Pedro Abrunhosa: “Precisamos de mais Marcelos e menos tabus”

É quarta-feira à tarde e o Largo de São Domingos, no Porto, fervilha de turistas e restaurantes modernos. Mas também há cafés de barbas, que resistem à voragem da novidade. É a um desses que Pedro Abrunhosa faz questão de ir. O carinho recíproco nota-se à légua. “Então Pedro, por aqui?” O músico, 57 anos a fugir para os 58, devolve com uma graça: “É pá, portuenses no Porto. Espetáculo!”

Pede uma meia-de-leite e dá duas inteiras de letra. Faz questão de perguntar se os turistas também lá param. Preocupação de um portuense convicto, que continua a cantar a Invicta e a gabar-lhe, orgulhoso, o espírito criativo. É também disso que fala “Espiritual”, o álbum que conheceu a luz do dia no final de novembro.

O novo disco, o oitavo de originais e o terceiro ao lado dos Comité Caviar, serve de pretexto para uma espécie de roteiro, com guia na primeira pessoa, ao Porto de Abrunhosa. Onde necessariamente mora o Coliseu a que se acorrentou há mais de duas décadas. E a zona ribeirinha, espécie de álbum a cores dos tempos de juventude. E a Casa da Música, o elemento disruptivo da cidade que lhe diz tanto. E, claro, os Aliados, porta de entrada para um Porto que de tanto se abrir ao mundo dá que pensar a quem o conhece de ginjeira.

“A cidade está num processo de mudança, a recuperar de um atraso atávico. Durante muitos anos o Porto viveu numa espécie de letargia política e humana. Tem sido uma transformação muito rápida, porque de repente o mundo desenvolve pelo Porto esta atração, enquanto cidade de interesse, enquanto polo cultural e arquitetónico. A grande questão é como prefiro o Porto: assim ou estagnado, como estava há dez anos? Obviamente que o prefiro assim. Mas não a qualquer preço”, diz, a meio dos Aliados, que inspiram um dos temas do novo trabalho.

Durante muitos anos o Porto viveu numa espécie de letargia política e humana

Quase 25 anos depois de ter feito da música um manifesto político contra o cavaquismo, Abrunhosa mantém o sentido crítico apurado. Mesmo que, neste caso, o “statement” seja mais um alerta do que um murro na mesa. Ponderação precisa-se, advoga. “Há que tomar medidas políticas concretas para encarar esta liberalização que vem imbuída na prática turística e pode ser maléfica a longo prazo. Mas [a questão] não é só política. Tem a ver também com o papel de cada um. Enquanto senhorios, temos de saber que valência queremos para o nosso prédio. Se queremos contribuir para a gentrificação da cidade ou para a manutenção do espírito do Porto. O caso do comércio tradicional é um caso típico em que as pessoas se subjugam ao poderio económico das grandes empresas.”

A preocupação advém da “relação de mútuo amor e ternura” que tem com a Invicta – e com o centro histórico em particular. “Nasci na Sé e cresci na Baixa. Tenho o ADN da Baixa. Lembro-me da biscoiteira, da peixeira e do amolador, cada um com um pregão diferente. Lembro-me de ir a correr ao escritório do meu pai, que era na Rua Formosa, e passar na Rua do Almada, que já na altura era a rua dos instrumentos musicais. Lembro-me desse odor da cidade que vive, que deita fumo das casas, do cheiro do café misturado com o almiscarado da manhã. E do elétrico! Para quem é portuense, o elétrico é um prolongamento natural das pernas.”

Aqui e ali, a viagem à Invicta que lhe deu vida é interrompida por pedidos de fotos. Abrunhosa acede, gentil. É o Porto a provar-lhe um carinho que prevalece e ele a fazer questão de o devolver em dobro. Mas isto da ditadura das selfies tem bem mais que se lhe diga. E é aqui que voltamos a “Espiritual”, o álbum que conta, entre outras, com participações de Lila Downs, Carla Bruni, Ney Matogrosso e Ana Moura. Tudo enquanto apregoa a reflexão interior em detrimento da materialidade. Um grito de alma, parece.

“É uma expressão bonita, mas acho que é mais um contraciclo face a essa superficialidade da vida, em que tudo dura três segundos. Agora estamos em Berlim, depois estamos a ver os refugiados e logo a seguir as férias de não sei quem em Cancún. Desfilamos pelas latitudes todas com um dedo e não se chega a instalar uma matéria emocional em relação a nenhuma daquelas situações porque não as estamos a viver. Depois, há os que vão à Mona Lisa fazer uma selfie, mas que não usufruem. São os turistas do tempo. Este disco é no sentido de dizer ‘vamos ouvir-nos a nós próprios’.”

Um Porto de lutas, hoje e sempre
Um testemunho a favor da reflexão interior de cada um, um salvo-conduto contra a materialidade. Sem crenças religiosas à mistura. “Este ‘Espiritual’ nada tem que ver com religião. É um espiritual laico, mas sobretudo humano”, avisa o músico, que assume não acreditar na existência de um deus absoluto e omnisciente.

“Concordo, isso sim, que a religião cumpre um papel fundamental na agregação social e na pacificação individual, precisamente porque temos consciência que o caminho é de finitude.” Mas voltando à espiritualidade: ela ainda existe neste Porto feito íman de turistas? “Se não fosse assim eu não estava cá”, responde num sorvo. “Há um espírito na cidade do Porto que atravessa a língua, os nossos hábitos, a nossa metodologia de vida. É uma cidade líder no espírito criativo. O espírito no sentido cultural, enquanto força que anima os corpos.”

O mesmo que, há mais de 20 anos, fez os portuenses mobilizarem-se em massa para defender uma das joias da coroa da cidade. Abrunhosa também lá estava. Aconteceu em 1995, quando a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) se preparava para tomar de assalto o Coliseu do Porto. A ameaça correu como rastilho pela cidade e, num ápice, já a Passos Manuel tinha sido invadida por uma multidão.

“Na altura não havia redes sociais. A mobilização teve um caráter absolutamente espontâneo. Vieram pessoas do Porto, da Maia, de Espinho”, recorda. Todas unidas pela mesma luta: batalhar contra a fatalidade de perder “a única sala de espetáculos com capacidade acima de 3 mil pessoas a norte de Lisboa”. E conseguiram-no. “Funcionou a democracia”, orgulha-se Abrunhosa.

Naquele tempo, protagonizou uma das imagens mais fortes do protesto, ao acorrentar-se ao Coliseu, num gesto simbólico. Agora, no amplo foyer da mítica “sala de estar do Porto”, as memórias desse momento embrenham-se em todas as outras, as do espectador e as do artista que ali subiu ao palco. “Vi aqui nomes como Pat Metheny, Robert Cray, Carlos do Carmo, Camané, Rui Veloso, BB King. Depois disso, estar em cima do palco e sentir que as pessoas comungam do nosso sentimento é um processo mágico. Tenho aquela imagem de estar no palco, olhar para a claraboia e ver aquele ovni lá em cima a iluminar as pessoas que estão cá em baixo. No fundo é a minha música que volta a casa.”

“Estar em cima do palco e sentir que as pessoas comungam do nosso sentimento é um processo mágico”

Mas voltando àquela que ainda hoje é considerada uma das maiores manifestações espontâneas de sempre na cidade. O Porto ainda tem isso, de se acorrentar aos ideais de uma causa e de se bater por eles até à última gota de suor? “Quero acreditar que sim. Há uma identidade que se revela numa entidade incorpórea e, sempre que a cidade está sob ameaça, essa entidade manifesta-se. Sempre que é necessário, vejo que o Porto se mobiliza. O espírito do Porto tem uma génese histórica e manter-se-á como identidade de futuro”, prevê.

E se, anos depois, continua a apontar o dedo ao trabalho do antigo presidente da Câmara Rui Rio (“Tinha uma certa animosidade figadal em relação ao movimento cultural e muita dificuldade em lidar com a contestação”, defende), a opinião que tem do atual executivo camarário é bem diferente: “Hoje, a nossa representatividade política defende a cidade. Pode ser mais ou menos contestada, mas acredito que o Porto se projeta também na sua representação”.

Para Abrunhosa, o Porto continua a projetar-se a cada esquina. No rio, nas pontes, no Palácio de Cristal. Ou até do outro lado da margem, na Afurada. “Que nunca caiam as pontes entre nós”, cantava num tema feito popular em 2007. É já sob a Arrábida, com o sol a querer escapar desesperado para o mar, que o músico e compositor volta ao álbum das recordações.

“Desta zona, tenho a memória dos meus tempos do Conservatório e da Escola de Música do Porto, que era no Campo Alegre. Vínhamos muitas vezes almoçar aqui a esta zona e fazíamos um percurso interessante: descíamos os elevadores que aqui estão, que na altura funcionavam, às vezes apanhávamos o barco da Afurada, comíamos petinga e sardinha e voltávamos para as aulas. É o sítio ideal para pensar, para reencontros, é uma zona que sempre usei como maneira inspiracional.” Abrunhosa é assim mesmo: um portuense vaidoso das origens, um intrépido defensor dos interesses da Invicta.

Por isso, continua a ser uma voz desaforada contra o centralismo. E contra o processo do Infarmed. “O centralismo em Portugal é uma questão atávica. É uma tendência que, regra geral, se revela nos países pobres. Há uma tendência de centralizar para governar e mandar. Esta questão do Infarmed traz à tona o problema pungente que está submergido. No momento em que o Governo tenta fazer alguma coisa para descentralizar, gera-se um movimento junto da ‘corte’, o conjunto de interesses instalados à volta do poder, que faz com que o processo esteja condenado à partida. Era a revolução de que o país precisava. Não havendo centros decisórios fora da capital, caímos na desertificação, que parece irreversível.”

A mesma lógica, defende, aplica-se às obras do Hospital S. João, no Porto, sistematicamente adiadas. “Se fosse no Hospital de Santa Maria, acha que o problema ainda subsistia? Claro que não. Se somos invisíveis aos olhos do poder, o poder não vai resolver os nossos problemas. A invisibilidade dos problemas torna-os inexistentes”, lamenta, com o olhar incisivo de quem continua atento a tudo o que rodeia.

“Se somos invisíveis aos olhos do poder, o poder não vai resolver os nossos problemas”

A arte que faz, que canta, é no fundo um espelho disso mesmo. “Uma das formas de contar a história deste tempo é o trabalho dos artistas. Quando a arte não reflete o seu próprio tempo, é apenas entretenimento. Nós andamos aqui nesta festa aparente e outros pais como nós a correr milhares de quilómetros para depois morrerem afogados. O que seria de mim se estivesse alheado disso? Não vivo num universo etéreo e cor-de-rosa. Vivemos um momento em que é preciso perguntar onde estão os valores”, argumenta.

Por isso, no novo álbum, também dedica dois temas à questão dos refugiados: “Amor em tempo de muros” (“quem somos nós para colocar muros entre nós e os esfomeados?”, questiona) e “Porque é que não fui eu?” (“De onde vens pequeno Aylan/Para ti já é noite, para mim é manhã”, canta). Noutro, em “É o diabo”, visa os “populismos que se alimentam do descontentamento das pessoas” e o facto de os recursos serem usados “para dirimir uma dívida que foi gerada por má banca”. “Muita da má gestão e do compadrio que houve estão a ser suportados pelos desgraçados que trabalham para ganhar muito pouco”, acrescenta.

“O que é qualquer atividade sem o afeto?”

No raio X aos bastidores da política nacional, Abrunhosa não disfarça o anticavaquismo que resiste. “É preciso que as pessoas se sintam compensadas em alturas de desencantamento. Na anterior presidência, aconteceu um afastamento que permitiu nomeadamente a fuga de mão-de-obra em massa. O Governo quase empurrou os jovens para fora e o presidente da República manteve-se num silêncio avassalador. Era essa a sua grande assinatura. Curiosamente, agora, numa altura em que é completamente irrelevante e inútil, edita um livro que é igualmente irrelevante e inútil. É uma pessoa acintosa e rancorosa que remói sobre ódios e que devia praticar agora o que praticou sempre: o silêncio.”

O ataque contrasta com os elogios à política do afeto, de Marcelo Rebelo de Sousa: “A grande questão é: o que é a política sem o afeto? Aliás, o que é qualquer atividade sem o afeto? O afeto está na base da própria génese da humanidade, que é reconhecermos nos outros nós próprios. A política dos afetos é isso”. A política seria melhor com mais Marcelos, portanto? “É preciso ter em conta que o presidente da República é uma figura tutelar, enquanto a política é executiva. Mas nesse aspeto dos afetos sim: precisamos de mais Marcelos e menos tabus”.

O mesmo afeto que tem pelo Porto. E que só tem engordado com o tempo. “À medida que crescemos vamos ficando cada vez mais afetivos com dados símbolos. O sítio onde nascemos é o sítio onde nos sentimos em paz e creio que criamos mais afetividade com esse espaço à medida que vamos crescendo”, confessa-se. Que amor galopante é este? É um amor que se alimenta da genuinidade das pessoas e do linguajar do Porto (“Adoro a nossa maneira tão própria de falar, o chuço, o cabide, a nossa pronúncia, que nos dá um caráter tão sedutor e tão sexy”). Do Porto telúrico e do Porto espelho, em que se revê. E claro, da apetência que o Porto tem pela vida cultural.

Daí que a Casa da Música, o “elemento disruptivo” da cidade, não pudesse deixar de estar presente no roteiro do Porto de Abrunhosa. “Surgiu num momento muito importante, em que era necessário que o Porto se começasse a afirmar no mundo contemporâneo. Para o Porto, do ponto de vista cultural, é muito importante ter esta âncora, que de resto se articula com Serralves”, salienta o músico, em pleno palco da sala Suggia, que já se encheu de gente para o saudar.

O pretexto perfeito para visitar o panorama cultural do país: “A cultura é sempre escoada para último plano. Tem sido histórico, ao longo dos governos, a diminuta importância que lhe têm dado. Mas parece-me que o processo se está a reverter. O IVA dos espetáculos é um primeiro passo. Deve reduzir-se para 6% em todos os espetáculos, não só em recintos fechados”. Até porque… “A cultura é um grande bem económico, mas também um grande bem espiritual. É o espírito do povo.” E música? O ritmo é tal que Pedro Abrunhosa diz não conseguir acompanhar tudo. Ainda assim, garante estar atento aos talentos emergentes do fado e a um género que, depois de décadas votado ao ostracismo, é agora “uma música de modernidade”.

Fala a voz da experiência. Do alto de 57 anos de idade e de quase outros tantos de música. Mas a reforma tem muito que esperar. Percebe-se assim que lhe perguntamos se está preparado para ser sexagenário. Ri-se por um instante, mas logo volta ao registo sério, para dissipar as dúvidas.

“Acho que serei sempre uma criança interior, no sentido de preservar alguma inocência. Mas sim, estou. Estou certo de que não vou ser um sexagenário daqueles que vão jogar sueca para o jardim, mas dos que vão continuar a fazer música durante alguns anos. A reforma está muito longe. Vou poupar à Segurança Social o peso da minha reforma o mais que puder. Tento que a minha música seja lúcida e enquanto houver capacidade de perceber que isso acontece, vou continuar.”

“Não é de mim que as pessoas têm de gostar, é da minha música”

A promessa sai-lhe a meias com a garantia de que a vida pessoal continuará onde sempre esteve: bem guardada na gaveta, a salvo de todos os olhares indiscretos. “A vida pessoal de cada um não está à venda. Não se aluga, não se mostra. Os óculos de sol são um bocado isso. Aquilo que eu mostro são os discos, a minha música, o meu olhar. Por isso oculto os meus olhos. Não é de mim que as pessoas têm de gostar, é da minha música.” É que no ADN ninguém lhe mexe. Assim seja com o Porto: “Não podemos arriscar perder a nossa impressão digital”.