Os perigos de criar um filho troféu

Os pais querem sempre o melhor para os filhos e sentem orgulho das suas conquistas. Mas numa sociedade cada vez mais exigente e competitiva há excessos. E muitos pais obcecados por fazer dos seus filhos «os melhores». Resta saber em quê e a que custo. Quais os perigos de criar uma criança-troféu?

Quando Joana chegou a casa, feliz por ter arranjado o primeiro emprego depois terminar o curso de Design, a mãe ficou um momento em silêncio. Depois levantou os olhos para a filha e, enquanto abanava a cabeça, disse: “Tanto dinheiro gasto na tua educação para acabares a fazer bonecos no computador.”

O padrão começou na infância e manteve-se na vida adulta. Tudo o que Joana fez, disse e foi ao longo dos 25 anos de vida nunca satisfez a mãe: porque era a segunda melhor da turma “mas tinha condições para ser a primeira”, porque não estudava piano com empenho suficiente para brilhar no recital da escola, porque as roupas de marca lhe assentavam mal na barriga – “que devia ser mais pequena” –, porque devia ter seguido Medicina ou “outro curso de jeito”, porque o namorado ganha “apenas mil euros por mês”.

“A minha mãe sempre teve expectativas impossíveis. Lembro-me de ter Muito Bom nos testes da escola e de ela ralhar por não ter tido Excelente. Chegava a ir à escola para saber junto da professora quais tinham sido as notas dos outros.”

Quando a nota de Joana era a mais alta, isso aplacava-lhe a fúria, mas quando havia notas superiores, a filha tinha de a ouvir a falar sobre isso com cara feia. Pelo contrário, qualquer sucesso da filha era contado e recontado às amigas por muito tempo. “Exibia os meus sucessos como se fossem dela. Mas não contava que, nas férias de verão, além do descanso e brincadeira, havia horários para exercícios de preparação para o ano seguinte quase todos os dias.”

Há pais que parecem empenhados em fazer da sua criança “a melhor”, aplicando-lhe doses intoleráveis de pressão para que estejam à altura das suas expectativas. A terapeuta Margarida Vietez chama-lhes “pais invasores”

É natural que os pais queiram o melhor para os filhos e isso pode implicar reivindicações ou exigências, sobretudo quando são mais pequenos. Mas há pais que parecem empenhados em fazer da sua criança “a melhor” em determinadas áreas, aplicando-lhe doses intoleráveis de pressão desde pequenos para que estejam à altura das expectativas que eles próprios têm.

Aos progenitores com este perfil a terapeuta familiar Margarida Vieitez chama “pais invasores”. “Ainda que de forma impercetível e não consciente, sentem necessidade de se realizarem, autoafirmarem e validarem através dos seus filhos” esclarece. Por detrás destes desejos e comportamentos pode estar a vivência de uma experiência idêntica com os seus progenitores, a frustração e a baixa autoestima.

Estas comparações e competições exageradas quase nunca têm que ver com os filhos, têm que ver com as mães (ou pais): não estão a comparar os filhos, estão a comparar-se entre si

Embora no caso de Joana seja óbvio que as exigências da mãe ultrapassam a linha traçada pelo mais elementar bom senso, há muitos casos, talvez a maioria, nos quais as fronteiras são mais difíceis de definir: onde é que acaba o natural orgulho pelas conquistas dos filhos e começa uma espécie de objetificação pouco saudável das crianças?

Margarida Vieitez não tem dúvidas: “Quando o orgulho se transforma em obsessão e tem consequências no bem-estar emocional, psicológico e físico dessas crianças, que passam a validar-se a elas próprias pelo sucesso ou insucesso nas atividades que os pais as pressionam a realizar. Para terem o amor e a aceitação dos pais deixam de ser quem genuinamente são e passam a ser o que os pais as obrigam a ser.”

A obsessão com o sucesso dos filhos é mais óbvia no percurso académico, mas basta passar os olhos por um fórum online sobre parentalidade para perceber que isto não começa na idade escolar. Por cada mãe que pergunta “O meu filho de 5 meses não devia já manter-se sentado sozinho?”, há vinte que saltam a dizer que o seu, com essa idade, já gatinhava.

“A sociedade está mais atenta e preocupada com as crianças, e isso faz que, dentro da própria família, elas tenham vindo a ocupar um lugar cada vez mais central”

Se uma partilha preocupação pelo facto de a filha de ano e meio ainda não falar, aparece meia dúzia com listas intermináveis de tudo o que os seus, quatro meses mais novos, já dizem. Não, esta competição não começa na escola, começa no nascimento. E é tão feroz que até o número de dentes de leite que cada bebé já tem pode contar nesta espécie de corrida às crianças precoces.

A psicoterapeuta Catarina Mexia não se espanta com disto. Por um lado, concede que estabelecer comparações é natural e que as mães sempre o fizeram para aferir o desenvolvimento das crianças, mas por outro admite que “algumas mães podem perder a noção do razoável quando se trata de comparar os feitos das suas crianças”.

Não acredita que o fenómeno seja de agora – os fóruns e as redes sociais só lhe vieram dar maior visibilidade – e defende que não é por acaso que é mais coisa de mulheres do que de homens. “Esta competitividade é muito alimentada pelo facto de, às mulheres, sempre lhes ter sido exigido o melhor: ser melhores mães, melhores donas de casa, melhores mulheres, melhores profissionais.”

Porque, na realidade, aquilo que podia parecer um orgulho exacerbado nas crianças pode ser mais do que isso. Estas comparações e competições exageradas quase nunca têm que ver com os filhos, têm que ver com as mães: as mães não estão a comparar os filhos, estão a comparar-se umas com as outras.

“A minha mãe fez que a minha infância fosse pouco feliz e, ainda hoje, estar com ela suga-me a energia e a felicidade”
Joana

“Estas mães julgam a aquisição de competências dos seus filhos como resultado de um feito seu, em vez do caminhar normal da natureza, transformando os seus filhos em troféus. A lógica delas é: eu serei tão melhor mãe quanto mais depressa o meu filho se desenvolver!”

Margarida Mesquita, socióloga do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), concorda. E acrescenta que como hoje a expetativa não é que os filhos tenham trabalho, mas antes que tenham uma carreira, essa carreira começa, precocemente, no jardim-de-infância.

“O objetivo do jardim-de-infância é que a criança aprenda a saber estar e a saber ser, e muitos pais exercem pressão junto dos educadores para que os filhos aprendam a ler e a escrever”, diz a socióloga. “E é isso que contam aos amigos com orgulho, valorizando imenso os aspetos relacionados com o desenvolvimento cognitivo da criança e pouco as outras competências.”

Os pais raramente perguntam às educadoras se o filho ajuda os amigos ou se a filha espera pela vez dela para falar. No fundo, quando os filhos são os melhores da turma, isso é tido como um sinal de que os pais estão a cumprir bem a sua função. “É lido assim. Porque a sociedade valoriza os resultados, não o esforço.”

Longe vai o tempo em que se ouvia expressões como “onde comem dois comem três” ou “tudo se cria”

As mães e os pais não são extraterrestres. O comportamento individual resulta de uma tendência coletiva. Longe vai o tempo em que se ouvia expressões como «onde comem dois comem três» ou «tudo se cria».

Hoje o discurso é diferente. Criar e educar uma criança implica uma série de pressupostos que não implicava há umas décadas. E, efetivamente, garante a socióloga Margarida Mesquita, educar uma criança é hoje muito mais exigente e complexo do que era no passado.

“Isso tem que ver com o lugar que a criança foi ocupando na sociedade, com o desenvolvimento dos seus direitos e com a própria pesquisa científica sobre o seu desenvolvimento. A sociedade está mais atenta e preocupada com as crianças, e isso faz que, dentro da própria família, elas tenham vindo a ocupar um lugar cada vez mais central.”

A exigência na perfeição dos filhos é, em muitos casos, fruto da exigência na sua própria perfeição. Pais que ambicionam a excelência para si são pais que fazem uma transferência dessa exigência para os filhos, em jeito de retorno do grande investimento que fazem neles.

E isso leva a desgaste, frustração, stress e problemas de saúde mental que são maus para toda a família. E para a relação. Joana que o diga. “A minha mãe fez que a minha infância fosse pouco feliz e, ainda hoje, estar com ela suga-me a energia e a felicidade”.