«Em 1964, eu era uma miúda sentada no chão de linóleo da casa da minha mãe, em Milwaukee, e assistia a Anne Bancroft a apresentar o Óscar para melhor ator na 36º edição dos prémios da Academia. Ela abriu o envelope e disse cinco palavras que literalmente faziam história: “O vencedor é Sidney Poitier.” Ao palco subiu um dos homens mais elegantes de que me lembro. A gravata que usava era branca, a sua pele era negra – e ele estava a ser galardoado. Nunca tinha visto um homem negro ser celebrado assim.
Tentei muitas vezes explicar o que um momento desta natureza significou para uma garotinha, uma criança a observar a partir dos assentos baratos enquanto a minha mãe passava pela ombreira da porta, cansada de limpar as casas de outras pessoas. Mas tudo o que posso fazer é citar e dizer que a explicação está no desempenho de Sidney em Lilies of the Field: “Ámen, ámen, ámen, ámen.”
Em 1982, Sidney recebeu o prémio Cecil B. DeMille [o mesmo que recebeu Oprah Winfrey no domingo passado, 7 de janeiro de 2018] aqui nos Globos de Ouro e não me esqueço de que, neste momento, há algumas miúdas a ver como eu me torno a primeira mulher negra a receber este mesmo prémio.
É uma honra – é uma honra e é um privilégio compartilhar a noite com todos elas e também com os incríveis homens e mulheres que me inspiraram, que me desafiaram, que me apoiaram e tornaram possível a minha jornada até esta etapa. Dennis Swanson, que me deu uma oportunidade em A.M. Chicago. Viu-me no show e disse a Steven Spielberg: ela é Sophia, em A Cor Púrpura. Gayle, que tem sido uma amiga, e Stedman, que tem sido a minha rocha.
Quero agradecer à Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. Sabemos que a imprensa está cercada nos dias de hoje. Também conhecemos a sua dedicação incansável em descobrir a verdade que nos impede de fechar os olhos à corrupção e à injustiça. A tiranos e vítimas, a segredos e mentiras.
Quero dizer que valorizo a imprensa mais do que nunca, enquanto tentamos navegar nestes tempos complicados, o que me traz a esta conclusão: o que sei, com certeza, é que falar a verdade é a ferramenta mais poderosa que todos temos. E estou especialmente orgulhosa e sinto-me inspirada por todas as mulheres que se sentiram fortes e habilitadas o suficiente para falarem e partilharem as suas histórias pessoais. Cada um de nós nesta sala é celebrado pelas histórias que conta, e neste ano nós fomos a história.
Mas não é apenas uma história que afeta a indústria do entretenimento. É aquela que transcende qualquer cultura, geografia, raça, religião, política ou local de trabalho. Então, quero, nesta noite, expressar a minha gratidão a todas as mulheres que sofreram anos de abuso e agressão porque elas, como a minha mãe, tiveram filhos para alimentar e contas a pagar e sonhos para perseguir. São as mulheres cujos nomes nunca conheceremos. São trabalhadoras domésticas e trabalhadoras agrícolas. Estão nas fábricas, em restaurantes, nas faculdades, em engenharia, medicina e ciência. Elas fazem parte do mundo da tecnologia e da política e dos negócios. Elas são as nossas atletas nos Olímpicos e elas são as nossas soldados nas Forças Armadas.
E há outra pessoa, Recy Taylor, um nome que conheço e acho que vocês também deveriam conhecer. Em 1944, Recy Taylor era uma jovem esposa e mãe que caminhava para um serviço religioso que frequentava em Abbeville, Alabama, quando foi raptada por seis homens brancos armados, violada e deixada com os olhos vendados ao lado da estrada, vindo da igreja para casa. Eles ameaçaram matá-la se ela alguma vez contasse a alguém, mas sua história foi relatada à NAACP [a National Association for the Advancement of Colored People – Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor, em tradução literal]. Aí, uma jovem trabalhadora de nome Rosa Parks tornou-se a investigadora principal do caso e, juntas, procuraram justiça. Mas a justiça não era uma opção na era de Jim Crow. Os homens que tentaram destruí-la nunca foram perseguidos. Recy Taylor morreu há dez dias, à beira dos 98 anos. Ela viveu como todos nós vivemos, muitos anos numa cultura de homens brutalmente poderosos. Por demasiado tempo, as mulheres não foram ouvidas ou acreditadas se ousassem falar a verdade ante o poder desses homens. Mas este tempo acabou.
O tempo deles acabou.
O tempo deles acabou. E eu só espero – só espero que Recy Taylor tenha morrido sabendo que a verdade dela, como a de tantas outras mulheres que foram atormentadas naqueles anos, e que continuam a ser, continua a sua marcha. Estava em algum ponto no coração de Rosa Parks, quase 11 anos depois, quando tomou a decisão de ficar sentada naquele autocarro em Montgomery, e está aqui com todas as mulheres que escolhem dizer #MeToo [Eu também]. E em cada homem – em cada um que escolhe escutar.
A minha carreira, na qual sempre tentei fazer o meu melhor, fosse na televisão ou no cinema, tem sido construída em torno de perceber como os homens e as mulheres realmente se comportam. Para dizer como vivemos a vergonha, como amamos e como nos enfurecemos, como falhamos, como recuamos, perseveramos e como superamos. Entrevistei e retratei pessoas que resistiram às coisas mais feias que a vida pode trazer, mas a qualidade que todos parecem partilhar é a da capacidade de manter a esperança para uma manhã mais brilhante, mesmo durante as noites mais sombrias.
Então, quero que todas as miúdas que me veem aqui, agora, saibam que um novo dia está no horizonte! E, quando esse novo dia finalmente amanhecer, será por causa de muitas mulheres magníficas, muitas das quais estão aqui nesta sala, nesta noite, e por causa de alguns homens bastante incríveis, que têm lutado para garantir que as novas gerações se tornem os líderes que nos levarão a um tempo em que mais ninguém, nunca, deverá dizer #metoo outra vez.”