E se pudéssemos arrumar também as pessoas em categorias?

Notícias Magazine

Aqui ficam as pomadas. Pomada para as borbulhas, pomada para as assaduras, pomada cicatrizante, pomada para queimaduras, pomada para as nódoas negras, vaselina, pomada que não sei para que serve mas ainda está no prazo de validade e por isso guardo, pomada para isto, pomada para aquilo. Guardadas dentro das caixas, claro.

Não só para serem mais fáceis de identificar mas também porque, por terem ângulos retos, são fáceis de arrumar. É o mesmo princípio das caixas do Ikea. Nisso, os suecos têm razão. Se as caixas não tiverem curvas arrumam-se melhor nas bagageiras dos carros – e nos armazéns deles – e transportam-se melhor. E eu segui esse princípio na caixa onde guardamos os medicamentos lá de casa.

Num dos últimos dias do ano que acabou fui atacado por um surto de arrumação e dei por mim à uma da manhã a arrumar pomadas. Era para o fazer com os xaropes, farto de os ter alinhados em fila em cima da bancada de madeira da cozinha, encostados à parede. Parecia uma farmácia, mas de feira. Comecei pelas pomadas, separei para um saco as que estavam fora de prazo, arranjei o espaço necessário e depois sim, atirei-me aos xaropes.

Analgésicos, anti-histamínicos, anti-inflamatórios, foi tudo para o sítio. Também nas caixas, pelas mesmas razões. Perto das três da manhã ataquei o que não é líquido: pós e comprimidos. Tudo o que se apresenta em bisnaga e em frasco já estava, só faltava o que vem em saquetas e lamelas. E esses sim, separados por categoria. Para proteger o estômago, para baixar a febre, para regular a flora intestinal, para hidratar em caso de diarreia ou vómito, para isto, para aquilo. Para tudo e mais alguma coisa.

Não, eu não tenho uma perturbação obsessivo-compulsivo (e escusam de dizer «tens, tens, não está é diagnosticado»). Eu tenho é a mania de organizar coisa quando fico stressado de as ver fora do lugar. Mesmo que isso acabe quase às quatro da manhã.

Nessa semana entre o natal e a passagem de ano, a família ficou toda doente e eu dei por mim em casa com a minha mulher e as duas filhas de molho. Febre, ranho, tosse, aquecedores ligados e xaropes. Muitos xaropes. E comprimidos. As filhas estavam a querer atenção da mãe, às vezes do pai, a mãe queria muito ter minutos de sossego, sem gritos e choradeiras e crianças coladas a pressionar-lhe os pulmões. E eu só queria é que elas estivessem todas bem, sorridentes e bem dispostas, e fazia o que fosse preciso para as manter animadas. Acho que nem sempre consegui.

Para soltar a tensão, o que me lembrei de fazer? Se não posso cozinhar, arrumo. Cada um com a sua tara. Esta é a minha. E, com isso, dei por mim a pensar que seria bom se pudéssemos fazer isso também com as pessoas. Essas, as de carne e osso. Os seres humanos, mesmo. Quando estivéssemos stressados, tensos, enervados, já que não as podíamos cozinhar, era bom se as pudéssemos arrumar.

Colegas, amigos, família, gente próxima ou mais afastada. Todos arrumados por categoria ou por necessidade nossa. As pessoas de que precisamos para desabafar. As pessoas em quem precisamos de confiar. As pessoas em quem não podemos confiar. As pessoas que não são de confiança, por muito que digam o contrário. As pessoas que estão sempre lá. As pessoas que nós gostaríamos que estivessem sempre lá. As pessoas fora de validade, também.

Todas arrumadas, não precisava de ser dentro de caixas para ser mais fácil, mas em grupos, para onde pudéssemos olhar e ver tudo devidamente ordenado. Se precisarmos delas, estão lá.. Se precisarmos de espaço, deixamo-las estar sossegadas. Também se podia dar o caso de eu estar doente e ter delirado. Mas juro que isto me passou pela cabeça. E achei que era uma excelente ideia.