Será que há uma idade certa para os filhos receberem a chave de casa?

Texto de Cláudia Pinto

No dia em que fez 14 anos, em maio passado, Tomás recebeu um presente original que lhe viria a conferir maior autonomia. Uma prova de confiança dada pelos pais, Susana Prada e João, que correspondeu a um pedido que lhes fazia com alguma frequência.

O porta-chaves da Porsche – marca preferida de carros – que tinha comprado numa viagem com os tios à Alemanha, no final do ano passado, vinha agora acompanhado da chave de casa. A morar em Leça do Balio, Matosinhos, a semana divide-se entre as aulas do 9.º ano e os treinos de andebol, modalidade que pratica há quatro anos.

“Achámos que estava na altura. Os pais, hoje em dia, cercam muito os miúdos. Quero educar os meus filhos com a máxima que o meu pai defendia – ‘dar liberdade é dar responsabilidade’ – e esta decisão vem nesse sentido”, explica Susana, mãe de Tomás e de Vasco, de cinco anos. O facto de o filho ser responsável e de nunca ter dado motivos para preocupações de monta agilizou a decisão. “Foi um momento especial para ele”, conta.

“Os pais, hoje em dia, cercam muito os miúdos. Quero educar os meus filhos com a máxima que o meu pai defendia – ‘dar liberdade é dar responsabilidade’” (Susana Prada)

Também Raquel Violante, 43 anos, e o marido, Hugo, optaram por dar a chave de casa à filha Matilde, dois anos mais nova do que Tomás. “Eu moro em Santarém mas trabalho em Lisboa. A gestão familiar é feita diariamente com a Maria do Sameiro, uma espécie de ‘segunda avó’ que trabalha na nossa casa a partir das 16 horas e garante a logística familiar até chegarmos, perto das 19”, explica.

Todavia, um imprevisto impossibilitou Maria do Sameiro de trabalhar durante três meses a partir de setembro de 2017, o que obrigou a que o ano escolar começasse sem apoio. “Tivemos que resolver e antecipar alguns temas. A chave de casa e a Matilde ficar sozinha foram dois deles”, frisa Raquel.

Também estes pais se agarraram ao facto de a filha ser “uma menina responsável” para tomarem a decisão. Por outro lado, o percurso de ida e regresso das aulas é feito com companhia. Matilde, que tem um irmão, o Miguel, de dez anos, estuda num colégio fora de Santarém, o que obriga a deslocações de autocarro. “Deixo-a na paragem, de manhã, com dois vizinhos e amigos, de 13 e 14 anos. No regresso, voltam os três, a pé.” Durante a semana, também é frequente conseguirem algumas boleias de carro para casa por parte de colegas ou familiares.

Cristina Gouveia e o marido Steve ainda não sentiram necessidade de dar esse passo. Têm duas filhas, Luísa, de 13, e Sofia, de nove, e vivem em Lisboa. O tema nem sequer é um assunto em cima da mesa. “Até ao dia de hoje não foi preciso, mas se fosse realmente necessário daríamos sem hesitar”, assegura Cristina, ainda que deixe transparecer algumas dúvidas próprias de mãe.

“Sinto muito receio em tudo o que diz respeito à segurança das meninas. Sei que tenho de dosear esse medo em prol do seu crescimento saudável mas sinto que o mundo enlouqueceu e que as minhas filhas não estão ainda preparadas para lidar com esta realidade”, defende.

Susana Prada e o filho, Tomás. (Foto de Artur Machado/Global Imagens)

Autonomia e maturidade
Existe uma idade “certa” para dar a chave de casa aos filhos? O pedopsiquiatra Pedro Strecht acha que não: “Depende sempre da maturidade do adolescente e de circunstâncias específicas de cada situação – por exemplo, a distância da escola a casa, ou o tempo que permanecerá sozinho até à chegada de adulto – mas, no geral, a entrada no 7.º ano de escolaridade (12/13 anos) pode ser considerado um ‘bom’ tempo.”

A opinião é partilhada pela psicóloga clínica e psicoterapeuta Cláudia Madeira Pereira, que considera que o desenvolvimento das crianças não acontece de forma linear e igual: “Por exemplo, uma criança de nove anos que apresenta maior autonomia e responsabilidade pode estar mais preparada para ter as chaves de casa do que uma criança de dez que tenha menos maturidade.”

“Uma criança de nove anos que apresenta maior autonomia e responsabilidade pode estar mais preparada para ter as chaves de casa do que uma criança de dez” (Cláudia Madeira Pereira, psicóloga)

A faixa etária não é o mais importante neste tema. “Cada criança é única e tem um desenvolvimento próprio dentro de um patamar de normalidade. O ritmo de aquisição de algumas competências é muito variável”, explica a médica pediatra Arlete Neto. Ou seja, tudo depende da própria criança, do meio em que está inserida, do seu grau de autonomia e maturidade, e não da idade cronológica.

Há algo comum a todos os pais que aceitaram dar o testemunho à “Notícias Magazine”: atribuir algumas tarefas aos filhos, independentemente de já terem ou não a chave de casa. “É importante promover o sentido de responsabilidade, maturidade e autonomia em tarefas e situações progressivamente mais complexas ou exigentes. Depois das primeiras aproximações, talvez tenha chegado o momento de os filhos terem a chave de casa ou de ficarem mais tempo sozinhos sem supervisão parental”, considera a psicóloga Cláudia Madeira Pereira.

Tomás anda muitas vezes a pé e de metro, e já descarregou a aplicação “Anda”, que permite o pagamento de viagens nos transportes públicos do Porto via telemóvel. Uma vez que o irmão Vasco anda na natação, antes de a mãe chegar à piscina, é Tomás que o ajuda a tomar banho. Quando sai mais cedo da escola, fica com a tarde por sua conta.

No caso de Matilde, começou por ficar pequenos períodos sozinha em casa, juntando-se-lhe mais tarde o irmão mais novo, de quem toma conta. “Sentíamos que era uma situação que a deixava um pouco desconfortável, pelo que estes períodos não excediam mais de duas horas. Há sempre muita preocupação”, realça Raquel, a mãe. “A Matilde sabe que a regra de ouro é não abrir a porta a ninguém ou espreitar pela portada do primeiro andar para verificar se conhece quem está a tocar à campainha. Em caso de dúvida, deve ligar para os pais.”

Matilde e Miguel ficam sozinhos até o pai chegar a casa para levá-los às respetivas atividades. Raquel considera que não teria a mesma leveza de espírito em dar a chave de casa ao filho Miguel, por ser mais novo e pelas experiências que já tiveram com ele por mais advertências que façam. O facto de morar numa urbanização de moradias, em Santarém, e num sítio relativamente pacato, agilizou a decisão. “Moro numa zona onde as crianças tocam à casa dos vizinhos para irem brincar na rua”, especifica. A realidade é distinta da vivenciada em grandes centros urbanos onde os receios acabam por ser mais notórios.

Proteção de mão dada com o medo
Cristina mora no Parque das Nações, em Lisboa, e as filhas também já ficam sozinhas em casa. Aos poucos, têm feito algumas tentativas de autonomia. “A Luísa já vai à rua com a cadela, veio pela primeira vez a pé sozinha do colégio para casa esta semana, uma distância de cerca de três quilómetros, e já pediu para repetir.” As saídas com os amigos também já começam a ser uma realidade. “Almoça no restaurante com as colegas, sem a nossa supervisão, no dia em que tem tarde livre de aulas. Também já vai com as amigas ao cinema, mas somos nós que a vamos levar e buscar.”

Tomás começou a ter alguma vida social autónoma e gosta da experiência. “Já teve jantares de aniversário, nós vamos levá-lo e buscá-lo. Adora e diverte-se imenso”, revela Susana. No último verão, pediu para passar dias inteiros na praia com os amigos, onde também participou num torneio de andebol. A mãe confessa que foi algo que nunca tinha acontecido: “Apesar de o meu marido não se sentir confortável, acabámos por aceder, até porque conhecemos o grupo de amigos e respetivos pais. Com algumas recomendações, fomos abrindo a guarda e, apesar de algumas reticências, correu tudo bem.”

Pedro Strecht assiste nas suas consultas a uma “superproteção dos filhos e a bastantes dificuldades de ordem prática em autonomizá-los. Regra geral, só os adolescentes mais crescidos é que fazem explicitamente o pedido para ter a chave de casa e, na maioria dos casos, por questões ligadas à melhoria da sua própria gestão do tempo diário”.

Cláudia Madeira Pereira também fala das consequências da proteção excessiva, que pode levar a que as crianças demorem mais a desenvolver a sua autonomia e sejam dependentes dos adultos durante mais tempo. “Isto acaba por também ter implicações ao nível emocional, tornando as crianças mais ansiosas e inseguras. O ideal é que os pais procurem gerir adequadamente os seus medos e inseguranças, de forma a conseguirem criar um equilíbrio saudável entre a autonomia e a proteção dos filhos”, defende.

A transformação em curso das famílias e as mudanças nas competências dos adolescentes também marcam este tipo de decisões. “A noção de família mudou e há jovens a viver realidades ‘de casas’ muito diversas”, explica o pedopsiquiatra. Isto significa também que podem ter mais do que uma chave de casa, quer fiquem ao cuidado de avós ou sejam filhos de pais divorciados.

O equilíbrio está longe de ser fácil. Prossegue Pedro Strecht: “A autonomia dos mais novos é um passo importante mas pode e deve ser feito de modo progressivo. Para tal acontecer de forma positiva, é necessário um bom nível de comunicação e relação entre pais e filhos. De notar que também há riscos em autonomizações precoces de crianças e adolescentes.”

“A autonomia dos mais novos é um passo importante mas pode e deve ser feito de modo progressivo” (Pedro Strecht, pedopsiquiatra)

Se os pais prepararem este passo desde cedo, a dificuldade em tomar a decisão diminui perante a certeza de que os filhos são responsáveis o suficiente para “resolverem problemas que possam surgir”, salienta Arlete Neto. Os filhos, por sua vez, “ficam felizes com o gesto de confiança conferido pelos pais, achando-se com idade para ter direitos de adultos. Mas como ainda não são, há que estabelecer regras”, conclui a médica pediatra.