O poder sobe mesmo à cabeça, segundo as neurociências

Texto Sofia Teixeira | Fotografia D.R.

Há centenas de definições, de centenas de estudiosos, acerca do que é o poder. Um dos denominadores comuns passa por destacar a influência de quem manda sobre os seus «subordinados»: a capacidade de os influenciar, de lhes mudar a vida, de tomar decisões sobre assuntos que lhes dizem respeito, de modificar­‑lhes a conduta. Acontece que se começa a perguntar cada vez mais: e que influência tem o poder sobre a pessoa que o exerce?

O médico e ex­‑ministro dos Negócios Estrangeiros inglês David Owen e o psiquiatra Jonathan Davidson não foram os primeiros a dar um nome à modificação que o poder opera em quem o exerce, mas foram os primeiros a classificá­‑la com uma síndrome.

A exposição a um cargo de poder pode levar à perda de contacto com a realidade, soberba, presunção, excesso de autoconfiança, desdém perante os conselhos ou críticas dos outros. Chamaram­‑lhe síndrome de Húbris.

Em 2007, publicaram um artigo na revista Brain a defender a existência de uma condição psiquiátrica com padrões de comportamento narcísicos provocados pela exposição a um cargo de poder: perda de contacto com a realidade, predisposição para ver o mundo como um lugar para a autoglorificação, soberba, presunção, preocupação exagerada com a imagem, forma messiânica de falar, excesso de autoconfiança, desdém perante os conselhos ou críticas dos outros. Chamaram­‑lhe síndrome de Húbris, a palavra grega que designava o herói que se deixava tomar pela glória e passava a comportar­‑se como um deus.

A síndrome não consta no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM) – a bíblia de diagnóstico das doenças mentais, editada pela Associação Americana de Psiquiatria ­– mas muitos têm sido os estudos que concluem que o poder e estas alterações de auto­perceção e comportamento andam de mãos dadas.

«Alguns dirigentes excedem­‑se. Não por serem desonestos, mas porque passam a auto­percecionar­‑se como donos absolutos do cargo e do poder que lhes está confiado», diz Ana Teresa Penim.

Ana Teresa Penim, mestre em Psicologia Organizacional e especialista em coaching e liderança, defende que a sensação de poder absoluto, sobretudo se exercido durante muito tempo, pode distorcer a forma como algumas pessoas percecionam a legitimidade da sua atuação.

«Alguns dirigentes excedem­‑se. Não por serem desonestos, mas porque passam a auto­percecionar­‑se como donos absolutos do cargo e do poder que lhes está confiado, passando a considerar que a necessidade de prestarem contas a outrem não existe», defende a autora de vários livros na área do coaching, que trabalha diariamente na formação de executivos na área da liderança, motivação, gestão da mudança e comunicação.

«É um fenómeno que decorre da natureza humana e não necessariamente da falta de virtude moral, mas que muitas organizações tentam controlar criando obstáculos técnicos à manifestação do problema, por exemplo, a obrigatoriedade de rotação dos titulares de cargos ao fim de um determinado número de anos de exercício.»

Pessoas em cargos de poder são menos capazes de ver o ponto de vista dos outros, ou seja, menos capazes de uma das caraterísticas que mais nos tornam humanos, a empatia.

Um mecanismo que, de resto, já vemos ser usado para limitar o poder político – coma limitação de mandatos ­– exatamente pela mesma razão: que os titulares não se acomodem ao poder, no pior sentido.

A juntar a isso, a coach lembra que há pessoas que se deslumbram com as condições de vida e as mordomias que os cargos lhe proporcionam e que «a sociedade, fortemente materialista, em que o reconhecimento externo é frequentemente obtido a partir das evidências de consumo e dos sinais exteriores de riqueza, em nada favorece a autorregulação no exercício do poder».

Por fim, acredita que, não sendo a maioria, muitas pessoas têm de base um quadro de valores pouco ético: «Utilizam o poder em benefício próprio, deliberadamente, porque é a ganância material insaciável que os move e não têm autocensura moral e ética.»

A comédia é sobretudo crítica e o abuso de poder é um dos seus alvos preferenciais. Em «O Ditador», Sacha Baron Cohen interpreta o excêntrico e egocêntrico general-almirante Shabazz Aladeen, que governa Wadhiya, país fictício do Norte de África, a seu bel-prazer.

Há cerca de 150 anos, Friedrich Nietzsche defendeu que o «homem perde o poder quando é contagiado pelo sentimento de piedade». Hoje sabe­‑se que pelo menos o oposto é verdadeiro: o homem parece deixar de sentir piedade quando é contagiado pelo poder.

Dacher Keltner, professor de psicologia e investigador da universidade de Berkeley, tem concluído isso mesmo ao longo de duas décadas de estudos com pessoas em cargos de poder: além de se tornarem mais impulsivos e menos cientes dos riscos, são menos capazes de ver o ponto de vista dos outros, ou seja, menos capazes de uma das caraterísticas que mais nos tornam humanos, a empatia.

«O poder muda as pessoas, sim», afirma Ana Guinote, psicóloga experimental no University College London e co­autora do livro Poder ­– Veneno e Remédio (2017, Lidel). Apesar de o tipo de personalidade não mudar – os seus traços são relativamente estáveis ao longo da vida adulta ­– a investigadora acredita que há nuances destes traços e da forma como se manifestam que são alterados pelo exercício do poder, desde logo porque torna as pessoas mais autoconfiantes e extrovertidas.

«Com a ação mais facilitada e menos impedimentos externos, os poderosos manifestam mais as suas predisposições. Ou seja, o poder aumenta a relação entre a personalidade e a manifestação comportamental da personalidade», diz a psicóloga Ana Guinote.

«As pessoas que têm poder estão geralmente em comunicação com outros e causam constantemente um impacto no mundo social. Isso obriga­‑as a expressarem­‑se mais e a fazerem­‑no com mais confiança do que se não tivessem poder», diz.

Além disso, os poderosos são mais rápidos a tomar decisões e avançam mais facilmente para a ação. «Estão geralmente focados nos seus objetivos – por exemplo, nas metas organizacionais ou pessoais e isso tem resultados positivos. As coisas acontecem mais facilmente».

E quando as coisas acontecem, é somar dois mais dois: percebemos que certos comportamentos produzem certos resultados: os resultados que desejamos. E isso tem uma consequência na nossa capacidade de autorregulação ­– a competência de cada um de nós para monitorizar e avaliar os nossos próprios pensamentos e comportamentos.

O que quer dizer que, quando se percebe que uma ação centrada nos próprios objetivos produz resultados positivos a nível pessoal ou organizacional, vamos reforçar o mesmo tipo de padrão de comportamento.

«Com a ação mais facilitada e com menos impedimentos externos, os poderosos manifestam mais as suas predisposições. Ou seja, o poder aumenta a relação entre a personalidade e a manifestação comportamental da personalidade», explica a investigadora. Mas a autorregulação tem outra consequência: nem sempre somos o que parecemos ser (ver abaixo «Quem é você realmente»).

«Na política abundam os psicopatas. Pessoas com desprezo pelas obrigações sociais, falta de empatia, egocentrismo patológico, emoções superficiais, baixa tolerância à frustração, ausência de culpa e sentimento de impunidade», diz o psiquiatra Cláudio Moraes Sarmento.

Isso quer dizer que os poderosos, como as outras pessoas, são capazes de adotar atitudes e assumir temporariamente os comportamentos desejáveis na situação, de forma adaptar­‑se ao que é esperado dela. «Por exemplo, uma pessoa com poder pode facilmente comportar­‑se de forma mais ou menos generosa dependendo da tarefa ou do contexto. O psicólogo Brian Little chama­‑lhes free traits: traços livres que não fazem parte da estrutura da personalidade das pessoas mas que a ajudam a alcançar o que deseja.»

Não restam muitas dúvidas sobre o facto de o poder ser uma circunstância que pode mudar as pessoas. Nesse caso, haverá também verdade no provérbio que diz «se quiser saber como uma pessoa é, coloque­‑a numa posição de poder», que sugere que o poder não muda nada, apenas releva?

O psiquiatra Cláudio Moraes Sarmento acredita que sim. Apesar de admitir que o poder pode criar o cenário ideal para que alguns traços de personalidade se manifestem em toda a sua plenitude, vai bastante mais longe ou, se quisermos, mais atrás: quem procura cargos de poder e porquê?

«A própria busca do poder e de lugares políticos pode estar enviesada pelo narcisismo individual.» O psiquiatra admite que haja casos de motivações altruístas para esta busca, mas não acredita que elas abundem. «Serão mesmo raras. A maioria das vezes, as ditas motivações altruístas são um mero disfarce para as motivações narcísicas subjacentes – e não necessariamente conscientes.»

E depois vai mais longe ainda: «Na política abundam os psicopatas. Pessoas com manifesto desprezo pelas obrigações sociais, falta de empatia, egocentrismo patológico, emoções superficiais, baixa tolerância à frustração, ausência de culpa e sentimento de impunidade.» A afirmação pode parecer bombástica, mas poucos especialistas discordam dela e os mais importantes estudos sobre psicopatia suportam­‑na.

A maioria dos psicopatas e narcísicos está entre nós: são o nosso vizinho do lado e a pessoa com quem nos cruzamos no café do bairro. Muitos alcançam, no entanto, aquilo a que chamamos os pequenos poderes: o agente de autoridade, o chefe de repartição, o porteiro.

O psicólogo criminal Robert Hare ­– que definiu os critérios internacionais usados para diagnosticar a psicopatia ­– estima que este transtorno se encontre em cerca de um a dois por cento da população masculina em geral.

Mas também demonstra que há lugares onde é mais provável encontrar psicopatas. Um deles é relativamente óbvio: nas prisões ­– estima­‑se que cerca de 25 por cento dos prisioneiros que cometem crimes violentos sofrem de psicopatia. Já o outro é um pouco menos óbvio: precisamente em lugares de topo e de poder.

É uma relação de atração mútua: os lugares políticos e corporativos de topo atraem­‑nos porque são o palco perfeito para colocarem em prática os seus desejos de controlo sobre os outros, e as corporações valorizam as capacidades de foco, decisão rápida e aptidão para correr riscos que eles parecem demonstrar.

Ainda assim, nem todos vão para a prisão ou para o topo. A maioria dos psicopatas e narcísicos está entre nós: são o nosso vizinho do lado e a pessoa com quem nos cruzamos no café do bairro. Muitos alcançam, no entanto, aquilo a que chamamos os pequenos poderes: o agente de autoridade, o chefe de repartição, o porteiro.

Pessoas incumbidas de pequenas tarefas, mas que podem, com o seu autoritarismo, comprometer a vida dos outros individualmente e o funcionamento do sistema no seu todo. Dependemos deles para o tempo que leva a colocar um carimbo, a fazer uma fotocópia, a resolver uma qualquer burocracia.

Por serem pequenos, estes poderes são ainda menos escrutinados do que os maiores. Porque é que estas pessoas parecem obter alguma gratificação com o despotismo que exercem? Em primeiro lugar, importa saber que o cérebro dos psicopatas tem alterações morfológicas identificáveis: «Alterações ao nível do córtex pré­‑frontal ventromedial ­– áreas importantes para a empatia e culpa ­– e da amígdala», explica Cláudio Moraes Sarmento.

«Bananas», de Woody Allen, parodia a revolução cubana e Fidel Castro. As parecenças de Fielding Mellish com o ditador da fictícia San Marcos levam-no ao poder, por engano. E a deixar-se inebriar por este.

Ao exercício destes pequenos poderes chama o psiquiatra as «quintas narcísicas» de muitos: «São o território em que as suas frustrações e invejas são projetadas. Minam a sociedade e infelizmente todos nós já nos confrontamos com estes poderes perversos em repartições. A sorte é que a patologia é residual, comparada com a normalidade.»

Qual é a solução? Escrutínio e punição são essenciais, mas são uma fase adiantada do processo. O que parece ser necessário, em primeiro lugar, é começar por escolher bem quem manda. «Candidatos com um perfil mais egoísta devem ser evitados. Estes aspetos da seleção pessoal deveriam receber mais atenção, mas, infelizmente, pessoas autocentradas e narcisistas conseguem muitas vezes contornar o processo de avaliação pessoal, tendo uma aparência autoconfiante que é interpretada como competência», explica a investigadora Ana Guinote.

Também Cláudio Morais Sarmento defende que se deve começar por escolher os melhores: não os melhores apenas no sentido das capacidades cognitivas, mas aqueles que deram mostras de possuir capacidades empáticas e altruístas. «Não tenho uma resposta para a operacionalidade disto, mas o ideal seria, para determinados cargos, ter de haver avaliação psicológica obrigatória. Ou melhor ainda ­– testes genéticos. Havemos de chegar lá.»

A liderança é mais uma competência social e moral e menos uma competência técnica, mas o coaching e a formação em liderança dispõem de ferramentas e métodos que ajudam os líderes a adotar um exercício ético e responsável do poder.

Além da seleção ­– que elimina os psicopatas e os narcisistas ­– importa a formação que dá bases mais sólidas aos que não sofrem de nenhum distúrbio de personalidade e que evita que o poder os faça esquecer os outros.

A liderança é mais uma competência social e moral e menos uma competência técnica, mas o coaching e a formação em liderança dispõem de ferramentas e métodos que ajudam os líderes a adotar um exercício ético e responsável do poder.

«A consciencialização e autorresponsabilização são mais eficazes do que as estratégias punitivas», defende Ana Penim. «A perceção pelos líderes dos benefícios que advém de terem um propósito maior na vida e de deixarem um legado à sociedade ­– em vez do foco exclusivo no enriquecimento ou benefício próprio ­–, podem motivar a pessoa, a empresa, a instituição e a sociedade a interiorizar atitudes e comportamentos mais éticos.»

Quem é você realmente?

Podemos parecer o que não somos. E ser o que não parecemos. Há cinco dimensões essenciais para descrever diferenças de personalidade entre as pessoas:

  • Os abertos à experiência, por oposição aos fechados;
  • A consciência e, no outro extremo, a apatia;
  • A extroversão versus a introversão;
  • A simpatia por oposto à antipatia;
  • A neurose por oposição à estabilidade.

Estes cinco traços combinados entre si, constituem a base da personalidade de cada um. Mas o facto é que somos mais do que isso. Como defende o psicólogo Brian Little, investigador e professor nas universidades de Cambridge, Oxford e Harvard, que se tem dedicado à investigação dos traços de personalidade livres, ou seja, traços que exibimos, apesar de não fazerem parte da nossa personalidade­‑base. «Somos como todas as outras pessoas e como nenhuma outra», explica na sua Ted Talk Quem É Você Realmente? O Puzzle da Personalidade.

«Além da molhada de traços de personalidade, aquilo que nos torna diferentes e únicos são os afazeres da vida, os projetos pessoais.» E quase todos nós temos projetos pessoais que muita gente não conhece. «Pode ter que ver com o seu filho ou a sua mãe: já foi três vezes ao hospital e não lhe sabem dizer o que se passa. E você pode andar a comportar­‑se de forma diferente. É habitualmente uma pessoas agradável, mas age de maneira desagradável, de forma a quebrar as barreiras administrativas no hospital, para obter alguma coisa para a sua mãe ou filho», exemplifica.

São as características ou traços livres: aceitamos um argumento e um papel de forma a sermos eficazes e a avançar nos projetos de vida. Assim como os usamos com objetivos nobres, podemos fazê­‑lo visando metas egoístas.