Rui Cardoso Martins

O pai das crianças

Ilustração: João Vasco Correia

Só existe um degrau com salto mais largo em baixo, o da menina de cinco anos. Quando foram retirados aos pais, a menina era ainda uma bebé de dois anos e nem se lembrará desse dia trágico (ou de salvação) de Novembro de 2015, faz agora três anos. O pedreiro Alberto oscila entre uma memória de pedra e borrões de argamassa que não seguram bem as paredes da sua história. O crime é o de duas ameaças agravadas, por ter gritado a técnica da Misericórdia de Lisboa que, se elas lhe tirassem os filhos, não iam “ficar cá para contar”.

– Como é que eu me podia dirigir a estas senhoras antes de os meus filhos serem retidos? Eu só quero entender!

Alberto tem a energia retesada nas costas tortas, no bigode branco, nos óculos empoeirados. Usa as mãos como se estivesse no tribunal com lápis e fita metálica a esquadrinhar centímetros em paredes de tijolo. Mas se a obra é para deitar abaixo, deita abaixo:

– Nego toda a acusação!

– Então não vale a pena perguntar mais nada, suspirou a juíza.

Mas não ia acabar assim. A juíza falou-lhe do dia em que lhe foi retirada a guarda dos filhos. O pedreiro parecia não entender.

– Não houve alguém que lhe quis tirar os filhos, para dizer isto de modo mais bruto?

– Tiraram-me os filhos no próprio dia. Existiu mesmo essa decisão, mas não foi por vontade dos pais e não foi por maus-tratos!

A juíza pediu-lhe para não falar como num café.

– Mesmo que elas tenham entendido alguma coisa, eu não disse nada disso. Fiquei é revoltado, sim, porque é o meu amor que está em causa.

E neste instante a pequena figura empoeirada ficou frágil. Tirarem-lhe os filhos foi dizerem-lhe que o seu amor de pai não prestava.

– Foi uma injustiça, por ser por outro indivíduo que foi condenado por pedofilia, não tem nada a ver comigo.

– Elas têm alguma coisa contra si?…

– Para tomarem essas atitudes, têm! O meu ex-cunhado, que se separou da minha irmã, foi condenado por pedofilia. Foram sete anos na prisão. A assistente social pediu, telefonou, se não o podia acolher para ele não dormir na rua. E eu dei-lhe onde dormir. Depois, da Protecção de Menores disseram-me que eu não podia ter lá o meu ex-cunhado. E nesse mesmo dia chego a casa e digo: “Ó Zé, desculpa lá, mas não podes continuar aqui…” Nesse mesmo dia, expulsei-o de casa.

Alberto inventou um plano logo que viu que ia ficar sem as crianças. Só a mais velha, por ser maior, escapou à Misericórdia.

– Eu fiquei revoltado comigo, no interior. Retirarem-me quatro filhos! Nesse dia, consegui espalhar-me por toda a cidade de Lisboa e consegui vê-los a todos! O último que eu vi foi já pelas seis da tarde. Eu disse à directora da escola, pelo telefone: “Chamem a GNR, mas eu vou ver o meu filho!”

Para as técnicas deporem sem medo, Alberto teve de sair da sala.

– As pessoas quando acusam devem dar a cara e falar pessoalmente, resmungou, mas saiu.

Disse uma técnica de reinserção:

– Foi o tribunal que pediu a avaliação da situação das crianças. Para as proteger da situação de perigo em que se encontrariam.

– O que é que o senhor disse?

A técnica pensou um bocadinho por baixo das pálpebras. Tudo aconteceu no gabinete da Santa Casa, em Lisboa.

– “Se me tirarem os meus filhos, não ficam cá para contar.” Senti-me muito incomodada. O senhor estava de tal modo que senti que podia passar para o acto. Nos dias posteriores houve telefonemas. Dizia que queria os filhos em casa. “Eu perco a cabeça e mato esta gente toda, isto não vai ficar assim.”

– “Não fica cá para contar…” No que é que reflectiu quando ouviu isto?

– Reflecti que me tirava a vida.

– Que a matava, é isso?

– Sim.

Alberto foi condenado a pena de prisão suspensa por 16 meses. A ameaça não foi consumada (apesar dela, perdeu as crianças). E, também pelos seus filhos, não vai matar ninguém.