Salazar: o “ditador” que ainda governa as cozinhas portuguesas

Texto de Filomena Abreu

Não é chamado de salazar por acaso. O batismo revela a capacidade criativa do povo em fazer analogias divertidas e recheadas de sentido. Se não sabia, fica agora esclarecido: o utensílio de cozinha, que serve para rapar o fundo dos recipientes para evitar o desperdício, acabou, inevitavelmente, com o nome do ditador português, o que governou o país durante 40 anos.

António de Oliveira Salazar, ministro das Finanças (na altura, ministro da Fazenda) e depois presidente do Conselho de Ministros, ainda hoje é a figura representativa da pobreza e da escassez. “Qualidade” inegável do salazar, aquele que está em quase todas as cozinhas do país e, quiçá, do Mundo.

Mas, e perdoem a preferência, o nosso, o que se guarda nas gavetas dos armários (convém frisar), é melhor do que o dos outros. Para começar, é português. E baratinho. Também lhe chamam espátula, raspador de massa, raspadeira, rapa-tachos, rapa-tudo.

Depois, o objeto, composto por um cabo em madeira e uma espátula de borracha, é realmente eficaz. Os mais resistentes são feitos de pinho ascético e borracha sinuosa. Matérias que se prolongam mais no tempo, quanto mais os seus donos resistirem a despachar a limpeza deles para as máquinas de lavar louça.

Nesse ponto, este salazar goza de um estatuto que o outro não conseguiu. Provavelmente, este salazar, que governa as cozinhas portuguesas, já terá ultrapassado em anos de existência o da política e das finanças que outrora governou o país. Um salazar quase imbatível na arte de rapar.

Pelo menos os chefs não se queixam, nem os amantes da culinária, que, por mais amadores que sejam, nunca o dispensam. Está tão bem concebido que mesmo as reinvenções têm poucas alterações. A última, portuguesa, pois claro, chama-se “super salazar” e tem uma espécie de orelhinhas de coelho, para que nada fique por aproveitar. Principalmente no fundo das tigelas, durante a confeção de bolos.

E engane-se quem pensa que o salazar é uma coisa caseira aqui do nosso Portugal. Não. Há alguns anos, este produto, fabricado numa empresa familiar da zona do Porto, passou a ser vendido nas lojas A Vida Portuguesa. E foi assim que foi descoberto por um conjunto de especialistas do Museum of Modern Art (MoMA) – Nova Iorque e Tóquio – que estavam no país a reunir objetos de uso diário com design inovador para integrar uma exposição, com direito a venda, dos produtos portugueses.

Não muito dado a viagens, a holofotes e sempre com um discurso assente na humildade, o Salazar ditador não teria achado grande graça ao destaque dado ao salazar da cozinha nas páginas desta revista.