Pedrógão Grande: uma casa reconstruída por voluntários

Texto de Paula Sofia Luz | Fotografia de Henriques da Cunha/Global Imagens

No interior norte do distrito de Leiria, há dias em que só se ouve o vento. É assim nesta primavera feita de dias chuvosos, a caminhar para o fim. Passaram nove meses desde o dia mais negro da história daquela região, não nasceram crianças nem a vida se regenerou, à exceção dos eucaliptos que galoparam sem dó.

À saída do IC8, na fatídica estrada nacional 236, onde o fogo queimou 47 vidas, só o asfalto foi reposto. Além disso, mais uma ou outra placa toponímica, pois que a maioria continua lá, queimada, nomes das terras impercetíveis.

E na verdade, há muito de utopia no que move estas dez ou 15 pessoas que se propuseram reconstruir, por sua conta e risco, a casa de uma família da Figueira, uma entre centenas reduzidas a escombros naquela noite de junho.

Mas quando deixamos a estrada principal e tomamos o caminho da Figueira, ou da vizinha aldeia do Nodeirinho, percebe­‑se então que o fogo ainda arde naquela comunidade. «Impressiona muito, não é? Parece que está tudo na mesma. Nós, que aqui andamos desde essa altura, sentimos muito essa dor, esse abandono.»

Sandra Jorge explica assim o que sente, ela que faz parte de uma espécie de tribo que se reúne todos os sábados, desde então, num grupo de voluntários determinado a provar que «é possível reconstruir uma casa só com amor».

Dito assim, parece letra de canção romântica. E na verdade, há muito de utopia no que move estas dez ou 15 pessoas que se propuseram reconstruir, por sua conta e risco, a casa de uma família da Figueira, uma entre centenas reduzidas a escombros naquela noite de junho.

Ali morava Anabela Paiva com o marido, David, a mãe, Deontília, e os dois filhos adolescentes – Inês e César. A família vive agora em casa de uns tios, enquanto assiste a este caso isolado naquela região afetada pelo fogo: é a única casa a ser construída exclusivamente com trabalho voluntário, materiais cedidos gratuitamente, uma obra movida a energia positiva e boa vontade.

Que anda mais devagar que as outras, muitas (74) já entregues pelas autarquias, ou pelo governo ou outras entidades ­– aos proprietários. Mas que servirá de modelo na rota do xisto, desenhada por um arquiteto premiado (Pedro Santos), que não desvirtua a arquitetura regional, ao contrário do que sucede com outras por ali.

E essa foi uma preocupação desde a primeira hora, desde aquela noite em que cada um do grupo foi sobressaltado por uma mensagem de Facebook, SMS ou WhatsApp enviada pelo elo de ligação entre todos, mentor deste projeto, um dia depois dos incêndios.

Joel Silva, natural de Vila Cã, no concelho de Pombal, mas conhecedor de toda aquela região, lançou um desafio aos amigos nas redes sociais: juntar material e recursos humanos para reconstruir algumas casas nos concelhos de Castanheira de Pera, Pedrógão Grande e Figueiró dos Vinhos.

Chamou­‑lhe ReConstruir Pinhal Interior Norte. Em poucas horas apareceram mais de vinte pessoas dispostas a contribuir, desde arquitetos a engenheiros civis, mas também gente de todas as profissões, pronta a arregaçar mangas e colaborar.

Uma semana depois desse apelo, já tinha garantidas ofertas de várias empresas de materiais de construção, eletrodomésticos e móveis. Começou ali uma onda de solidariedade que haveria de esbarrar entretanto na logística e nas questões legais. «Inicialmente pensávamos mesmo construir uma casa em cada um dos três concelhos.

Mas a Câmara de Figueiró dos Vinhos nunca nos respondeu. Em Castanheira de Pera chegámos a ter identificada uma casa – que ainda vamos fazer – mas apareceram herdeiros a reclamar uma construção no interior do terreno e foi preciso resolver primeiro todo esse imbróglio de partilhas. Foi então que deitámos mãos à obra na casa da Anabela.»

Em cada sábado, há sempre alguém que se junta para apoiar a obra. Desta vez o almoço chegou pela mão da família de Nuno Pedro e Sónia Barros, que levaram as filhas para aquele momento de partilha.

Pelas suas contas, a obra estará feita a 60 por cento. «Nenhum de nós quer que isto perdure no tempo, mas é preciso compreender que não é uma obra “normal”, como as outras. Todos queremos chegar ao fim e entregar a chave na Câmara de Pedrógão Grande. Foi com isso que nos comprometemos.»

Joel fala à Notícias Magazine enquanto assenta bloco sobre bloco, naquilo que ao final deste sábado será mais uma parede. Antes, nunca o fizera. Nem ele nem a maioria dos que o acompanham: Isabel, a funcionária judicial, Sandra, engenheira química, Telmo, vendedor de automóveis, Gilberto, funcionário de armazém, João, gestor de empresas, Ana ou Leonel, professores, entre técnicos disto e daquilo que ali se juntam religiosamente a cada sábado, uma outra vez aos feriados.

Aos 44 anos, Joel já fez de tudo na vida, já se reinventou por demais. Quando deflagrou o fogo em Pedrógão Grande, ia a caminho do norte do distrito de Leiria, como tantas vezes, como no tempo em que prestava serviços à Prazilândia, a empresa municipal que tutela a Praia das Rocas, cartão­-de-visita turística de Castanheira de Pera nos anos recentes.

Sem perceber completamente porquê, deu meia volta no IC8 e voltou atrás. Ao fim da tarde, já em casa, soube que o território que conhece bem estava a ser consumido pelas chamas. E depois, com o cair da noite, as notícias foram piorando: morreu gente, queimaram­‑se casas. Nunca mais de lá saiu, até hoje.

A lição do fogo no interior do país já era conhecida de Joel. Sempre foi um rapaz de ideias, muitas das quais já colocou em prática, embora nem todas bem­‑sucedidas. Custa­‑lhe, por exemplo, não conseguir implementar a Gratitude ­– uma espécie de plataforma de troca de produtos que ainda testou na sua cidade, mas sem sucesso.

Na obra da Figueira, tem sido importante a mão-de-obra disponibilizada, amiúde, por várias empresas da região, em momentos cruciais, como a primeira placa.

«O que fazemos é trabalhar para os outros sem esperar nada em troca. Quando à hora de almoço vamos ao café da D. Rosalina, percebemos o bem que faz às pessoas a nossa presença aqui», diz Leonel antunes.

Uma das primeiras pessoas com quem Joel falou ao telefone foi Leonel Antunes, de 46 anos, à época adjunto do então presidente da Câmara de Ansião, concelho onde o fogo tentou entrar, mas parou. Nesses dias, o professor de francês/inglês (agora colaborador de uma ONG) percebeu no terreno quão difícil seria reerguer aquela comunidade, num território abandonado há anos, refém das suas fragilidades.

Era dos poucos que sabia ao que ia. Com as eleições de outubro e a mudança de cor política no seu concelho, deixou a câmara e passou a ter mais tempo livre. Aos sábados, ele e o cunhado, Armindo Freire, metem­‑se no carro e rumam à obra da Figueira.

«O que fazemos é trabalhar para os outros sem esperar nada em troca. Tenho sempre a sensação de que estamos a trabalhar para nós.» É Leonel quem fala pela primeira vez dessa «injeção de vida» que o grupo leva à aldeia em cada sábado. «Quando à hora de almoço vamos ao café da D. Rosalina (o Retiro do Lino), percebemos o bem que isso faz às pessoas, a nossa presença aqui.»

Os dias nas aldeias varridas pelo fogo são de profunda solidão. É uma população envelhecida, que assistiu há muitos anos à debandada dos filhos para as grandes cidades ou para o estrangeiro. «A pobreza desta gente vai muito para além dos bens materiais», enfatiza Leonel.

Sandra Jorge lembra­‑se bem de quando lá foi a primeira vez, da sensação de lhe faltar alguma coisa, de não ouvir um pássaro, uma criança a rir ou a chorar. Mora em Leiria, e soube daquele grupo numa notícia do Diário de Notícias. Meses depois, quando a mãe lhe perguntou o que afinal lá ia fazer, explicou com detalhe: «O que for preciso.» Afinal, aquele já não era um projeto só dela, mas sim de família.

O marido, vendedor de automóveis, passou a acompanhá­‑la nessas tarefas de serventia na construção civil. Um dia levaram o filho, Raul, de 8 anos. Mostraram­‑lhe tudo: a obra, a aldeia, o rasto do fogo. E no Natal voltaram com ele, foram a casa da família de Anabela, onde pela primeira vez em muito tempo os filhos tiveram companhia alheia num jogo de PlayStation.

«Nem eu nem o Telmo tínhamos pegado nunca num tijolo. Isto foi como chegar à faculdade e ser praxado. E aprender tudo», conta Sandra. João Coelho, gestor de várias empresas, faz parte desse grupo. «A minha motivação é estar aqui e ser útil. E isso é que faz a diferença.»

Em cada sábado, há sempre alguém que se junta, que apoia de outra forma. Desta vez o almoço chegou pela mão da família de Nuno Pedro e Sónia Barros – uma feijoada confecionada em Santiago da Guarda. O casal levou as filhas para aquele momento de partilha. Por umas horas, houve crianças na aldeia, e vida, para além do fogo.