Rui Moreira: “O meu Porto é o Porto que não quer ser capital de coisa nenhuma”

Texto de Alexandra Tavares-Teles | Fotos de Leonel de Castro/Global Imagens

Desengana quem o julga com vontade de formar um partido ou decidido a tornar o movimento independente que o levou a Câmara do Porto parte de uma solução política nacional. Rui Moreira não quer ser o Macron português nem deseja qualquer envolvimento partidário. É um campo em que apenas lhe interessa ver, ouvir e votar. Discorda do projeto de descentralização que aí vem e vai combatê-lo. Da regionalização, diz que talvez nunca aconteça. Quer cumprir o segundo mandato e garantir a continuidade de algumas das políticas que tem assinado. Sobre uma terceira corrida à câmara portuense, fica a dúvida. Logo se verá. O mesmo em relação à presidência do F. C. Porto. Aos 62 anos, a maior das suas certezas é que o projeto político e pessoal passará sempre por viver na cidade.

Uma entrevista a um homem do Porto. O que é ser um homem do Porto?
O Porto é uma cidade muito irresoluta. Muito inquieta, muito irrequieta, sempre a discutir-se a si própria. Curiosamente, tendo uma fortíssima autoestima – há até quem diga que de vez em quando tem a mais -, está sempre a rever a matéria dada, a querer discutir-se.

É uma vantagem?
Como pode ser uma desvantagem. Pode parecer que lhe falta rumo. O caso do Palácio de Cristal é o mais interessante. Quando foi feito, várias pessoas, desde logo Ramalho Ortigão, acharam que era terrível construir um “folly” num jardim inclinado sobre o Douro. Bom, lá foi construído e ali se fez a exposição internacional. Nos anos 50, o edifício foi deitado abaixo para se fazer o pavilhão dos desportos, hoje pavilhão Rosa Mota, e toda a gente ficou a discutir, de novo, a obra. Agora, estamos a promover melhorias e dizem que o melhor seria deitar abaixo e reconstruir. Este permanente questionar é revelador do quanto o Porto gosta de si próprio.

“O permanente questionar é revelador do quanto o Porto gosta de si próprio”

O Porto burguês e culto. Porto, liberal, com protagonismo, contestatário. Reconhece-se nesse Porto?
Reconheço-me nesse Porto. O Porto da burguesia cultural do Porto, que Miguel Veiga explicou muito bem. Como no Porto não havia nomes que transmitissem cultura de pais para filhos, quem na cidade atingisse determinado status social sentia necessidade de proporcionar aos filhos a cultura que não recebeu de forma geracional. Assim se explica a influência de pessoas como Guilhermina Suggia, resultado de uma burguesia que não nascendo com cultura a procurava.

E no seu caso?
Resultou muito da convivência que tive com a minha avó Maria Amélia, pessoa extraordinária e avant-garde, com o meu avô pintor, com o meu avô professor em Colúmbia e da convivência que tive com Miguel Veiga, com Santos Silva pai (pai de Artur Santos Silva), amigos lá de casa e pessoas muito irrequietas, que não se conformavam com o estado do país. Essa vivência na minha juventude, numa casa onde tudo se discutia, se entrava e saía aos gritos, ajudou a interessar-me.

Raro à época, tudo a discutir e aos gritos.
À época e ainda mais agora. Hoje em dia, em vez de discutirem, as pessoas fazem posts no Facebook.

A avó portuguesa, justamente contemporânea de Guilhermina Suggia, era a única pessoa que acreditava no “rapaz que apenas fazia bem vela”. Quem era esse rapaz, o mais velho de oito irmãos?
Um miúdo irrequieto, que vivia com a outra avó, alemã de origem judia, com códigos de disciplina diferentes, mais severos, e que não se conformava com isso. Estamos no Portugal dos anos 60, começávamos a revoltar-nos contra essa disciplina. É verdade, aquilo que eu fazia bem era vela. Era a escapatória. A minha avó portuguesa percebeu que essa irrequietude, em vez de alheamento das questões culturais, significava apenas que eu precisava de encontrar o equilíbrio entre ser irrequieto, indisciplinado – todos os anos esgotava as faltas disciplinares – e o aluno muito interessado. Tenho uma dívida enorme para com ela.

O que aprendeu no Colégio Alemão?
Saí do Colégio Alemão na terceira classe. A única coisa que tirei dali foi ficar a falar muito bem alemão. Eu já falava. Em casa da minha avó falava-se alemão, o meu avô falava muito bem e o meu pai falava comigo alemão nas conversas sérias, quando queria que não nos percebessem.

E no D. Manuel II (Rodrigues de Freitas), um liceu público?
No primeiro ano, chumbei, basicamente, por falta de material. O Colégio Alemão fornecia o material e a minha mãe estava habituada a que assim fosse. Eu que sempre desenhei bem e continuo a desenhar bem tive negativa a desenho porque ninguém me comprou um compasso. No primeiro ano, a coisa correu mal. Nos dois restantes, resolvi ser o melhor aluno. Na realidade, encontrei ali um Porto diferente, mas não muito diferente porque, nos anos 60, os jovens do Porto muito diferente não estudavam. A grande mudança dá-se quando fui para o Garcia de Orta, que já então era misto. É o liceu onde me senti bem.

Havia a avó que acreditava e o pai que não queria desapontar de maneira alguma.
Nunca nenhum dos meus pais nos bateu e raramente ralhavam, mas, quando sentia que o meu pai ficava desiludido comigo, caía uma cortina sobre mim. O meu pai era o meu herói. Separavam-nos apenas 25 anos, fazia vela comigo e ele normalmente ganhava (também porque eu era miúdo). A ideia de não o desiludir pesava muito. Depois, havia o facto de termos o mesmo nome. Ainda hoje não gosto. É uma responsabilidade enorme partilhar com o pai o mesmo nome.

Em 1974, na revolução, tinha 17 anos. Como foi vivido o 25 de Abril lá em casa?
Toda a gente ficou contente.

O pai, inclusive?
O meu estava completamente convencido de que finalmente o país ia sair da cepa torta. O meu pai ainda hoje é reconhecido como pessoa culta, um industrial muito à frente do seu tempo, que dava um raro conjunto de benefícios aos trabalhadores, que achava que o meu avô tinha sido condenado por Américo Thomaz a vender os navios de uma empresa da família. Para o meu pai, a revolução era uma enorme oportunidade. A primeira reação foi de otimismo e esperança.

Tinha cultura política aos 17 anos?
O Rui Sá, do PCP aqui do Porto, entregou-me duas atas do Conselho do Liceu Garcia de Orta, em que se demonstra que tinha ativismo político antes do 25 de Abril. Insurgi-me contra a suspensão do irmão dele, e eu mesmo, na sequencia de um jornal impresso na empresa do meu pai, a Molaflex, estive suspenso.

Em Inglaterra, para onde foi estudar em 1974 e onde foi o melhor aluno do curso, soube da prisão do seu pai, acusado de pertencer a uma associação política responsável por vários atentados a partidos de esquerda. Que marcas lhe deixaram esses tempos?
Sobretudo mágoas. Por saber que o meu pai não merecia o que lhe fizeram. O meu pai ficou destroçado porque sempre pensou que coisas daquelas só poderiam acontecer antes do 25 de Abril. Nunca depois. O relatório das sevícias diz que foi uma das pessoas mais maltratadas, com simulacros de fuzilamento e recusa de tratamento médico. Os nossos advogados defendiam que o meu pai devia processar o Estado português. Nunca o quis fazer.

Alguma intransigência relativamente ao que se escreve sobre si na imprensa e os processos contra jornalistas são marcas desse tempo, também?
Depois do 25 de Abril, a minha família foi acusada de ter ajudado a organizar um golpe de Estado e uma invasão em Portugal, o que nunca foi provado. Sofreu imenso sem receber um único pedido de desculpas. A minha mãe, que está viva, viveu esse tempo. É uma questão de ter direito ao bom nome. Processei dois jornalistas, é verdade, porque ambos, sabendo exatamente da realidade, escreveram uma realidade alternativa. Podemos ter a nossa convicção e, em algumas matérias até, razões para querer mal aos outros. Mas os que defenderam a liberdade dos jornalistas – e eu defendi-a sempre – devem ser exigentes. Nunca processarei um jornalista porque se enganou, porque errou ou porque escreveu um comentário sobre mim que não sendo verdade também não é grave. É diferente quando se ocultam factos propositadamente.

Em vez de seguir o negócio do pai, seguiu os passos do avô armador. Que jovem empresário era esse?
Sempre gostei de navios, havia qualquer coisa neles que me apaixonava. Talvez por muitos terem nomes de mulheres. Sempre ouvi o meu pai dizer que o Estado Novo lhe tinha fechado o negócio, fazia parte da história da família. E isso fez com que eu fosse por aí. Falei com o meu pai e comprei a quota aos sócios. Na altura, custou-me imenso dinheiro: 100 contos.

Que pediu ao pai?
Pedi a um amigo. Não queria que o meu pai me desse nada. Queria a minha oportunidade.

Ganhou muito dinheiro nessa altura?
Ganhei muito dinheiro.

Aos 26 anos, é-lhe diagnosticado uma doença grave, muito limitativa.
Tinha de estar ligado a uma máquina dia sim, dia não, durante quatro horas e meia. Nunca li tanto na vida.

Como enfrentou os tempos da hemodiálise: resiliência, resignação, revolta?
Nunca tive revolta. Num primeiro momento, não percebi por que tinha acontecido. Quando me senti mal e me disseram que os rins tinham parado, não sabia o que era creatinina e hemodiálise. Fazia desporto de alta competição e tinha a idade em que nos achamos imortais. Primeira lição: a imortalidade é uma coisa que acaba num piscar de olhos. Depois, o meu filho Gonçalo tinha um ano e, portanto, senti que o diagnóstico de que ia morrer muito rapidamente não se podia confirmar. Fui à procura do que havia de melhor no mundo da medicina. Aguentei um tempo, mas, ao fim de dois anos e meio, estava mesmo a morrer. No casamento do meu irmão Tomás, entro em coma. É então que o meu irmão Sebastião me oferece um rim. Fui operado em Londres há 34 anos. Fiquei bem.

Mas também lhe dizem que pode apenas ter cinco anos de vida. Fez uma lista de prioridades?
Estabilizei os negócios e vendi-os passados esses cinco anos. Depois, viajei com o meu filho e diverti-me.

Agradeceu ao irmão e ao conforto económico. E a Deus?
Esse assunto será resolvido no dia em que morrer.

Rezou?
Rezava ou perguntar porquê? Nunca passei por essa fase. O que não quer dizer que não espere uma agradável, ou desagradável, surpresa no dia da morte.

Foi a fase em que ganhou mais dinheiro. Costuma dizer que o dinheiro não dá poder mas dá liberdade. Liberdade não é poder?
O que quis dizer é que nunca usei o dinheiro para oprimir. O dinheiro deu-me conforto, isso, sim. Desde logo para poder concorrer a presidente de Câmara.

Chegou aos dois dias eleitorais convencido de que ia vencer?
Absolutamente convencido. Na primeira eleição, creio que só eu e o Nuno Santos (chefe de gabinete) acreditávamos.

Não escreveu, então, um discurso de derrota.
Não.

Na segunda eleição, sacudiu o PS. Porque já tinha a maioria absoluta garantida ou porque preferiu arriscar a derrota a partilhar os louros da vitória?
Nesse processo, o que custou mais foi ver-me obrigado a levar o assunto a um ponto que teve como consequência ter de alterar aquilo com que contávamos, eu e a cidade. A cidade estava convencida, tranquila, mérito do Manuel Pizarro e meu. Estava tão tranquila que houve quem quisesse minar o processo. Foi uma tentativa de take over. Como se eu, refém da vontade de continuar, estivesse disposto a ser candidato independente pelo PS. Ora isso eu não queria.

Porquê?
Variadíssimas razões. Não era esse o meu mandato. Nem era esse o nosso projeto. O mérito de haver um movimento independente é esse. Talvez um dia conte essa história.

Num livro?
Por exemplo. Título? 72 horas.

Metódico, abnegado, com um temperamento muito difícil é, sobretudo, muito desconfiado. É assim?
(Risos) Julgo que isso será mentira. Não creio que eu seja assim. Começo sempre por confiar, se assim não fosse não teria conseguido fazer na vida o que já fiz. De uma coisa pode ter a certeza, e essa é a minha costela alemã: para mim, a seriedade é uma ciência absoluta. Ou se é sério ou não se é sério.

“Para mim, a seriedade é uma ciência absoluta. Ou se é sério ou não se é sério”

Tem mais características “alemãs”?
Gosto de discutir as coisas com o meu chefe de gabinete, com os meus vereadores. Mas, estando tomada a decisão, espero que todos remem para o mesmo lado. A política é o campo do contrário. Primeiro, concorda-se com tudo o que o líder diz. Depois, vai-se para casa pensar numa maneira de deitar areia nas rodas. Comigo, o que está decidido tem de ser cumprido.

Tem tido muitos casos desses na Câmara?
Alguns, no primeiro mandato. Tem o caso do Tiago Guedes, escolha de Paulo Cunha Silva para diretor do Rivoli. Deu uma entrevista a criticar o meu antecessor e logo houve uma tentativa de saneamento. Não deixei, claro.

Na Câmara ganhou ou perdeu amigos?
(pausa longa) Primeiro, mantenho os amigos de sempre. Segundo, há um problema com os amigos de ocasião, porque não encontram em mim o presidente de Câmara habitual. Terceiro, o cargo cria algumas inimizades mas cria, sobretudo, uma imensa estima. Tenho muito estima pelas pessoas do Porto, mais até do que tinha porque agora conheço-as melhor.

Perdeu um amigo. Azeredo Lopes.
Tínhamos uma relação de amizade pessoal. A certa altura, decidiu deixar de ser meu chefe de gabinete, o que não me causou nenhum constrangimento, apesar de ter sido na pior altura – a semana em que o Paulo Cunha e Silva morreu. Vim a saber, não por ele, mas mesmo assim entendi. Enquanto foi meu chefe de gabinete foi-me absolutamente leal. A determinada altura, houve alguma coisa de que não gostei. E ficámos assim.

Quer comentar o percurso dele como ministro?
Acho que não é preciso.

Quem ouve para além do “inner circle”, que é, dizem, muito restrito – o chefe de gabinete atual e mais uma ou duas pessoas.
Ouço os vereadores e um conjunto de cidadãos que estiveram comigo, uns desde a primeira hora, ainda antes da minha primeira candidatura, e com quem falo regularmente. Em última instância no WhatsApp. Alguns deles são até muito severos na avaliação. Oiço ainda os meus filhos, também muito críticos, e os irmãos que se interessam por estes assuntos.

A frase “Não queremos vender o Porto como a cidade do fumeiro e do galo de Barcelos” foi um dos erros de mandato?
Foi. Hoje, diria de outra maneira. Porque a questão de fundo faz sentido – Como é que a entidade de Turismo do Porto e Norte faz uma campanha para promover o Porto e o Norte apenas com o fumeiro e o galo de Barcelos, os passeios do Gerês, sem uma imagem do Porto?

A afirmação custou-lhe a possibilidade de ser líder do Norte?
Esse é outro equívoco. Nunca quis nem quero ser líder do Norte. Sempre disse que o Porto não deve querer ser capital de coisa nenhuma. Não há líderes do Norte. A regionalização soçobrou por haver quem achasse que havia grandes líderes do Norte. O meu Porto é o Porto que não quer ser capital de coisa nenhuma. Nem sequer capital do Noroeste peninsular. Nunca ouvi dizer tal coisa na Galiza. Isso foi um sonho.

Falando em Galiza. As referências achincalhantes ao aeroporto de Vigo foram o segundo maior erro do mandato?
Esse terá sido o segundo erro. O erro foi sobretudo ter-me esquecido de dizer ao jornalista que a conversa prévia à entrevista era “off -the-record”. Mas o que eu disse é verdade: o aeroporto de Vigo não tem condições.

Ao não ter declarado devidamente a sua relação à empresa Selminho, pôs-se a jeito?
Não acho. Quando fui eleito, a minha família tinha um litígio com a Câmara que existia há muitos anos. Não pratiquei nenhum ato impróprio e a Selminho tem hoje menos direitos do que tinha.

A Câmara pode vir a ter de indemnizar a empresa. Como vai gerir esse dossiê?
No caso de não se poder construir nos terrenos, tem a Selminho a possibilidade de requer à Câmara uma arbitragem, cujo árbitro será nomeado pelo presidente do Tribunal de Relação do Porto. Quer eu cá esteja quer não. Mas as campanhas sujas são sempre possíveis.

Regionalização e descentralização, duas lutas que lhe são caras. O dossiê Infarmed provou que não basta vontade política central? Ou duvida da vontade política de António Costa?
Não tenho dúvida alguma.

“A regionalização soçobrou por haver quem achasse que havia grandes líderes do norte”

Então o que é que faltou?
Por um lado, há a vontade de todos os intervenientes políticos eleitos e com mandato dos eleitores. Depois, há uma máquina que não permite que essa vontade seja concretizada. É isto.

Como se resolve?
Precisamos é de uma reforma do sistema político para que aqueles que são os eleitos sintam que têm perante o eleitor uma responsabilidade mais direta. Precisamos de um parlamento que represente melhor o eleitor. Isso iria ajudar a garantir que as decisões tomadas fossem cumpridas.

No caso Infarmed, que mais poderia ter feito António Costa?
Dar a ordem. O Infarmed vai para o Porto.

E os direitos adquiridos?
Vivemos numa sociedade “garantida” apenas no que diz respeita à máquina que administra o Estado. Para quem trabalha no Vale do Ave, nada é garantido. O trabalhador perde o emprego de um dia para o outro. Essa máquina foi construída pelo PS e pelo PSD. Os partidos do regime encontraram aí a sua clientela.

A descentralização desenhada na cimeira de Sintra sofreu um revés. Disse mesmo que assim as Câmaras serão apenas tarefeiras, capatazes do governo central.
Existia uma situação muito interessante do ponto de vista da descentralização. Pela primeira vez, tínhamos um primeiro-ministro com experiência autárquica, circunstância que deveria, ou poderia, ter permitido ir mais longe do que se foi. Portanto, quando vejo chegar ao poder alguém que eu conheço, por quem tenho apreço pessoal, com quem partilhei muitas ideias, com quem falei tantas vezes sobre estes temas e sobre os quais estamos em concordância (há outros em que não), um amigo, pensei ‘isto vai’. Empenhei-me muito e fizemos a cimeira de Sintra com medidas a custo zero, documentos estratégicos, pompa e circunstância. Até que se ouve dizer que o PSD de Rui Rio terá feito um acordo. Liguei para amigos autarcas, alguns, já não muitos, ainda são do PSD, e com eles ninguém tinha falado. Achei estranho. Rui Rio é uma pessoa muito clara, mas, de facto, devia ter alguma informação que nós não compreendíamos. É então que vejo o acordo com a Associação Nacional de Municípios. Já que não gostam que o chame miserável, digo que é pífio.

António Costa também aproveitou.
Compreendo que quem lidera um governo minoritário, de um partido que não ganhou as últimas eleições e que está a um ano de legislativas, se tente se de repente lhe aparecer o maior partido português a concordar com tudo, num ato de submissão. Tática é tática e o meu amigo António Costa é muito bom na tática.

Que outras virtudes lhe aponta?
É uma pessoa muito inteligente, muito hábil, que pensa bem o país.

Perante o que se passou, o que lhe apetece fazer?
Dizer assim não. Isto não é descentralização alguma e não foi isto que foi combinado em Sintra. Tudo faremos para não a levar a cabo. Quando perguntaram a Rui Rio o que tinha a dizer sobre os meus comentários, respondeu algo extraordinário: não tem de que se queixar porque se eles quiserem só se aplica em 2021 e nessa altura já haverá outros presidentes de câmara. Bem, até posso estar cá se quiser. Por outro lado, o que ele devia dizer era “a solução é tão boa que as pessoas deviam querer que fosse já implementada”.

Regionalização para quando?
Talvez nunca venha a haver regionalização. Sabe porquê? Porque o cidadão comum desconfia da administração que gere o Estado central, do tal centrão. Desconfia dos políticos, achando que são incapazes de dominar a máquina. Acha, portanto, que mais regionalização é mais tacho. E estamos a dar-lhe razão quando não conseguimos transferir o Infarmed.

Qual é a obra do regime?
A cultura em expansão. Levar a cultura a todo o lado. Foi isso que eu quis fazer. Aliás, há uma obra emblemática, o matadouro municipal, que cristaliza o nosso pensamento estratégico unindo os polos social, cultural e económico. O pavilhão Rosa Mota estará pronto em abril. No Bolhão, a obra está a decorrer.

O turismo está já a fazer mal às cidades?
A democratização e a massificação do turismo representam um movimento tal que não podia deixar de ter reflexo nas cidades. Isso obriga a instrumentos regulamentários que as cidades têm de desenvolver. Também percebemos que as cidades são atreitas a fenómenos de gentrificação em resultado de muito mais do que o turismo. Migrações, enriquecimento rápido, terciarização são algumas das causas. Dito isto, não foi o turismo que esvaziou as cidades. O centro histórico do Porto desertificou antes de chegar cá um turista. Uma cidade bem preparada e bem planeada é capaz de receber turistas e não se deixar gentrificar.

O que fez para obstar ao impacto do turismo?
A regulamentação do transporte turístico no Porto, ao definir que não podem andar quando querem, onde querem. Foi uma medida com um impacto enorme.

O que vai dizer de si a história do Porto?
Gostaria que ficasse uma coisa: que é possível termos cultura na cidade, olhada com respeito e que envolve todas as pessoas. E que é possível com boas contas.

Na primeira eleição teve a ajuda de Rui Rio. Receou que o preço fosse a presença tutelar dele na Câmara?
Primeiro, diria antes que Luís Filipe Meneses teve a desajuda de Rui Rio, facto me trouxe uma vantagem, não nego. Segundo, não receei porque não o iria permitir. De resto, ele nunca tentou.

Porém, hoje não se falam.
Se o encontrar, cumprimento-o. Nunca fui amigo pessoal de Rui Rio, almoçámos a sós uma única vez, a convite dele, para passagem de testemunho. Nunca jantei com ele a sós.

O presidente da Câmara e o presidente do PSD não deveriam ter tido já um encontro, uma conversa?
Peço desculpa, eu já cá estava. E a morada do meu local de trabalho é conhecida.

Há quem encontre em ambos semelhanças no feitio. O que o distingue de Rui Rio?
Do que conheço dele, quase tudo.

Como o avalia politicamente?
Fez um percurso inesperado na Câmara do Porto. Fui dos poucos a acreditar que ele venceria. Quando o disse na televisão, os outros comentadores, julgo que Carlos Magno e Paulo Rangel, desataram a rir.

Que pensa do PSD de Rio?
Não me peça para falar sobre partidos. Não faz parte da minha esfera e não quero.

Comenta-se que poderá aderir ao Aliança de Santana Lopes.
Nem a esse partido nem a outro qualquer. Nunca farei parte de um partido político. Entendo que os movimentos independentes, como o nosso, não devem envolver-se nas questões partidárias.

Podem, no entanto, ter um papel nacional.
Não o queremos.

Há espaço político para esse movimento?
Há espaço para que os partidos políticos compreendam que as tradicionais divergências ideológicas estão atenuadas de tal maneira que, para manterem as diferenças, vão ter de olhar para as preocupações que hoje estão presentes na vida dos cidadãos e que devem levar a interpretar um novo programa político. Nesse processo, serei apenas espetador e eleitor.

Ainda que sem si, o movimento que o levou a presidente não poderá ganhar âmbito nacional?
Acho que não deve. Deve ficar naquilo que é o Porto. Mas é livre. Pela minha parte, não lidero um processo desses, não estou interessado.

Não gostaria de ser o Macron português?
É um sound-bite engraçado, mas não estou interessado em sê-lo. (risos) Escrevi em 2009, num dos meus livros: quero ficar no Porto, quero viver no Porto. Repito, não vou fazer nenhum movimento político nacional, não vou inscrever-me em nenhum partido e não quero fazer coisa nenhuma que me tire da minha cidade. Gosto muito de viver no Porto. Quero viver com os meus filhos e com os meus netos nesta cidade incrível.

Por isso recusou o convite de Paulo Portas para ser cabeça de lista pelo CDS às eleições europeias e o de Durão Barroso para uma secretaria de Estado? Ou foi por achar que eram cargos menores?
Recusei por querer ficar no Porto. Quero estar no Porto. Pensem nisso quando pensarem no meu futuro.

O futuro passa por um terceiro mandato?
Já disse o que posso e devo dizer nessa matéria. A minha intenção – e foi anunciada antes destas eleições – era em princípio estar a candidatar-me para o segundo e último mandato. Mas há um conjunto de coisas que gostaria de deixar realizadas ou tendo a certeza de que nessas matérias haverá continuidade.

Está a preparar a sucessão?
Quem prepara sucessores são os reis e eu até sou monárquico. Mas, se perguntar se tenho pessoas próximas capazes de darem bons presidentes, digo que sim.

Não quer dar exemplos?
Não.

O que o faria interromper o mandato? Uma candidatura à presidência do F. C. Porto?
Quero cumprir o meu mandato. Hoje é a câmara. A partir daí não sei. O F. C. Porto está muito bem presidido. Gosto muito do presidente.

Gostaria de ser presidente do F. C. Porto?
O que vai acontecer daqui a uns anos não sei. Um adepto de futebol quer ser jogador, depois quer ser treinador, depois quer ser presidente. Hoje, sou presidente de câmara com mais três anos de mandato. Terei 65 anos quando terminar o mandato. Tenho livros para escrever, gostaria de voltar a viajar, a fotografar.

Qual é o símbolo maior do Porto?
O coração de D. Pedro. O símbolo da liberdade. O símbolo da cidade que se deixou cercar pela liberdade.