Chamam-lhe radical e ela não se importa, percebe por que razão lhe respondem assim. Voltará a repetir o que pensa e continuará a rezar pelo seu filho.
“A inflação está a comer-nos tudo”
O semblante de Manuel fica mais sério e, por minutos, perde aquele sorriso permanente e característico, quando se lembra que não passará o Natal com os filhos que já saíram da Venezuela para dois continentes diferentes. Neste Natal, será ele e a mulher. “Até estou arrepiado, seremos nós, os dois velhotes, sozinhos.”
Nasceu em Portugal, chegou à Venezuela ainda criança, tem mais de 50 anos de país, um negócio construído a pulso. “Uma vida de trabalho que valeu a pena e que hoje, lamentavelmente, não vale nada, não vale nada.” O sorriso volta apesar de um coração apertado, que sangrará por dentro. “A inflação está a comer-nos tudo, tudo. Quem tem negócios não tem mercadoria para vender nem para repor. Estamos na falência total, cada dia estamos mais pobres com esta inflação. É uma coisa maluca, doida, que não tem explicação.”
“Uma vida de trabalho que valeu a pena e que hoje, lamentavelmente, não vale nada, não vale nada.” (Manuel)
É-lhe difícil esquecer as manifestações, os protestos, os polícias que chegaram em motorizadas, os comerciantes a fecharem as portas à pressa. “Estamos com medo, na hora de reprimir não pensam duas vezes, reprimem com violência.” Houve um dia, há um tempo, que pensou que iria ser sequestrado quando pôs o pé fora de casa. Desconfiou, acelerou o passo. “Graças a Deus, não aconteceu nada.”
Manuel confessa, por entre a conversa, que quer ser enterrado na sua terra, no seu país, em Portugal. Há uma vontade de partir e outra de ficar. O amor à Venezuela não desaparece no meio do drama. “Adoro este país, é um país fabuloso. O mal foi na mão de quem caiu, abandonaram o povo e ninguém levanta a voz. Maus governos e um povo muito submisso que não reage.”
Cá são três da tarde, lá 11 da manhã. Poucos dias depois, o Governo apresentava a Linha Regressar Venezuela, linha de crédito de 50 milhões de euros para empresários portugueses na Venezuela, com pequenos ou médios negócios, que queiram regressar a Portugal e recomeçar projetos empresariais. Um máximo de um milhão de euros por projeto para a aquisição de imóveis, terrenos ou compra de partes sociais em empresas que já existem. O assunto não entra na conversa com Luís, lusodescendente com dupla nacionalidade, mais de 40 anos de vida, família em Portugal.
No dia anterior, Luís foi votar nas eleições locais marcadas por uma elevada abstenção (a rondar os 75% nos anúncios do Governo venezuelano, a ultrapassar os 90% segundo algumas organizações internacionais), pelo boicote de várias formações da oposição, e pela vitória esmagadora do Partido Socialista Unidos da Venezuela e aliados no bloco chavista. A remar contra a maré, votou.
“Manifestei a minha opção. Os partidos do Governo governam numa bolha. Não quero que entrem na minha zona, ninguém sabe o que vai acontecer a seguir.” Participou em marchas de protesto, manifestações que se tornaram violentas. “Lançaram gás lacrimogéneo, morreram 120 pessoas para absolutamente nada. Os líderes da oposição não tiram nenhuma conclusão.” De um lado, esperança, do outro, desalento, algum desânimo. “São tantas as listas que não sabemos, ao certo, em quem confiar. As coisas não estão bem,… ninguém pode estar bem quando não consegue cumprir a suas necessidades essenciais.”
Luís é filho de portugueses, nasceu na Venezuela, trabalhou em Portugal, voltou para a Venezuela para se juntar ao negócio da família. Já foi ameaçado de sequestro, assaltado no meio da autoestrada, nunca houve violência física. “Sempre pensei que fosse um país de futuro e que, em condições normais, teríamos uma vida tranquila, de trabalho, de esforço, de dedicação. Nos últimos anos, a situação tem vindo a degradar-se e é praticamente impossível viver aqui.”
Luís tem a mulher e os filhos em Portugal e quer partir, juntar-se a eles. “Sair deste clima, deste ambiente doentio, tóxico. “Mas temos sido obrigados a esta separação dos nossos familiares.” A segurança da família está acima de tudo e Luís anda a ver se não perde tudo neste “furacão”, como lhe chama, que varre o país. “Tudo o que temos, do tempo dos meus avós, está cá. Não posso passar a chave e ir-me embora, não pode ser assim.” Por isso, resiste. Como tantos outros portugueses.