Portugal está no coração de Santiago de Compostela

Texto Ana Peixoto Fernandes | Fotografias Rui Ferreira/Global Imagens

Marinha é o nome português da primeira filha de Miguel Penas, o chefe de gabinete do Concello (Câmara Municipal) de Santiago de Compostela. E não foi escolhido por acaso. Com a anuência da mulher, mãe da menina com 6 meses de idade, o político quis homenagear uma língua e um país que defende também serem, de certa forma, seus. Pelo idioma oficial, o castelhano, a bebé de grandes olhos verdes chamar­­-se-ia Mariña, como tantas outras, já que é um nome bastante comum em Espanha.

«Gostei, porque assim posso escrever o nome dela com “nh”, como se fosse em galego, em vez do “ñ” (castelhano). Vamos ver o que opinará ela no futuro, mas se não gostar também poderá mudar», comenta Miguel, relatando que depois do batismo da filha já conheceu em território galego «outra Marinha, com o “nh”». «Depois investiguei e descobri, no âmbito religioso, que na Galiza há muitas Santa Marinha, e que não há tantas, mas também as há em Portugal, quase todas no Norte.»

«Portugal está presente em toda a Galiza, mas de todas as cidades galegas, Santiago de Compostela é que está mais avançada. A nossa opção política é que a cultura galega e portuguesa têm mais do que afinidade. São basicamente a mesma», diz Miguel Penas.

Para aquele político, que diz sentir ­se «como em casa» do lado de cá da fronteira, «o português é imprescindível no processo histórico de restaurar a língua (galega)». «Para mim, neste momento, estamos a falar a mesma língua. Não estou a dar uma entrevista internacional. Até compro jornais portugueses», diz.

A escolha do nome de batismo de Marinha traduz bem um sentimento que é comum em muitos galegos e que transborda de forma marcante na vida da cidade capital da Galiza. Há todo um Portugal para descobrir no coração de Santiago. À raiz da proximidade linguística e geográfica, mas também de questões históricas e políticas profundas, a alma lusa foi ­se instalando.

Antón Pedreira, proprietário da livraria Pedreira, considera Santiago de Compostela a cidade mais portuguesa da Galiza e tem na sua livraria uma secção dedicada à literatura do país irmão.

Da música à literatura e ao teatro, da arquitetura à gastronomia, as pegadas portuguesas estão lá e há quem, como Antón Pedreira, proprietário da livraria Pedreira, considere Santiago de Compostela «a cidade mais portuguesa da Galiza». No seu estabelecimento, com 37 anos de existência, os autores portugueses têm direito a secção própria e espaço para apresentar as suas obras. João Tordo passou por lá em dezembro, para divulgar o livro Biografia Involuntária dos Amantes (2014), cuja ação decorre, precisamente, na Galiza.

«Nunca deixei de vender autores portugueses. Vendo muita literatura africana, Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Ondjaki, e peninsular também. Apreciam muito José Saramago. Dentro da clássica continua a vender ­se Fernando Pessoa. E também tenho muita literatura infantil», diz Antón.

A música na língua de Camões entra na seleção musical dos bares e na programação de espetáculos. Artistas como António Zambujo, Ana Moura, Mariza, Deolinda, The Gift, João Afonso, Madredeus, Dulce Pontes, Jorge Palma e Gaiteiros de Lisboa são aplaudidos pelo público galego.

«Portugal para a Galiza é uma referência permanente, na gastronomia, na cultura, no ser. Se calhar há uma história que nos caraterizou de forma diferente, mas temos a mesma alma», comenta Vítor Belho.

O chefe de gabinete, cuja filha Marinha é símbolo deste laço afetivo com Portugal, adianta que «Santiago tem uma longa tradição de programar e tem público para as propostas portuguesas». «No ano passado tocou no auditório municipal o António Zambujo. Há dois anos o concerto de abertura das festas da cidade foi com os Deolinda. Tem vindo cá a Dulce Pontes, a Mariza, Camané e outros grupos», descreve, considerando que «Portugal está presente em toda a Galiza, mas de todas as cidades galegas, Santiago de Compostela é que está mais avançada». E sublinha: «A nossa opção política é que a cultura galega e portuguesa têm mais do que afinidade. São basicamente a mesma cultura».

Na zona histórica compostelana, nos bares, além da música portuguesa, serve‑se cerveja Super Bock (a preta sem álcool é a mais apreciada) e vinho do Porto. E há mesmo um bar de música ao vivo, o Casa das Crechas, cuja programação inclui projetos (mais ou menos conhecidos do grande público) em português.

«Portugal para a Galiza é uma referência permanente, na gastronomia, na cultura, no ser. Se calhar há uma história que nos caraterizou de forma diferente, mas na essência fazemos parte da mesma alma», comenta Vítor Belho, um dos fundadores da empresa promotora de espetáculos Nordesía, com sede em Santiago, e da Casa das Crechas, com um mini auditório de oitenta lugares, onde já atuaram desde António Zambujo a Júlio Pereira, Fausto, João Afonso, Amélia Muge ou Brigada Victor Jara, «e outros nomes não tão conhecidos», afirma quem já organizou «mais de duzentos concertos de artistas portugueses em Espanha».

O bar Avante, no centro de Santiago, deve o nome à festa do Partido Comunista Português.

Espaço referência da vida noturna compostelana é o bar Avante, fundado há 22 anos pelo galego Suso Irago Pereira, um indefetível da festa do PCP. «Fui pela primeira vez em 1978 e fiquei enamorado da festa do Avante. Nunca mais deixei de ir», conta.

Na noite em que a NOTÍCIAS MAGAZINE entrou no espaço (sem aviso prévio), ouvia ­se Não Sou o Único, dos Xutos & Pontapés, e muita da clientela bebia Super Bock. «É raro o ano em que, em maio ou junho, não venham aqui visitas de estudo de Portugal. Vêm sempre grupos de quarenta e cinquenta miúdos com os professores e ouvem aqui música que em Portugal não ouvem», conta Suso.

A escassos metros, o bar Tarasca, gerido por Carlos Morais, encerra, todas as madrugadas, com a mesma música. «Desde 1994 que fechamos com a Grândola, Vila Morena. Encerramos às 04h30 e aí pelas 04h27 começa a tocar», conta Carlos.

a febre portuguesa tem um nome: Uxía (cantora galega). «Foi ela que começou a trazer cá músicos de fado», diz Suso. Uxía é também apontada por Miguel Penas como «uma embaixadora da Galiza em Portugal e de Portugal na Galiza».

Junto à Catedral de Compostela, a loja Turisquel Artesania vende música (apenas) portuguesa e galega. Xanana Salgado, a proprietária, explica: «Por gosto pessoal, mas também para a dar a conhecer, porque há um grande interesse. Somos apaixonados pela música portuguesa.» «Há quatro coisas que se vendem muito: Madredeus, Deolinda, Ana Moura e Mariza. Gisela João e Celina da Piedade, embora não sejam tão conhecidas aqui, quando as pessoas ouvem, compram», comenta, dizendo ­se «grande apreciadora da música da família Sobral [Salvador e Luísa]».

«F…se, pá!». É desta forma que Jesus Manuel Cascallar (Suso para amigos e clientes habituais) gosta de receber os portugueses seus conhecidos no restaurante Dezaseis, situado na zona histórica de Compostela.

Paulo Rico, da associação cultural Gentalha do Pichel, de defesa da língua galega, diz que ali «os cursos de português estão sempre cheios» e que «Zeca Afonso é um super ­herói» para as crianças da escola infantil A Semente. «Todas cantam a Grândola Vila Morena», diz.

No telemóvel, guarda fotografias e histórias para contar tem muitas. Fã da canção Cucurrucucu Paloma, celebrizada por Caetano Veloso no filme Hable con Ella, de Pedro Almodóvar, Suso mostra emocionado um vídeo de Zambujo a cantar e a tocar o tema na viola, desejando ­lhe no fim um feliz aniversário. E solta uma gargalhada quando lhe perguntamos pelas histórias. «Algumas não se podem contar», diz.

Os portugueses gostam de comer e beber bem, e, por vezes, as noites prolongam ­se até ao raiar do dia. «Uma vez perguntei à Mariza: porque não canta a Lágrima? E ela respondeu-­­me: porque não me deito com penas nem com penas me levanto.»

A cantora galega Uxía é tida como a grande embaixadora de Portugal na Galiza e vice-versa.

Segundo Suso, a febre portuguesa tem um nome: Uxía (cantora galega). «Foi ela que começou a trazer cá músicos de fado. Uxía, também apontada por Miguel Penas como «uma embaixadora da Galiza em Portugal e de Portugal na Galiza», foi figura central da IV Semana Cultural Convergências Portugal ­Galiza, que decorreu em Braga, Padrón e Compostela e juntou ­se em palco ao grupo português Canto d’Aqui e à Banda Municipal de Santiago de Compostela.

Depois do concerto de encerramento, em entrevista à NOTÍCIAS MAGAZINE, Úxia garantia: «Portugal está muito presente aqui na Galiza. Se calhar muito mais do que os portugueses pensam. E em Santiago está de uma forma especial, sobretudo através da música. A música é muito poderosa nesta relação além­ Minho e nisso o Zeca Afonso foi pioneiro.»

Paulo Rico, da associação cultural Gentalha do Pichel, criada há quinze anos para defesa da língua galega, conta que ali «os cursos de português estão sempre cheios» e que «Zeca Afonso é um super ­herói» para as crianças dos 2 aos 6 anos da escola infantil A Semente. «Todas cantam a Grândola Vila Morena», diz.

Na Avenida de Lugo, em Santiago, a gastronomia portuguesa é rainha. O restaurante Mira Santiago enche a sala de galegos com bacalhau e francesinha. «Viemos para aqui em maio, mas já vamos abrir outro maior. Quisemos fazer uma experiência para ver até que ponto funcionava e percebemos que podemos dar cartas. O bacalhau à moda portuguesa para eles é tudo», explica o gerente português Filipe Monteiro, de 32 anos, que joga futebol no clube Vistalegre da segunda divisão regional galega.

O restaurante deverá transformar-­­se, no futuro, num empreendimento com alojamento turístico. Para já vai fidelizando clientes. Pepe Beiro, com 72 anos, antigo proprietário de uma enoteca que vendia vinhos portugueses na cidade, é um deles. «O galego gosta muito da comida portuguesa, mas tem uma predileção pelo bacalhau. Costumo ir a Monção e a Melgaço comê-lo, e agora venho aqui», diz.

O TRAÇO DE SIZA E O PARQUE DE ZECA

Na rota portuguesa de Santiago, a arquitetura também tem um traço forte. A obra de Siza Vieira está presente na zona urbana, com dois edifícios emblemáticos, o Centro Galego de Arte Contemporânea (1988-93), e a Faculdade de Ciências da Comunicação (1992-2000). E também na sua participação na recuperação do Parque de San Domingo de Bonaval
(1989-2000), um antigo cemitério, datado de 1847, em parceria com a arquiteta Isabel Aguirre. O cantor luso José Afonso (Zeca Afonso) que, nos anos 1970 e 80, pisou chão compostelano, deixando na memória dos galegos vários concertos e uma canção típica da Galiza, Achégate a mim Maruxa, dá nome a um parque natural numa das zonas nobres da cidade.