Portugal no coração e na mala do porão

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Texto de José Miguel Gaspar

Ana Rita Ribeiro é nova, tem 31 anos, mas viaja à moda antiga: há 15 horas seguidas que vem atrás do volante do Yaris amarelo mostarda e o carro tem um autocolante colado com brio acima da matrícula francesa que diz, verde e rubro, “Portugal com orgulho”. Não vem sozinha, Ana Rita, no carro carregado traz o filho de oito anos, o António, e noutro carro vem um casal amigo, a Ana Elizabete e o Luís Félix, mais os dois filhos pequenos deles.

Estão quase no fim da longa linha de 1547 quilómetros que separa Grenoble, no sudeste alpino francês, da vila portuguesa de Sátão, em Viseu, onde o casal amigo vai ficar e ela e o filho vão pernoitar para no dia a seguir abalarem para a casa da família, mais 300 quilómetros, em Lisboa.

Agora estão todos com ar vago, meios moídos, estafados, os petizes agitados, mas olhos a cintilar, a sair do supermercado E Leclerc, lado de cá da fronteira de Espanha, em Vilar Formoso, vila raiana da Guarda que é a principal fronteira terrestre de Portugal onde param muitos viajantes, apesar de legalmente já não ser preciso parar.

Pedro Correia

É uma estafa, diz Ana Rita a ajeitar uma mecha de cabelo anelado e a tocar no pequenino piercing que lhe brilha no lado esquerdo do nariz. É a primeira vez que vimos de carro, antes já viemos de camioneta e também de avião, é uma estafa, rediz ela, nem é mais barato do que o avião, há a gasolina, as portagens, um dinheirão, é cansativo vir a conduzir mas tínhamos muita coisa para trazer.

Ana Rita emigrou para França, o maior bastião da nossa emigração, temos lá 621 mil emigrados, ela tem lá pai, mãe, irmã, muitos sobrinhos, todos em Grenoble, fica logo abaixo de Lyon, foram eles que a chamaram quando ela se viu desempregada, e separada, foi logo, já foi em 2011. Teve vários trabalhos, cuidou de idosos, esteve ao balcão numa loja dos 300, agora é empregada fabril, faz sapatos e botas para a Paraboot. A vida é melhor lá, o salário, a assistência, os planos de saúde, é tudo muito melhor que cá, ganho para aí o triplo, diz Ana Rita, que não tem planos para voltar já.

Ela e o filho, não é casada, o namorado ficou na França, chama-se Moisé, é assim, Moisé sem S, é filho de portugueses, vão ficar cá de férias três semanas, praia, passear, matar saudades, e depois regressam no carro, outra vez carregados – aí, diz ela, havemos de levar muita coisa da terra, é o que levam todos, não é?, chouriços, presunto, queijos, acho que até vamos levar couves e bacalhau, sim, o Natal vai ser outra vez lá -, outra maratona de 15 horas a conduzir, é bom para eu praticar, diz Ana Rita, jovial, tirou a carta só há cinco meses, tirou-a lá, foi mais fácil do que em Portugal.

É profundamente portuguesa, não quis saber da França campeã do Mundo de futebol, saiu no fim de semana dos festejos, fugiu do feriado da Bastilha, sou portuguesa, Portugal é a minha única seleção, está sempre no coração, há dois anos quando lhes ganhámos o Europeu é que foi, foi o máximo, não contavam nada perder, bem feito, depois ignoraram-nos, são snobes até no futebol, diz Ana Rita, grata por já estar em Portugal.

Sara e Clara são da nova geração, vêm de Paris de avião
Olha as minhas princesas!, solta Elvira e levanta os braços e apressa o passo para a porta das chegadas do aeroporto do Porto, finalmente já estão cá, deem-me lá dois beijinhos, diz ela toda aberta a sorrir. Elvira é a avó, Clara e Sara são as netas, 17 e 18 anos, também lá está o avô, Casimiro Pereira, são da Póvoa de Lanhoso, vila minhota castiça de Braga, e as netas estão a chegar, por acaso muito atrasadas, no voo Z-1315 da Aigle Azur que veio de Paris-Orly.

E no exato momento dos abraços levanta-se um grande rumor, a França, que estava a jogar a final do Mundial, marca o quarto golo à Croácia, há ali gente muito nervosa a ver o jogo na TV, e o ar enche-se de urros e suspiros estarrecidos e Sara enfia no pescoço do avô um colar de flores azuis e vermelhas da sua segunda seleção. É, diz ela, a primeira é Portugal, claro, sempre, mas é lá em Paris que vivemos, diz ela com o sotaque de quem já nasceu por lá.

André Rolo/Global Imagens

Ela e a irmã Clara, que só cá vêm uma vez por ano, estão a tirar línguas e assistência social e falam melhor francês que português. São emigrantes da nova geração, vêm sempre de avião, mas vivem nas costas dos que foram antes delas, os pais e os avós, os primeiros foram em 1965, no auge da migração, foi Casimiro, depois Elvira, em 71, emigraram três semanas depois de casar, casaram na Capela do Sameiro, agora têm lá três filhos que lhes deram nove netos. Já se reformaram, os avós, passam oito meses cá, os outros quatro lá, em Lanhy, é a 70 quilómetros de Paris, é lá que a família está.

Mas estar em Portugal é melhor, gosto mais, diz a Sara, o avô concorda, a avó não, tenho lá a família toda, lá é que estão os netinhos do coração, diz a mulher, e diz ainda que os franceses são mais egoístas, nós somos mais humanizados, e Elvira conta que as netas, que são vistosas, bem vestidas, maquilhadas, abrem muito os olhos mas pouco falam, vão cá ficar um mês, agosto quase todo, regressam quando as aulas estiverem a começar, agora só pensam no verão, vai ser azul, há lá na Póvoa um novo bar, é o Saibre, é no Horto, em agosto é um mar de gente, é a loucura, esperemos que o verão chegue depressa porque aqui está a tardar a chegar.

Diana mudou de vida e agora todos a vão invejar
Andemos para trás: no início de março, Diana estava no B Social Club, em Espinho, a tirar fotos cheias de riso e de amigos, numa das suas visitas frequentes a Portugal. Uns dias depois, posta nuns stilettos cor-de-rosa albardeira, passeava pelo Dock Cultural District, distinta zona de Abu Dhabi onde fica o luxuoso Louvre dos Emirados, país do Golfo onde agora mora.

A meio desse mês tirou fotos que pôs no Instagram debaixo da neve de Leytron, na Suíça, e depois meteu outras a esquiar. Ainda no mesmo março, com oito dias de intervalo, chegou a Kuala Lumpur, a maior cidade da Malásia, e partilhou fotos charmosas em biquíni. Desde aí, passou pelas Maldivas, no Índico, Lagos, na Nigéria, Sydney, na Austrália, Frankfurt, na Alemanha, e voltou entretanto a Abu Dhabi.

É um mês normal para Diana Mota, 33 anos, que nasceu e tem família na Feira, agora conhece um país novo por semana, é assim desde 2013, quando ficou sem emprego no Porto, era designer de comunicação, tinha vista para o Cais das Pedras, e para o verde Douro, mas o emprego desapareceu e na área ninguém andava a contratar. Na desportiva, diz ela, concorreu a hospedeira da Etihad Airways, a companhia aérea dos Emirados Árabes Unidos, país onde estão registados 2400 portugueses, e ficou. Não sou estritamente emigrante, diz ela, agora sou nómada, é isso.

DR

Foi a melhor decisão que podia ter tomado, diz Diana, que é bonita como Yvonne DeCarlo, como Audrey ou Pier Angeli, viajo para todos os continentes, conheço gente nova todos os dias, nunca me entedio, não sei o que são rotinas, tenho tempo livre, consumo imensa cultura, estes cinco anos passaram literalmente a voar.

Colocada numa das cidades mais caras do mundo, onde um café custa três euros, um T1 1200 euros/mês e o custo de vida é três vezes ou mais mais alto do que em Portugal, Diana ganha também três vezes acima do que ganharia cá e ainda tem casa, água, luz e gás sem ter que pagar, além de milhares de milhas gratuitas para viajar, e uma nova família de amigos “globetrotters” que adquiriu, todos num condomínio, roubam leite e cebolas uns aos outros, deixam a porta aberta, confiam, não têm que se preocupar.

Com uma vida deveras invejável, Diana, que vem três vezes por ano, ou mais, a Portugal, mantém o seu país no coração, abre a mala para mostrar: entre a roupa bem alinhada, onde num dia entra um biquíni e no outro um cachecol, ela põe um Compal, chá, bolacha Maria, paté de sardinha da Luças, um Douro Papa Figos tinto e o livro da “dolce vita” do Miguel Esteves Cardoso.

E saudades daqui, Diana? De pouca coisa, só família e os amigos, diz ela e depois há de confessar que só vai voltar de vez quando se fartar de viajar: zero saudades do frio e da chuva – aqui vivo entre 30 e 40 graus; sei que aí estão com o julho mais frio de há 30 anos -, zero saudades de pagar impostos, acho que só mesmo de comer mais vezes a bela francesinha, essa coisa que sei que só há aí e em mais lado nenhum.

Portugal nunca deu emprego a Elda, por isso ela teve que sair
Emigrada em Londres desde 2011, Elda Furtado, 30 anos, é açoriana da Terceira mas morava no Porto, onde conheceu o Luís, 29 anos, engenheiro informático com quem casou, veio com ele passar o S. João. Foi em 2016, ela nem queria muito vir, andava preocupada, decorria a última semana de campanha do referendo que perguntou aos ingleses se queriam sair ou continuar na União Europeia, mas ele insistiu, estavam a precisar de arejar e nada como um salto à festa da Invicta, de onde ele é natural, para poderem desopilar.

Correu muito bem, lembra-se ela, são só duas horas de avião, é sempre bom, amigos, família, os martelos, gosto tanto de ouvir aquele som que se ouve na cidade toda a estalar, é tão linda aquela festa, ela gostou muito, mas havia uma sombra atrás daquilo tudo, uma sombra que se estava a agigantar. Ela lembra-se da hora em que a viu, eram cinco da manhã, foi quando já estavam mesmo para se deitar.

Naquela noite os ingleses foram às urnas e já se sabia o resultado da votação, sabiam os ingleses, eles não, tinham combinado não ir ver aos telefones durante a festa, o que for será, mas agora iam-se deitar, o melhor é sabermos já, disse o Luís, é melhor não, diz ela, vemos amanhã, vamos dormir, ela que pressentia uma coisa má.

Então o melhor é saber já, torna o Luís com a cara iluminada pelo ecrã. Seguiram-se uns segundos de silêncio e ela viu logo na cara dele que se azulou. Ele vira o telefone, escurece, e exibe o resultado da votação: 51% dos ingleses querem o Brexit, o palavrão que atira o país para fora da UE no dia 29 de março de 2019. Claro que foram os dois dormir angustiados.

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Dois anos depois Elda sacode-se, sorri e mexe a colher da chávena de chá, é um hábito que adquiri aqui, bebo agora muito mais chá, ofereço sempre que tenho visitas, também digo mais vezes obrigado e por favor do que dizia, são muito educados, eles, é outro hábito que ganhei daqui, agora sou gozada quando vou a Portugal, dizem-me que não tenho que estar sempre a agradecer por tudo, a pedir licença por nada. Apesar do Brexit ter trazido insegurança global, a minha vida é estável e feliz, diz Elda, há muita oferta de emprego e isso dá-me segurança para estar cá. Tenho liberdade e conforto para ter hobbies, tempo para a vida de casal, um emprego estimulante, e vamos três vezes ao estrangeiro ou a Portugal.

Elda licenciou-se em audiologia, depois tirou o mestrado, trabalha como audiologista pediatra numa clínica da Oxleas NHS, uma fundação estatal de serviços médicos no sudeste de Londres e este é o seu emprego de sonho: trabalhar com implantes cocleares em crianças, um coclear é uma coisa em espiral, que sofrem de surdez profunda. Fazer parte disso é o que quero fazer da vida, diz ela, e no meu país não o pude fazer, nunca tive emprego em Portugal, é só por essa razão que emigrei, e aqui Elda deixa alar a mágoa na voz.

Quando me mudei, quando percebi que ia mesmo mudar e de vez, já tinha estado antes em Londres, só uns meses, foi no programa do Da Vinci, desta vez era diferente, ia ficar, aí eu vim de coração partido, diz Elda, fartei-me de chorar. Mas aqui bastou-me mandar alguns CVs e tive logo respostas, em Portugal não, não respondem, é irreal, só se fechavam portas, estava cansada, constantemente, tive mesmo que emigrar.

Agora Elda cresceu, o seu salário é de 2100 libras líquidas, são 2400 euros, é mais ou menos duas vezes e meia o que ganharia em Portugal, compensa o custo de vida, que também é duas ou três vezes mais alto, um T1 custa 1300 euros/mês, um café é 1,3 euros, ou dois, um bilhete de cinema são 13 euros, é preciso ter cuidado, mas é possível levar uma vida boa, podemos comer bem em casa, temos amigos, uns são portugueses, temos mais de outros países, a vida é boa e conseguimos poupar.

Voltar? Não me parece, diz Elda, só quando mudar a mentalidade das cunhas ou a servidão para com o empregador, dessa cultura de trabalho não tenho saudades nenhumas. Aqui sinto que cresço mais, serei sempre portuguesa, claro, mas na verdade pertencemos todos ao mundo inteiro, diz Elda que está a acabar o chá e vai reforçar a portugalidade: na minha mala, quando daí venho, trago sempre um vinho tinto, pastéis de nata, chouriço e, se puder, um bacalhau. Eu sei que aqui também há, mas é diferente, sabe-nos melhor, parece que assim trazemos sempre um bocadinho de Portugal.

Os Fernandes, de France, moram no Little Portugal
Hoje, os portugueses que emigram para o Reino Unido (32 mil em 2017) são quase o dobro dos que vão para França (18 mil em 2017). Vai demorar a inverter o tabuleiro que está assim desde o boom de 1960 e 70 e que estabelece o hexágono gaulês como o nosso maior pavilhão migratório e país do mundo onde vivem mais portugueses (621 mil; no Reino Unido são 139 mil).

Mas a nova emigração, como Elda ou como o seu marido Luís, que trabalha em sistemas para a Nexmo, uma empresa com 80% de não ingleses, prefere agora, mesmo com a espada levantada do Brexit, as ilhas de sua majestade, o país no top atual da nossa emigração, que é mais jovem e academicamente superior à de 60.

Apesar disso, a maior comunidade portuguesa de Londres é de emigrantes ligados aos serviços e ao operariado da construção, com cerca de 30 mil latentes em Stockwell, região do sul londrino a que chamam Little Portugal.

É aí, nessa rua interminável de pastelarias e cafés sempre sintonizados na TVI ou na RTP, de Super Bocks ao balcão, cheia de cabeleireiros e comedeiros brasileiros, que vivem os Fernandes, família de três, o pai Miguel, 58 anos, a mãe Glória, 62, a filha é a Carla, fez agora 24. Eles estão de férias em Portugal, são de Viseu, lugar de France, freguesia de São Pedro de France, é ali perto de Queiriga, a aldeia mais francesa de Portugal, dizem, mas ironicamente a França nunca lhes interessou.

Pedro Correia/Global Imagens

Miguel foi o primeiro a ir, emigrou em 88, a mulher foi depois em 93, primeiro ele fez trabalhos de ocasião, foi chamado pelo irmão, obras, construção, postes, iluminação, até já andou nos morangos, é muito intenso, quebra as costas, depois serviu em restaurantes, depois teve asma, depois meteu-se nas limpezas, é onde ainda está, diz que é mais seguro, mais certo, ganha-se mais. É verdade, diz Glória que foi para lá quando casou, engravidou a seguir, veio ter a filha a Portugal, o Miguel ficou, voltaram as duas meio ano depois, tinha a Carla só seis meses, é lá que vivem desde aí, vêm duas vezes por ano a Portugal, este ano voltam no Natal, sempre de avião.

Há 25 anos em Londres a limpar, casas particulares, sim, já servi os Spencer-Churchill, que família, que castelo, que mansão, agora faço outras casas, diz a Glória, o Miguel também, ou hospitais, pagam bem, repetem eles, 10,20 libras à hora, são 11,42 euros, já foi mais quando a libra ia mais alta, o Brexit está a encarecer tudo, mas ainda é bom, dizem eles a notar que ganham mais do que a filha, que é educadora infantil, ela recebe 9,25 libras à hora, são 10,36 euros, cuida de crianças dos dois aos três anos.

Às três da tarde em France, Glória está a pôr a mesa de almoço no alpendre da casa que era dos pais dela e está toda renovada, mas com a traça do que era, com forno de cozer pão, adega fresca, lareira grande na cozinha, daquelas de entrar, é um sossego em France, chegaram tarde, chegaram de Viseu, foram tirar passaportes os três, é o Brexit, até aqui bastava ter o cartão de cidadão. Estão bem-postos em Little Portugal, protegidos, falam sempre todos em português, a não ser quando vão trabalhar, é lá que têm a vida, mas pensam cada vez mais vezes em voltar para ficar, diz a Glória, o Miguel concorda, e os dois dizem “yeah”.

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Miguel, que está a insistir para que provemos um pão especial amarelo de centeio que leva ovos e aguardente e umas azeitonas que estiveram a curar, faz as contas do regresso, mais uns cinco ou sete anos a trabalhar, depois é a reforma, é uma reforma de lá, é melhor, Glória concorda, diz que está um nadinha farta, gosta da paz de France, mas diz e olha para a Carla e depois para o marido, e os dois sabem que ela quer lá ficar, aqui em France não se passa nada, lá é Londres, diz a Carla, é lá que tenho os amigos, as primas, as coisas, aqui não acontece nada, o que é que eu hei de aqui fazer? E os pais cruzam o olhar, dizem “yeah”, bom, só poderemos voltar quando ela se arrumar, conclui o pai, mas a filha não tem planos para casar.

Para a semana voltam os três, estiveram cá de férias um mês, já compraram bilhetes de avião, 180 euros cada um, são mais caros porque levam malas extra, têm muita coisa para levar, levam sempre o seu pão, azeitonas, azeite e vinagre, tudo caseiro, umas garrafas de vinho, bacalhau, para cá trazemos roupa, para lá vamos atestados de comida, não temos problemas, as malas vão no porão do avião.

O caso especial da pulsão pela Venezuela
Júlio Fernandes, um homem de aspeto calado que esconde um conversador torrencial quando mete a mão à história e desenrola o “noir” dos anos do Estado Novo, é um migrante dinástico – são assim todos os soberanos da mesma família que se sucedem em série na ordem preestabelecida. Emigrou sucedendo ao seu pai que sucedera ao pai dele e assim sucessivamente para trás até ao primeiro deles que sentiu frémito, sentiu desejo ou sentiu mágoa e quis pela primeira vez deixar o seu país.

Júlio tinha 17 anos, chegou à capital Caracas em 1953, é de Moimenta da Beira, educou-se lá e depois nas escolas da capital e no liceu de Mário Soares, onde confabulou, cresceu, depois casou, a mulher chama-se Licínia, é um casamento para a vida, voltou para lá, estabeleceu-se, negociou-se, hoje conduz negócios de móveis, de tintas e de casas. Anda lá e cá, literalmente nisto, Porto-Caracas-Caracas-Porto, é uma vida no ar, vem cá três vezes por ano, 11 horas a voar, a primeira vez que foi, foi de barco, enjoou evidentemente, demorou 17 dias a chegar, eram outros tempos, o barco saiu de Lisboa até Vigo, daí até Tenerife, depois um esticão atlântico até Miami e depois de Miami, Caracas.

Era o trajeto que tinha feito o seu pai, em 1950, quando deixou o Portugal de Salazar, e o seu avô, anos antes, em 1939, o avô partira do Brasil, já o Estado Novo governava por cá desde 1933, emigração dinástica, como se lhes corresse no sangue, uma transfusão que já chegou aos filhos de Júlio, tem três, um está emigrado na Escócia, é o mais velho, de 38 anos, os outros dois, de 26 e de 36, também andam com ele, entre cá e lá, hão de herdar os negócios do pai.

Tem 68 anos, é sportinguista e assiste no “replay” da sala da sua casa no Grande Porto a mais um debate da tragédia que escorre há meses pelo relvado manchado do seu clube. É inacreditável isto, hein?, nem nós lá, diz ele numa voz toda pontuada de ditongos crescentes e decrescentes que lhe vem da língua espanhola que fala quando está lá, nem nós lá na Venezuela, nem nas novelas sul-americanas se poderia imaginar um enredo assim, um vilão como este que se há atirado sobre o Sporting, isto é uma tragédia, diz ele e sai da sala espanholado a abanar a cabeça e a reprovar o ecrã para voltar depois com uma chávena de café estendida já açucarada, quem é do Sporting é do Sporting, não tenho justificativa especial, o meu pai era do Sporting e o clube, hein?, me há agradado.

Pedro Correia/Global Imagens

Um país com inflação de 14 mil por cento
O que atrai Júlio para a Venezuela e para a selva urbana de Caracas, uma metrópole no vale do norte cintada por bairros de lata onde vivem dois milhões de pessoas e há 11 assassinatos por dia – é hoje das cidades mais violentas do mundo, ombreia com San Pedro Sula, nas Honduras, e com a fatídica capital de El Salvador, San Salvador -, são contradições, diz ele.

E desenrola: é um país desafiador, podia ser um grande país, muito bom, cheio de petróleo e minérios, ouro, ferro, diamantes, ótimo clima, paisagens de cortar a respiração, sabia que lá há 700 ilhas, muitas virgens, todas paradisíacas? Pois é, muita gente nem sabe, vivi lá a maior parte da minha vida, a minha juventude, nos anos 60 tinham melhores estradas do que cá, mas é um país desnorteado, em crise de valores, económicos, políticos, sociais, e que ficou muito órfão desde que Hugo Chávez morreu, foi em março de 2013, nesse ano estive lá sempre, nem vim a Portugal.

Às vezes parece impossível como é que se consegue lá viver, diz Júlio a citar dados de cabeça do Fundo Monetário Internacional, há cinco anos seguidos em recessão profunda, com desemprego a atingir um em cada três venezuelanos, e uma inflação incrível que este ano, diz o FMI, vai chegar aos 14 mil por cento! Eu sei, é uma coisa difícil de se imaginar, 14 000%, uma loucura, nunca sabemos quanto as coisas estão a custar entre o mercado regulado pelo governo, o mercado livre e o mercado negro, são números difíceis de conceber para um europeu, mas o ordenado mínimo lá é agora de cinco milhões de bolívares. Sabe quanto isso dá? 1,5 euros, parece impossível, eu sei, um euro vale quatro milhões de bolívares, um maço de tabaco Belmont custa 1,4 milhões, o equivalente a uma semana inteira de trabalho, consegue acreditar?

A despeito do descalabro e da saída extemporânea de mais de quatro mil portugueses da Venezuela em 2017 – temos lá emigrados mais de 55 mil -, Júlio, que hoje emprega nas duas fábricas pouco mais de duas dezenas de pessoas quando já foram mais de duas centenas, não há de voltar definitivamente, há uma parte de si que fica sempre lá, a que tem as poupanças aplicadas em terrenos e propriedades, e outra, que é sentimental, que ele não sabe explicar, e que continua a aliciá-lo, a chamá-lo para o lado de lá do mar quente do Caribe.

Dentro de um par de dias, chegado agosto, Júlio voltará para Caracas e só há de regressar no Natal. Na mala, que ele já faz de forma banal, não leva produtos de identidade nacional, levará coisas sem interesse algum mas que lá têm o peso do ouro: gel de banho, champôs, sabonetes, leite em pó, coisas que estão sempre a escassear.